Quilombo de Porcinos, Agudos-SP: desterritorialização e desrespeito ao art.68 do ADCT

26/04/2016 às 16:35
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Nota Técnica elaborada para subsidiar Inquérito Civil Público do Ministério Público Federal referente ao reconhecimento e titulação das terras da comunidade quilombola de Porcinos nos termos do Art. 68 do ADCT/CF-88 e Decreto 4887/2003.

O Quilombo de Porcinos localiza-se no município de Agudos, interior de São Paulo. Na zona rural, cercado por importantes agentes econômicos que fazem da região intensa área de especulação imobiliária. Com um passado marcado pela violência, fraudes cartoriais e grilagens, o Quilombo de Porcinos ainda tenta reverter essa realidade. Embora hoje as comunidades quilombolas tenham direitos diferenciados e todo um aparato legal, a comunidade, outra vez em sua historia, sofre com mais um processo expropriatório. Atualmente as terras da comunidade encontram-se em mãos de terceiros, e a comunidade dispersa pela região, pois em dezembro de 2010, às vésperas do Natal, sofrera uma violenta ação de reintegração de posse que a expulsou do último quinhão resguardado de seu território original. Hoje, em situação de extrema vulnerabilidade, que coloca em risco a continuidade do grupo, a comunidade aguarda providências dos órgãos responsáveis pelo reconhecimento e titulação. 

O Quilombo de Porcinos tem sua origem em 1886 no testamento de Antônio Baldino Ferreira e sua esposa, Francisca Candida de Jesus, proprietários da Fazenda Areia Branca, localizada no Distrito da Freguesia de Fortaleza, no então município de Lençóis. Casal sem filhos, transmite sua propriedade aos seus escravos. Porém, ao longo do século XX a comunidade sofrera com violento processo de expropriação que reduzira a 2 alqueires seu território original, a Fazenda Areia Branca, herdada por seus antepassados em forma de testamento, tendo como confrontantes a Duratex e a Brahma, além de grandes proprietários. Esses 2 alqueires que se foram com a reintegração de posse.

A origem e o percurso

O Quilombo de Porcinos tem sua origem em 1886 no testamento de Antônio Baldino Ferreira e sua esposa, Francisca Candida de Jesus, proprietários da Fazenda Areia Branca, localizada no Distrito da Freguesia de Fortaleza, no então município de Lençóis. Casal sem filhos, transmite sua proriedade aos seus escravos, “dos bens que possuem gosarem do uso e fructo dos mesmos bens ficando aos seus escravos Justino, Francisca e os filhos destes, Ritta, Quintiliano, Catarina, Julia, Serafim, Mariana, Camillo, Norberta, Boaventura, Anna, Joaquim e ingênua Carolina, e a escrava Luísa, todos libertos com a condição de servirem ao testador sobrevivente durante a sua vida, e que por monte desta ficarão como herdeiros universais, (…), devendo os mesmos bens serem nas mesmas condições transferidos a mesma prole em direito sucessório” . A referida fazenda fora transferida ao casal por dote de casamento, sendo registrada anteriormente em Botucatu, em nome de Leonel dos Santos Simões, como Fazenda do Ribeirão Pederneiras, em 1856.

Antônio Balduino faleceu logo após a elaboração do testamento e sua esposa falecera na década seguinte. A partir daí, é possível afirmar que com o recebimento da fazenda por testamento, os então escravos e seus descendentes passaram a ocupar a área com relativa autonomia. A história oral e a memória permite ainda inferir sobre arrendamentos que os ex-escravos faziam na área, dada sua extensão. Seguindo com a metodologia da história oral e memória, pode-se concluir que as primeiras décadas do século XX foram marcadas por violências – físicas e simbólicas – no que tange a permanência do grupo no território.

