DO DIREITO
Ultrapassada a pequena explanação sobre as características do transexualismo, impõe a análise dos fundamentos do direito da sexualidade, para melhor solução da questão.
Os direitos da personalidade para alguns doutrinadores denominam-se por direitos individuais, outros direitos sobre a própria pessoa e os que se referem aos direitos da personalidade. Não restam dúvidas que se tratam de direitos subjetivos atrelados à noção de liberdade, dignidade, individualidade e pessoalidade, devendo todo ser humano ter sua vida com pelo desenvolvimento e igualdade de oportunidades, sendo esta proteção imprescindível para o desenvolvimento integral da personalidade.
Por direitos da personalidade compreendem-se aqueles direitos relativos à tutela da pessoa humana, necessários para a proteção da dignidade e integridade das pessoas.
Para Maria Celina Bodin de Moraes, é necessário que se tenha uma tutela genérica, fundamentada na dignidade da pessoa humana, onde o "individuo é globalmente considerado, sua dignidade, onde quer que ela se manifeste, em conformidade e à luz do ditame constitucional". (in, A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro, Renovar)
Desta forma depreende-se que o nosso legislador optou pela inserção de uma cláusula geral capaz de proteger amplamente à personalidade e todas as suas formas de manifestação, concluindo-se então que inexistindo previsão tipificada, o operador do direito levará em conta a proteção genérica.
A Carta da República de 1988, nos artigos 1º, III, desta forma se posiciona sobre os direitos fundamentais.
Cortiano Junior, in Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, Renovar, 1998, p.50-55, argumenta que o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana representa um compromisso da sociedade brasileira de erguer o seu direito sobre essa noção. Isso faz do preceito constitucional uma diretriz para o legislador ordinário e um parâmetro interpretativo para o operador do direito. É claro que existirão dificuldades na sua aplicação prática, cabendo ao jurista estabelecer caminhos que o Direito deva percorrer, tendo por finalidade a proteção da pessoa, a qual ainda não foi suficientemente tratada nas codificações.
Quanto a essa forma genérica de se tutelar o direito da personalidade, incumbirá à doutrina e jurisprudência a tarefa de aplicar a cláusula genérica de tutela a casos concretos, diante das transformações sociais e econômicas que se apresentem.
O grande desafio será harmonizar a ordem jurídica a complexidade da ordem natural.
A nosso ver, o livre desenvolvimento da personalidade, possibilita a redesignação do sexo transexual, está previsto nos princípios consagrados na Lei Maior – art. 1º, incisos II e III – nas garantias fundamentais (art. 5º) e na proteção à saúde (art. 196).
Conforme nos ensina Elimar Szaniawski (in Limites e Possibilidades do Direito de Redesignação do Estado Sexual, SP, Revista dos Tribunais, "o direito à vida, o direito à integridade psicofísica e o direito à saúde constituem o trinômio que informa o livre desenvolvimento da personalidade e a salvaguarda da dignidade do ser humano, traduzindo-se no exercício da cidadania".
Similar linha de pensamento é usada por Maria Berenice Dias, que é categórica em afirmar que a proteção à dignidade humana é o elemento norteador da CF, e o núcleo jurídico do próprio Estado, é a garantia das liberdades individuais (in Homossexualidade, discussões jurídicas e psicológicas – pág. 71-76):
"A regra maior da Constituição Pátria é o respeito à dignidade humana verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico nacional. Este valor implica adotar os princípios da igualdade e isonomia dae pontecialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas".
Finaliza afirmando que qualquer discriminação baseada na orientação sexual é um desrespeito à dignidade da pessoa humana e infringe regra expressa da CF que garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.
Nessa linha de raciocínio a ausência de legislação que disponha especificadamente sobre a mudança de sexo no transexual não constitui óbice ao requerimento, que poderá ser fundamentado no ordenamento jurídico constitucional.
Importante destacar que o Conselho Federal de Medicina, regulamentando as hipóteses de cirurgia de transgenitalização – Resolução 1.652/2002 e a Resolução anterior 1.482/97 - autoriza a operação de modificação de sexo, restrita a hospitais púbicos nos casos como o examinado, sendo sua razão notadamente a necessidade de aprimoramento e difusão da técnica de introdução do novo pênis (faloneoplastia), sendo certo que nas demais hipóteses de intervenções cirúrgicas (retirada das mamas e sistema reprodutor feminino), não há que se exigir realização em hospitais da rede pública, eis que não estamos diante da causa determinadora de tal forma de proceder, isto é, estudos para aprimoramento da técnica ou difusão.
