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O caso Queiroz: novo exemplo de garantismo monocular hiperbólico

O caso Queiroz: novo exemplo de garantismo monocular hiperbólico

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O caso da esposa de Queiroz é talvez o único caso de concessão de prisão domiciliar a uma foragida da justiça. Normalmente, o fato de o réu estar foragido é fundamento suficiente a decretação da prisão preventiva.

Já discorremos aqui sobre o chamado Garantismo Monocular Hiperbólico (1) e apresentamos críticas à dificuldade de acesso que existe da imensa maioria da população brasileira a uma prestação jurisdicional adequada - seja pela excessiva morosidade, seja pela seletividade na aplicação de garantias inerentes a condição de pessoa humana.

Essa semana, a comunidade jurídica foi surpreendida pela decisão proferida pelo Ministro Presidente do STJ concedendo ordem de Habeas Corpus a Fabrício Queiroz e a sua esposa - foragida da justiça, fundamentando-a na Recomendação 62/2020 do CNJ (2).  Curiosamente, em 20 de março deste ano, o mesmo Ministro negou um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Ceará que pretendia justamente as pessoas que se enquadrasse nos critérios da referida recomendação fossem colocados em liberdade (3), argumentando a incidência da Súmula n. 691 do STF: 

"Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar."

Com isso dito, salientamos que, em 20 de junho deste ano, a Desembargadora Suimei Cavaleiri, da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, negou uma medida liminar em Habeas Corpus justamente com a finalidade de converter a prisão preventiva de Fabrício Queiroz em prisão domiciliar, o que levou à impetração do conhecido "HC substitutivo de recurso" que é comumente rechaçado pelas Cortes Superiores: 

"O STJ, alicerçado na decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal - STF, passou a não conhecer de writ substitutivo, ressalvando a possibilidade de concessão da ordem de ofício quando houvesse patente ilegalidade. Tal entendimento foi adotado pelas duas turmas criminais do STJ:

“Em consonância com a orientação jurisprudencial da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal - STF, esta Corte não admite habeas corpus substitutivo de recurso próprio, sem prejuízo da concessão da ordem, de ofício, se existir flagrante ilegalidade na liberdade de locomoção do paciente.”".(4)(5)

O questionamento que fica é: qual o fator de distinção para que não se tenha a incidência da mesma fundamentação aos dois casos?

Vamos mais longe: qual a razão para o conhecimento e concessão referente à esposa de Queiroz, foragida da justiça? Para o Presidente do STJ, segundo noticiado na imprensa seria essa:

“O mesmo vale para sua companheira, Márcia Aguiar, por se presumir que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias, visto que, enquanto estiver sob prisão domiciliar, estará privado do contato de quaisquer outras pessoas (salvo de profissionais da saúde que lhe prestem assistência e de seus advogados)”. (6).

Já o STJ, no julgamento do HC 337.183 -BA (2015/0242930-0), de relatoria do Min. Rogério Schietti Cruz fundamenta a denegação da ordem da seguinte forma:

“Logo, e trazendo o discurso para o caso concreto, se a autoridade judiciária competente decreta, fundamentadamente, uma prisão preventiva porque o réu está foragido ou porque tal condição passou a ser sopesada em decisão posterior à original, justifica-se, em tese, a manutenção da cautela extrema, na forma do art. 312 c/c 282 do CPP, para assegurar eventual aplicação da lei penal. E, enquanto essa ordem não for invalidada pelo próprio Poder Judiciário, não lhe poderá opor o sujeito passivo da medida um suposto "direito à fuga" como motivo para pretender que seu status de foragido seja desconsiderado como fundamento da prisão provisória.”

É um caso raríssimo, para não dizer único, de concessão de prisão domiciliar a um foragido da justiça. Como bem apontado pelo Ministro, é fundamento suficiente a decretação da prisão preventiva o fato de o réu estar foragido, ou mesmo que tal condição seja considerada para manutenção do decreto prisional – e aí vem a melhor parte: Será que deverá se apresentar em casa para cumprir a ordem? Bem melhor do que estar foragido. Aparentemente, passou o susto, pode voltar para casa.

Não custa reforçar que esse tipo de decisão não reflete a postura do Judiciário quanto a imensa maioria da população, em especial dos menos abastados. No caso do presidente do STJ, tem sido notícia em diversos veículos de comunicação sua posição quanto a Habeas Corpus com argumentos semelhantes – com ordens denegadas (7).

Diante disso, convido novamente à reflexão: o garantismo monocular hiperbólico ou “garantismo à brasileira”, é, de fato, uma distorção jurídica do sopesamento de valores, como defendem os críticos, ou é na verdade um sintoma da seletividade do direito penal brasileiro?


Notas

(1) (https://jus.com.br/artigos/83821/garantismo-hiperbolico-monocular)

(2) https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf

(3) HABEAS CORPUS Nº 567.779 - CE (2020/0072189-9) STJ

(4) (HC 557.865/SP, rel. min. Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, votação unânime, DJe 13.05.20)

(5) https://www.migalhas.com.br/depeso/328769/afinal-admite-se-habeas-corpus-substitutivo-de-recurso-ordinario#:~:text=%E2%80%9CEm%20conson%C3%A2ncia%20com%20a%20orienta%C3%A7%C3%A3o,liberdade%20de%20locomo%C3%A7%C3%A3o%20do%20paciente.%E2%80%9D

(6) https://www.poder360.com.br/justica/queiroz-vai-para-prisao-domiciliar/

(7) https://epoca.globo.com/guilherme-amado/antes-de-soltar-queiroz-presidente-do-stj-negou-7-habeas-corpus-que-alegavam-risco-de-covid-24526100


Autor

  • Gabriel Morais Lanna

    Bacharel em Direito pela UFMG Delegado de Polícia no Espírito Santo (2014) Pós Graduado em Direito Processual Penal (2015) Nomeado para o cargo de Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo (2016) Medalha Do Mérito Policial do Estado do Espírito Santo (2017) Professor de Direito Penal na Faculdade São Camilo (2017) Medalha Desembargador Ruy Gouthier de Vilhena (2017)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LANNA, Gabriel Morais. O caso Queiroz: novo exemplo de garantismo monocular hiperbólico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6222, 14 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83876. Acesso em: 19 abr. 2024.