Em 1963 iniciou-se um processo de regularização das terras por usucapião, de forma incerta que merece estudo mais detalhado. Tal ação consta no Livro de transcrição das transmissões, número 3U, registro de imóveis da comarca de agudos, as fls 99, transcrição sob no. De ordem 12161, a 05 de fevereiro de 1970, um usucapião de 17 de novembro de 1969, usucapião requerida por Virgilio Porcino de Melo, sua mulher e outros, transitado em julgado em 31 de outubro de 1969, de área de 600 alqueires e 23.344 metros quadrados, ou seja 1454,3344 hectares. Na ação de usucapião em questão, é narrado o seguinte: 

“que, há quase oitenta anos, Antonio Balduino Ferreira e sua mulher Francisca Candida de Jesus, proprietários de extensas terras na região, por escritura testamentária, lavrada no desaparecido Distrito de Fortaleza e constante dos arquivos do ora extinto distrito de paz de Piatan, instituiram seus herdeiros universais, no concernente aos imoveis, a escravos libertos, e respectivos descendentes. Tais herdeiros universais eram antecessores dos ora peticionários e desde aquela época após a morte dos testadores exerceram posse de boa fé sobre os ditos imóveis, e que tal posse nunca foi questionada e assim se transmitiu aos descendentes, dos quais os suplicantes são os atuais representantes. Que a posse mansa e pacífica do imovel, contínua e tranquilamente desde mais de 30 anos. O animus domini é demonstrado não só pelas culturas benfeitorias e melhoramentos realizados nas terras como tambem pela construção de casas de moradias e cercas delimitatórias, bem como pelo pagamento dos impostos lançados e preitura das declarações para que a fazenda do estado pudesse cobra-los. Que assim sendo para suprir a falta de titulo de dominio tem os suplicantes a presente ação de usucapião fundada nos dispositivos legais supra citados. É esta a ação que vem propor para obtenção do reconhecimento de seu direito e para que possam manter devidamente legalizada a propriedade que há muitas décadas ocupam e que lhes pertence”.

Tem-se ainda os Autos da ação de arrolamento de bens deixados por falecimento de Antonio Porcino de Melo, em 14 de janeiro de 1964, onde conta o seguinte:

"Antonio Balduino Ferreira e sua mulher Francisca Candida de Jesus doaram conforme escritura de testamento lavrada em 31 de maio de 1886, as fls.24/25, a Justino Francisco e filhos, Rita, Quintiliano, Catarina, Julia, Serafim, Mariana, Camilo, Norberta, Boaventura, Anna, Joaquim, e a ingenua Carolina e Luiza, todos os seus bens”.

Para justificar a posse, arrolam testemunhas e confinantes. A título de ilustração da questão, vale mencionar que, de acordo com certidão do Município de Agudos, datada de março de 1963, na qual são arroladas três testemunhas, fica provada a descendência de escravos e herdeiros daqueles que ocupavam a área à época.

Olímpio Rondina é a primeira testemunha, e afirma que “os ora autores e requerentes eram proprietários daquela área de terra, sendo certo que teriam sido de seus pais e avós, (…) que os autores no curso destes anos todos tem feito benfeitorias na aludida propriedade, quer fazendo reconstruções, quer fazendo plantações e formando pastos”. A testemunha cita divisas e os nomes dos atuais ocupantes, descendentes do primeiro grupo de escravos que herdou por testamento tal área, já mencionados anteriormente.

A segunda testemunha arrolada, Jan Frederik Oewel, holandês, é o agrimensor que elabora mapa citado como constante no processo às folhas 24 dos presentes autos, sendo contratado pela empresa que pretende adquirir terras na região. Nesse ponto, é importante ressaltar as formas pelas quais se davam as negociações no período, realizadas por indivíduos em relações desiguais de poder. Seguindo com o depoimento, tem-se o seguinte: “essa gleba de terras teria sido doada por um senhor de escravos aos seus escravos, que foram antepassados dos ora requerentes, (…), que a gleba supracitada tem cerca de 600 alqueires”, e passa a citar os confrontantes e limites da área.

O terceiro depoente é Francisco Pereira, que afirma conhecer os requerentes e que “todos os requerentes possuem glebas em comum, sendo certo que todos ainda hoje lá habitam, e que aludida gleba tem 600 e poucos alqueires, (…), que os requerentes são donos da aludida gleba que lhes foi transmitida pelos próprios pais”. Ressalta ainda que “ele depoente sabe que os requerentes tinham gleba de uso comum e é certo que os pretos ficaram com gleba de 600 e poucos alqueires. (…) os requerentes nas terras da presente ação fazem plantações e pastagens”. Nesse excerto pode-se concluir que a comunidade, além de presente no território mencionado, exercia a posse com base em área de uso comum, o que a memória dos atuais descendentes também permite concluir.