Coube a resolução definir o transexual, a fim de caracterizar os pacientes que se enquadrariam na hipótese de redesignação sexual. Para alcançar a configuração descrita na resolução é necessário que a pessoa apresente desconforto no tocante ao sexo anatômico natural, desejo expresso de eliminar os genitais, perdendo as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar a do sexo oposto, permanência desse distúrbio de forma continua e consistente e ausência de transtornos mentais.
Em que pese não ter sido realizada a cirurgia de redesignação, tal situação encontra pleno amparo no fato de ainda não ter a medicina, conseguido, muitas vezes, segundo os relatos médicos, um novo pênis com funções e dimensões normais. Os cirurgiões são quase unânimes ao afirmarem que a adequação do transexual feminino em homem é muito mais complicada tecnicamente, por isso, esta é menos solicitada.
A resolução parece ter sido cumprida na hipótese dos autos, existindo inclusive pareceres favoráveis da equipe multidisciplinar no juízo.
A MUDANÇA DO NOME
A lei de registros públicos impõe uma série de limites para a pretensão de mudança de prenome e estado civil do transexual.
A doutrina e a jurisprudência que adotam uma linha mais tradicional, seguem o princípio da imutabilidade do prenome do individuo em nome da coletividade deve ter em relação à identidade da pessoa humana.
Todavia, mesmo a interpretação da lei de registros poderia autorizar a pretendida mudança, se entendermos que o prenome da autora causa-lhe evidente constrangimento, a expondo ao ridículo, diante do aspecto físico masculino que apresenta. Assim, por tal motivo poderia ser autorizada a pretendida modificação do seu prenome com fulcro no art. 55, parágrafo único, c/c art. 109 da referida lei de registros. (6015/73)
ALTERAÇÃO DE SEXO
Quanto à alteração do sexo na certidão de registro civil, estão presentes os requisitos para a concessão do pedido, apesar de inexistir inicialmente erro na consecução do assento civil, posto que o que se pretende proteger com tal medida é a dignidade da pessoa humana. Destaque-se que a lei de Registros Públicos é anterior a CF/88 que levou a promoção da dignidade da pessoa humana a fundamento da República, merecendo tutela todas as questões ligadas ao estado da pessoa. Certo dizer que a Constituição inclui entre os direitos individuais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e imagem das pessoas (art. 5º, inciso X).
Nesta linha de raciocínio, encontramos o fundamento legal do pedido, a autorizar a alteração do sexo no assento de nascimento, posto que sem esta restaria à parte requerente, continuamente, ter sua intimidade, honra e dignidade ofendidas.
Elimar Szaniawski defende que o direito positivo fornece todos os elementos para a permissão do pedido, nos termos a seguir descritos:
"De um lado, encontramos o fundamento para tal feito, no direito à identidade sexual, como um dos aspectos do direito à saúde, tutelado pelo art. 196 da CF. De outro, os incisos II e III do art. 1º e ¶2º do art. 5º da Carta Magna, os quais cuidam do livre desenvolvimento da personalidade, da afirmação da dignidade e do exercício de cidadania de todo ser humano, que conduzem a uma releitura dos art. 57 e 58 da lei 6.015/73. Os citados artigos possibilitam ao Magistrado aplicar a lei ao caso concreto, deferindo ao transexual a pretensão requerida". (in Limites e possibilidades do direito a redesignação do estado sexual, Ed. Revista dos Tribunais, pág. 265/266).
Assim, das provas colhidas nos autos, especialmente os estudos técnicos realizados pelas equipes do juízo e a perícia médica, que a parte autora preencheu os critérios de diagnóstico clínico do transexualismo e, atualmente o seu prenome e sexo feminino são inadequados.
Certo destacar que as mudanças pretendidas merecem deferimento posto que objetivam eliminar situações constrangedoras, de total desconforto moral pelo que passa a parte autora, ao ter que exibir no meio em que vive documentos que não refletem sua realidade e identidade pessoal que aparenta, conforme diagnósticos mencionados.
Diante de todo o exposto, opino pela procedência integral do pedido, alterando-se o prenome da parte autora para G. R. V. e o sexo como masculino, averbando-se à margem do registro civil a anotação quanto à retificação ter se dado em virtude de decisão judicial proferida no presente processo.
Destaque-se que somente em casos excepcionais e para resguardar direitos de terceiros de boa-fé, pode ser solicitada judicialmente à quebra do segredo de justiça e o fornecimento de certidão com referencia à situação anterior."
