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Uma investigação fadada ao fracasso

Uma investigação fadada ao fracasso

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Invadir a vida pessoal do advogado sob o pretexto de obter informações sobre o investigado é uma afronta à democracia.

Segundo noticiou o Estadão, em seu site, no dia 18 de setembro,  a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com uma representação no Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 16 de setembro do corrente ano, na tentativa de anular as diligências determinadas pelo juiz Marcelo Bretas, titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, e responsável pelos processos da Lava Jato Rio, na  Operação E$quema S.  

A imprensa deu destaque a que advogados renomados no meio político são investigados no caso e tiveram endereços profissionais e residenciais vasculhados na quarta-feira passada, 19, na fase ostensiva do inquérito que apura desvios milionários das seções fluminenses do Serviço Social do Comércio (Sesc RJ), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac RJ) e Federação do Comércio (Fecomércio RJ). 

Ademais, o juiz federal Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, determinou o bloqueio de R$ 237,3 milhões do criminalista Cristiano Zanin Martins, advogado do ex-presidente Lula (PT) na Lava Jato. A decisão foi tomada no dia 1º de setembro  e tornada pública no sábado, 19 de setembro, quando o magistrado levantou o sigilo dos autos do documento. 

O caso é preocupante. 

Mais parece uma tentativa de intimidar a advocacia.  

A teor do artigo 133 da Constituição Federal, a advocacia é uma garantia constitucional, na medida em que se prevê a indispensabilidade do advogado na Administração da Justiça. Para tanto, são garantidos ao advogado, no seu mister, a inviolabilidade profissional e o sigilo dos dados do cliente. 

O advogado é um profissional habilitado para o exercício do ius postulandi. 

Para José Afonso da Silva (“Direito Constitucional Positivo”, 5ª edição, pág. 502), à luz do que disse Eduardo Couture (Los mandamientos del abogdo) a advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus e uma árdua fatiga posta a serviço da justiça”. 

Em verdade, a advocacia não é apenas um pressuposto na formação do Poder Judiciário. 

É também necessário ao seu funcionamento. 

Fala-se que a inviolabilidade profissional é um direito que afiança ao advogado a possibilidade de trabalhar com maior segurança, uma vez que lhe são asseguradas a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de suas correspondências e comunicações. Trata-se de uma verdadeira garantia que é dada à sociedade que se vale dos serviços advocatícios do que uma garantia do advogado propriamente dito. 

A inviolabilidade abrange a imunidade profissional, a proteção ao sigilo profissional e a proteção aos meios de trabalho. 

Mas como explica José Afonso da Silva (obra citada, pág. 504), a inviolabilidade do advogado, prevista no artigo 133, não é absoluta. Ela só o ampara com relação a seus atos e manifestações do exercício da profissão e, assim mesmo, nos termos da lei. 

Disse ele que “a inviolabilidade não é um privilégio profissional, é uma proteção do cliente que confia a ele documentos e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de reivindicação e até de agressiva cobiça alheia, que precisam ser protegidos de natureza qualificada”. 

A imunidade profissional, prevista no artigo 7º, parágrafo segundo, do Estatuto da Advocacia, significa a liberdade de expressão do advogado. 

José Roberto Batochio (“A inviolabilidade do advogado em face da Constituição de 1988”, 688:401) disse que “a natureza eminentemente conflitiva da atividade do advogado frequentemente o coloca diante de situações que o obrigam a expender argumentos à primeira vista ofensivos, ou eventualmente adotar conduta insurgente”. 

Por sua vez, o sigilo profissional é um dever deontológico que está relacionado com a ética de determinada profissão, abrangendo a obrigação de manter segredo sobre tudo o que o profissional venha a tomar conhecimento. 

Como bem expressa Paulo Lôbo (“Comentários ao Estatuto da Advocacia”, 4ª edição, pág. 64), o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, direito e dever, ostentando natureza de ordem pública. Como tal tem natureza de ofício privado (múnus), estabelecido no interesse geral como pressuposto indispensável ao direito de defesa. Esse dever de sigilo profissional existe seja no serviço solicitado ou contratado, remunerado ou não remunerado, haja ou não representação judicial ou extrajudicial, tenha havido aceitação ou recusa do advogado. 

Há, ainda, o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, que se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim. 

Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do princípio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. 

Invadir a vida pessoal do advogado, sob o pretexto de obter informações sobre o investigado é uma afronta à democracia, que pressupõe a justa e leal convivência entre as pessoas. 

Se estamos diante de um escritório de advocacia que faz a defesa constitucional do cliente e não está envolvido em compliance em casos de lavagem de dinheiro, não há a menor condição de se tomar a medida aqui censurada.  

No caso em tela, a decisão investigatória parece pecar por sua generalidade.  

Houve um verdadeiro “malabarismo jurídico”. Isso porque se a investigação envolve recursos do Sistema S, a competência para instruir e julgar é da Justiça Comum Estadual e não da Justiça Comum Federal. Isso se não houver pessoas investigadas que gozem de prerrogativa de foro.  

Ademais, não há falar que empregado de entidade do Sistema S seja servidor público. Ele é empregado sujeito às regras da Consolidação das Leis do Trabalho.   

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu parcial provimento ao recurso em habeas corpus de Lázaro Luiz Gonzaga, ex-presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Minas Gerais (Fecomércio-MG), para afastar a sua condição de servidor público e, em consequência, trancar a ação penal que tramita contra ele em relação aos crimes de peculato, corrupção passiva e fraude à licitação.  

Some-se a isso que o ministro Napoleão Maia ingressou com uma reclamação no STF, tendo como base notícias de que o Ministério Público no Rio de Janeiro teria aceitado a delação do ex-presidente da Fecomércio fluminense, Orlando Diniz, e avançaria sobre magistrados de tribunais superiores, STJ e TCU principalmente. Ora, se isso ocorre a competência é do STF.  

Discute-se, ainda, se há crime de corrupção em tese.  

Podemos ter corrupção ativa sem corrupção passiva. Pode haver a corrupção ativa sem a corrupção passiva (o servidor público pede a propina, mas a vítima, por razões morais, recusa-se a pagar). Pode haver corrupção ativa e corrupção passiva (a pessoa oferece a propina e o servidor pública a aceita). 

Se há um corruptor, é mister saber quem é o servidor corrupto.  

Repita-se que não se pode criminalizar o exercício da advocacia.   

Se assim o é, será o caso de anular a investigação.  


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma investigação fadada ao fracasso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6293, 23 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85549. Acesso em: 24 abr. 2024.