A análise dos presentes autos da ação de usucapião evidencia a origem do grupo e atesta sua descendência dos escravos herdeiros da fazenda no testamento, bem como a ocupação de 600 alqueires nas áreas da antiga Fazenda Areia Branca, como já demonstaram os depoimentos citados anteriormente, e como coloca a seguinte passagem: 

“por direitos sucessórios oriundos de testamento feito por Antonio Balduino Ferreira em 30 de maio de 1886 de doação feita por sua mulher ambos em favor dos ex escravos do casal, rita de tal e outros, conforme escritura pública de 08/04/1893 transcrita no registro imobiliario da comarca de Bauru sob o número 1035 em 15/01/1913. e ainda por direito de sucessões porteriormente abertas aos referidos testamento e doação, sucessões estas relativas aos seus descendentes, ascendentes, conjuges, irmãos e tios dos outorgantes, senhores e legíitimos possuidores de uma gleba de terra de terceira categoria com área certa e determinada de 600 alqueires e 23344 metros quadrados, ou 1454 hectares, situadas na antiga Fazenda Areia Branca, no lugar denominado Piatan, antigo Distrito de Espírito Santo de Fortaleza”.

É apresentado o memorial descritivo da área “certa e determinada” de 600 alqueires e 23.344 metros quadrados”, conforme certidão do Cartorio do 2o oficio aos 06 de maio de 1963. Fica, portanto, evidente a origem do grupo e a legitimidade da área enquanto de comunidade remanescente de quilombo.

O reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombo

A comunidade de Porcinos está registrada no Livro de Cadastro Geral no.011, registro no,1110, fl. 126 da Fundação Culural Palmares. Publicado no DOU de 31 de dezembro de 2008, portaria no.111.

Em 14 de agosto de 2007, uma das lideranças do Quilombo de Porcinos, Luiz Francisco Melo, entra em contato com o ITESP, alegando que tivera conhecimento, através de sua participação na Agrifan, de direitos que sua comunidade teria enquanto remanescente de quilombo. Nesse contexto, foi realizada visita técnica por este órgão em 19 de dezembro de 2007, tendo como conclusão que 30 famílias remanescentes de escravos ocupavam no momento da visita área de 3 alqueires restantes de doação realizada por testamento do senhor de escravos. Nessa ocasião o ITESP encaminha para que o INCRA tome as devidas providências, por haver existência de títulos legítimos em terras particulares em favor das famílias quilombolas.

Em 30 de setembro de 2008 o INCRA abriu o Processo Administrativo no. 54190.001188/2008- 16. para reconhecimento e titulação da Comunidade Remanescente de Quilombo Espirito Santo da Fortaleza de Porcinos. Neste, constam a certidão de auto reconhecimento da comunidade enquanto quilombola, o estatuto social da associação, a ata de fundação da associação, bem como um oficio ao delegado do serviço registral de Agudos, de 13 de novembro de 2008, solicitando, desde a origem até os titulos atuais, a transcrição no. 1035, do livro 3-a, as fls.333, de 15 de janeiro de 1913. Na referida certidão consta que Francisca Candida de Jesus doa, em 08 de abril de 1893, 

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“uma parte de terras que constitui a metade da Fazenda denomida Areia Branca, distrito de Fortaleza, comarca de Bauru, e da metade da benfeitorias da mesma fazenda, constantes uma casa de morada, três pastos gramados, monjolo e um engenho de cana A Quintiliano Antonio Ferreira, Serafim Antonio Ferreira, Camilo Soares Ferreira, Boaventura Jose Ferreira, Joaquim Antonio Ferreira, Rita Thereza do Carmo, Catharina Maria Francisca de Jesus, Juliana Maria Francisca, Mariana Francisca de Jesus, Norberta Francisca de Jesus, Anna Thereza de Jesus, Carolina Maria Francisca, ex-escravos”.