Não há no Direito Brasileiro norma proibitiva de alteração do prenome da autora sendo induvidosa que uma pessoa com o fenótipo (aparência) de homem e prenome feminino seja alvo de chacotas.
E a imutabilidade do prenome, como se sabe, não é absoluta, admitindo o art. 58 da Lei no. 6015/73 sua substituição por apelidos públicos e notórios. Permite, ainda, no parágrafo único do art. 55 Lei 6.015/73, a alteração do prenome quando sujeitar o portador ao ridículo.
Sendo o nome um meio de reconhecimento do cidadão no Estado, injusto seria que a lei obrigasse o indivíduo a manter prenome capaz de despertar sarcasmo e deboche, diante da aparência relativa ao sexo oposto.
Assim, não havendo impedimento para a mudança de prenome, esta mudança também deve ser deferida.
Prejuízo ante o fato de a autora ser declarada juridicamente como sendo do sexo masculino também não vejo na espécie, diante da situação peculiar já descrita.
A alteração do prenome e do sexo que ora se defere deve constar no registro civil da postulante, mencionando-se apenas nas certidões que se seguirem que "o assento foi modificado por decisão judicial, em ação de retificação de registro civil (proc. nº ", exceto quando as informações forem postuladas pela própria requerente ou através de requisição judicial. Nada mais ! Com isso, resguarda-se o segredo de Justiça, sem a afronta ao artigo 21 da Lei de Registros Públicos [01]
Negar o direito de alguém ter o nome que mais condiz com sua condição sexual, é segundo decisão recente de que se tem notícia da MM. Juíza de Direito ANA MARIA GONÇALVES LOUZADA, do Distrito Federal, "sonegar o direito de ser feliz, de ter esperança, de acreditar na vida, de viver com dignidade" e buscar meios de adequação dos transexuais na sociedade, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), é um objetivo a ser traçado por toda a população brasileira, seja com a alteração do prenome e sexo, seja com o combate aos preconceitos enraizados na comunidade.
Aliás, outro não tem sido o entendimento predominante do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme as ementas se seguem:
APELAÇÃO CÍVEL. ALTERAÇÃO DO NOME E AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 05/04/2006).
"Ementa: Registro civil. Transexualidade. Prenome. Alteração. Possibilidade. Apelido público e notório. O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário à situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada está a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei n. 6015/73 e da Lei n. 9708/98. Recurso provido." (TJRS, Apelação Cível no 70000585836, Sétima Câmara Cível, Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 31/05/00).
DAÍ PORQUE, CRENDO QUE TODOS OS INDIVÍDUOS TÊM O DIREITO DE VIVER HARMONICAMENTE NA SOCIEDADE E SEREM RESPEITADOS COMO PESSOAS HUMANAS, NOS TERMOS DO ART. 1º - III DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, JULGO PROCEDENTE A PRETENSÃO AUTORAL PARA DETERMINAR A AVERBAÇÃO DAS ALTERAÇÕES PRETENDIDAS, NO SENTIDO DE QUE A. P. R. V., NASCIDA COMO DO SEXO FEMININO, PASSE A SER CONSIDERADO DO SEXO MASCULINO, ALTERANDO-SE O NOME PARA G. R. V., DEVENDO CONSTAR NO REGISTRO A REFERÊNCIA AO PRESENTE PROCESSO, MENCIONANDO-SE NAS CERTIDÕES QUE SE SEGUIREM QUE "O ASSENTO FOI MODIFICADO POR DECISÃO JUDICIAL, EM AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL (PROC. Nº xxxxxxxxxxx)". TRANSITADA EM JULGADO A PRESENTE SENTENÇA, EXPEÇA-SE MANDADO DE AVERBAÇÃO. CONDENO, AGORA, O "AUTOR" NAS CUSTAS PROCESSUAIS, COM OBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ART. 12 DA LEI 1060/50. SEM HONORÁRIOS.
P.R.I.
RIO DE JANEIRO, 08 DE MAIO DE 2008
ANDRÉ CÔRTES VIEIRA LOPES
Juiz Titular
Notas
01 art. 21 da Lei nº 6015/73: Sempre que houver alteração posterior ao ato cuja certidão é pedida, deve o oficial mencioná-la, obrigatoriamente, não obstante as especificações do pedido, sob pena de responsabilidade civil e penal, ressalvado o disposto nos arts. 45 e 94