Em 16 de julho de 2008, o INCRA constitui grupo de trabalho composto por procuradora regional, engenheiro agrônomo, antropólogo, e analista processual. Grupo de trabalho este que nunca esteve na comunidade e nunca iniciou os procedimentos de reconhecimento e titulação. Em 11 de agosto de 2009 , o DPA da FCP alega que foi identificada a existência da comunidade quilombola de Porcinos, porÉm “face a ausência das coordenadas geográficas da comunidade e de técnicos qualificados no âmbito desta FCP para análise técnica quanto a sobreposição do territorio quilombola, não temos como precisar exata localização da comunidade, a fim de subsidiar o procedimento administrativo”. Em 17 de dezembro de 2009 em resposta a ofício da associaçao do quilombo de Porcinos, o INCRA alega que o processo “está sem novos andamentos, por tratar-se de processo de verificação da área quilombola, outrossim, em substituição, foi aberto e apensado um processo de reconhecimento e titulação da Comunidade Remanescente de Quilombo de Espirito Santo Fortaleza de Porcinos, que recebeu o número 541920.003805/2008-18, que encontra-se em andamento passando a ser o principal”. 

Em 02 de dezembro de 2010, no âmbito da reintegração de posse, processo no.0001914.06.2011.403.6108, ajuizada por Lygia Bertoli contra a comunidade quilombola de Porcinos, o juiz de direito da comarca de Agudos, pelo mandado de citação e intimação no. 3323/2010, em 02 de dezembro de 2010, para audiência de conciliação em 21 de dezembro. Neste processo há incidente de falsidade por parte da autora Lygia Bertoli, que alega que Antonio Porcino Filho cede direito de meação e hereditarioso decorrente do falecimento de Augusta Porcina de Melo, Luiza Maria da Conceição, porém não poderia dispor dos bens, e ha traços não caracteristicos, como a assinatura do falecido Antonio, sendo que não tinha este como ter a firma reconhecida, era anafalbeto e tinha problemas de visão. Essa ação vem de 1985, quando a comunidade foi surpreendida por uma ação de reintegração de posse de Lydia Bertoli Neto, que lá nunca esteve. Em 1999 essa ação foi julgada em favor da comunidade. Porém, em 2010, foram novamente surpreendidos. Em 21 de dezembro de 2010, na audiência de conciliação, o juiz defere a liminar determinando a reintegração de posse e oficiando reforço policial, com prazo de 15 dias para contestação. 

Em 22 de dezembro de 2010, a reintegração de posse é cumprida, e a comunidade expulsa do seu último espaço de resistência de seu território tradicionalmente ocupado, e de direito. Em 23 de dezembro de 2011, INCRA oficia ao juiz de Agudos informar que tramita o processo de reconhecimento e titulação do Quilombo de Porcinos, alega que “há fortes indícios que a area ora em litígio se sobrepõe a area reivindicada pela comunidade quilombola”. Todavia, coloca que “o INCRA não pode se manifestar conclusivamente por ora se a área em litígio se sobrepõe a área quilombola, tendo em vista que se faz necessário aguardar a finalização dos trabalhos de identificação e delimitação”. Pede que seja integrado na lide como assitente litisconsorcial e que a competência da Justiça Federal.

Em 23 de maio de 2011, o INCRA manifesta-se alegando que, em face da demanda por RTIDs, “não há como precisar uma data limite para a produção do RTID da comunidade de Porcinos”. Em 16 de dezembro de 2011, o INCRA alega que “face a enorme demanda de trabalhos e o pequeno contingente técnico disponível ainda não foi possível finalizar os trabalhos de reconhecimento necessarios a delimitação territorial da comunidade de Porcinos”, e pede a suspensão da liminar de reintegração de posse em favor da parte autora para que os membros da comunidade de Porcinos possam retornar a área de chacara Porcinos, sendo condição essencial para sobrevivência da comunidade e de seus modos de vida até que sejam conluídos os trabalhos de reconhecimento de seu território tradicional pelo órgão fundiario responsável. Contudo, é sabido que até o presente momento o INCRA não iniciou os procedimentos e os estudos, e sequer tem previsão para a abertura de tais trabalhos.

desenvolvimento

Atribuir identidade quilombola a determinado grupo e dar-lhe direitos fundiários levanta a questão do redimensionamento do próprio conceito de quilombo. No momento em que o Estado reconhece um grupo como remanescente de quilombo fixa uma identidade não só política, administrativa e legal, mas também identidade social, permitindo assim direito a uma identificação étnica, que é veículo de obtenção de direitos diferenciados. Desse modo, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 instituiu um novo sujeito social, um novo sujeito político etnicamente diferenciado a partir dos direitos instituídos por meio do artigo citado. Tal disposição do Estado em institucionalizar a categoria evidencia a tentativa de reconhecimento formal de uma transformação social considerada como incompleta. A institucionalização incide sobre resíduos e sobrevivências, revelando as distorções sociais de um processo de abolição da escravatura limitado, parcial. Com isso, portanto, vem à tona a necessidade de redimensionar o conceito de quilombo, que deixa de ser considerado unicamente como categoria histórica ou definição jurídica formal para se transformar, nas mãos de centenas de comunidades rurais e urbanas em instrumentos de luta pelo reconhecimento de direitos territoriais de modo que possa abranger a variedade de situações de ocupação de terras por grupos remanescentes, para além da noção de fuga e de resistência. A conversão simbólica do conceito de quilombo engendrada a partir do preceito legal cria então novo sujeito, no contexto de lutas sociais que fazem da lei o seu instrumento; o quilombo é metamorfoseado e ganha funções políticas, como instrumento de luta pela terra. Desse modo, criase, como o Artigo 68, a categoria remanescente de quilombo, e institui este como sujeito de direitos fundiários e direitos culturais. E na medida em que a condição de remanescente de quilombo abarca elementos de identidade e sentimento de pertença a um grupo e às terras determinadas, entram no debate sobre o conceito de quilombo considerações acerca da etnicidade e da territorialidade. O conceito é cercado por inúmeras referências, e a aplicação do Artigo 68 gerara demandas quanto à definição do termo, na medida em que novas figuras legais, novos sujeitos de direito, penetram o direito positivo. Ressemantizar o conceito de quilombo fez-se então necessário para discernir critérios de identificação das comunidades remanescentes, tanto no plano conceitual quanto no plano normativo, agindo, portanto, em universos de referência distintos, o da análise científica e de intervenção jurídica. O conceito de quilombo fora fortemente disseminado na década de 1970, reapropriado pelo Movimento Negro como símbolo da Resistência Negra, física e cultural, estruturado não só na forma de grupos fugidos durante a escravidão, mas também na forma ampla de quaisquer grupos tolerados pela ordem dominante do período. O quilombismo concretiza-se então na década de 1980, e o ano do centenário da abolição, 1988, coincide com o ano da promulgação da carta constitucional. O conceito é, portanto, cercado por inúmeras referências, e a aplicação do Artigo 68 gerara demandas quanto à definição do termo. Em 1740, o Conselho Ultramarino definiu quilombo como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Nesse ponto, vale ressaltar brevemente a crítica que aponta como bases dessa definição noções de fuga, isolamento geográfico, com moradia habitual, o “rancho”, e autoconsumo e reprodução, simbolizados pelo “pilão”, bem como uma quantidade mínima. Assim, a existência do quilombo pressupõe independência, indica que a produção é autônoma e livre da influência do senhor da terra, engendrando ainda relações com o comércio local. A caracterização do Conselho Ultramarino influenciara geração de estudiosos do assunto até meados da década de 1970 períodos no qual a literatura quilombola aparece marcada com atribuições a um tempo histórico passado, cristalizado na vigência do regime escravocrata brasileiro e caracterizado como negação deste sistema, como resistência e isolamento somente. São, portanto, trabalhos que não abarcam a diversidade de relações engendradas entre escravos e sociedade livre, tampouco consideram as distintas formas de ocupação e uso da terra.

Em suma, o conceito de quilombo fora submetido a inúmeras reapropriações simbólicas, até que ganhara, com a definição da Associação Brasileira de Antropologia, em 1994, uma interpretação que se tornou dominante, a partir da nova significação que lhe era dada pela literatura específica e por entidades civis. Tomou-se então remanescentes de quilombo como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”, e a identidade como “uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados”. Remanescentes de quilombos formam então grupos étnicos, “tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”, onde o tanto o uso comum caracteriza a territoriedade quanto a “sazonalidade das atividades agrícolas, extrativistas e outras”, e a ocupação do espaço tem “por base os laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade”. Vale ainda destacar que a formação destes territórios é mediada por uma pluralidade de formas de acesso e usufruto, construído coletivamente e moldado por uma memória e por práticas culturais peculiares a cada situação. A Fundação Cultural Palmares toma quilombos como “sítios historicamente ocupados por negros que tenham resíduos arqueológicos de sua presença, inclusive as áreas ocupadas ainda hoje por seus descendentes, com conteúdos etnográficos e culturais”. Passa então do “Modelo Palmares”, vinculado à idéia de resistência, contra aculturação, reprodução do mundo africano, luta de classes, autonomia e isolamento, às situações concretas e documentadas, fazendo uso de manuscritos e de fontes orais. A noção de remanescente é reconhecida como dispositivo constitucional que dá sentido de existência coletiva, sendo categoria temporal, visto que é situacional, é contingencial. A ressemantização do termo quilombo caminha no sentido da afirmação de sua contemporaneidade, na linha da existência de uma identidade coletiva, com referência histórica comum e valores compartilhados. As propostas vão a um novo reconhecimento, evitando dar-lhe significação que reproduza repressão ou que lhe idealize; toma então situações sociais específicas, com finalidades de garantia da terras e afirmação de identidade própria. Ressemantizar o quilombo é, portanto, abandonar sentidos que lhe são dados por meio da legislação colonial, deixar o simbolismo que o cerca, que lhe é dado tanto pela literatura acadêmica – sobretudo da década de 1970, influenciada pelo marxismo – quanto por movimentos negros; é deslocar o conceito de sua significação simbólica original, que apresenta uma mescla com confronto com emergência de identidade. A caracterização do quilombo como expressão da negação do sistema escravocrata, como lócus da resistência e isolamento dá lugar às novas definições, tendo em vista que as clássicas oposições não abarcam todas as dimensões da sociedade escravista, tampouco do contexto da emergência dos remanescentes no Brasil democrático. No que tange aos Grupos étnicos, tem-se que são categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores, e assim têm característica de organizar a interação entre as pessoas. Sendo assim, figura um campo de comunicação e de interação, possuindo um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como se constituísse uma categoria diferenciável de outras categorias de mesmo tipo. Portanto, não se definem grupos étnicos a partir de sua cultura, embora a cultura seja essencial na etnicidade, e sim define em termos de adscrição: quem se considera e é considerado. A cultura não é algo dado ou posto, e sim algo constantemente reinventado, recomposto, e ressignificado; de onde decorrem processos – símbolos e signos são selecionados para promover significação nova e rearranjos. Portanto, a cultura não é pressuposto dos grupos étnicos, e sim produto deles, e a etnicidade é melhor compreendida quando tomada em situação, e como forma de organização política. Será então categoria usada por agentes sociais para os quais é relevante, sendo forma de reivindicação cultural e de protesto político. Em suma, os grupos são tomados como formas de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados como pertencentes, constituindo uma categoria distinta dentre categorias de mesma ordem. Grupos étnicos distinguem-se de outros grupos – religiosos, de parentesco, etc. – na medida em que se entendem a si mesmo e são percebidos pelos outros como contínuos ao longo da historia, provindos de mesma ascendência, e entendem-se como portadores de uma cultura que os diferencia dos demais, fixação de símbolos identitários que estruturam a crença em uma origem comum. O que o diferencial da identidade étnica frente às outras formas de identidade coletiva é a orientação da mesma ao passado, no qual se representa a memória coletiva, 

uma história mítica, com significações imaginárias sociais que dão, por sua vez, sentido à organização e interações sociais. Tomando o conceito de grupo étnico, substituindo raça por etnicidade, a definição de remanescente de quilombo deixa de ser calcada em critérios subjetivos, tais como descendência ou cor da pele, e contextuais, estes que refletem racismo e exclusão. Essa noção de grupo étnico associa-se à idéia de afirmação de identidade quilombola, sintetizada pela noção de auto atribuição. Nesse sentido abandona-se o naturalismo que vem com a noção de raça, e deixa de lado o forte historicismo; o que se vê é uma mudança nos valores socialmente atribuídos, e tomando o termo etnia vai-se a critérios organizativos, que apontam às tendências de identificação, reconhecimento e inclusão. No que diz respeito à territorialidade, ela converge para a delimitação de território étnico determinado, cognominado terras de preto e terras de santo, que significam territórios específicos e extrapolam a expressão e as classificações atribuídas pelo Estado; englobam singularidades e dimensão simbólica, contendo modos particulares de utilização de recursos naturais e grades de acesso à terra. Um dos campos de referência para a discussão é representado pela análise sobre terras de uso comum, submetida a variações locais com denominações específicas, conforme a auto representação e auto nominação de cada grupo, enfatizando a condição de coletividade, baseada no compartilhamento do território e da identidade. As Terras de Preto, de origem variada, são tidas como domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, por famílias de escravos. Já no caso das Terras de Santo, o que se vê são responsabilidades simbólicas entre os membros do grupo com divindades, em relações travadas diretamente e de caráter contratual. As divindades são as verdadeiras proprietárias do espaço, enquanto os devotos as servem e garantem a manutenção das terras, de formas diversas. A identidade é construída em correlação ao território, e dessa relação se cria e se informa o direito à terra. Os critérios de acesso e legitimação da propriedade devem estar presentes ao longo do processo de reconhecimento, protegendo-se do movimento de homogeneização imposto pelo ordenamento jurídico, de modo a aproximar o olhar sobre a singularidade da situação. As orientações relacionadas às construções identitárias estão inscritas nos agentes e nos territórios, e 

são evidenciadas por meio da memória, da ação e da prática, permeadas pelo universo simbólico dos agentes, categorias e regras mediantes as quais pensam e representam sua existência. Portanto, o território socialmente ocupado tem sentido vital para o grupo e indica relações travadas por seus membros, que envolvem a solidariedade, parentesco, religiosidade, ritualidade festiva e expectativas que são projetadas sobre ele. A religião interrelaciona-se com o território, carregado de símbolos, significados e imagens: é instrumento de reprodução de agentes sociais, e passa a ser compreendido em sua flexibilidade, elasticidade formal e de conteúdo, expressas nas relações que desenvolvem com noções de tempo e espaço, onde a característica fundamental não é pautada em qualquer rigidez, visto que são relações marcadas por modificações, junções e fragmentações designam territorialidades especificas, no contexto da construção histórica do espaço pelo tempo, em uma rede de significações simbólicas, onde a descendência – o passado – e a resistência – o presente – comprovam a ancianidade e dão existência concreta à história. Toma-se o conceito de grupo étnico, que se associa à idéia de identidade quilombola, sintetizada pela noção de auto-atribuição, e vai-se a critérios organizativos que apontam às tendências de identificação, reconhecimento e inclusão, fazendo disso instrumento político para reivindicações. A noção de territorialidade vem à tona, convergindo para território determinados etnicamente, contendo modo particular de uso de recursos, com a idéia de uso comum. Os critérios de pertença na interação social, em relação com a questão da identidade coletiva e, por conseguinte, a questão específica da etnicidade, voltam-se à problemática da fixação de símbolos identitários que estruturam a crença em uma origem comum – o diferencial da identidade étnica frente às outras formas de identidade coletiva é a orientação ao passado, no qual se representa a memória coletiva, uma história mística, com significações que dão, por sua vez, sentido à organização e interações sociais. A posse das terras é então tomada como repertório de expressões peculiares que se distinguem das disposições jurídicas formais de propriedade e titulação, evidenciando territorialidades carregadas de especificidades que fogem à estrutura agrária. Territórios específicos se interpenetram simbolicamente, sendo construídos historicamente e legitimados por um sistema de relações sociais intrínseco a cada comunidade, o que extrapola o reconhecimento oficial, escapa à judicialização e resiste à homogeneização posta por procedimentos administrativos do Estado. 

Conclusões da Nota Técnica

Após estudos realizados para fins de elaboração da presente nota técnica, pode-se afirmar que:

1. As terras da Antiga Fazenda Areia Branca foram herdadas pelos escravos por meio de testamento, em 1886, e foram efetivamente ocupadas por escravos, ex-escravos e seus descendentes, formando uma territorialidade específica e um campo de ocupação predominantemente negro.

2. No espaço territorial correspondente às terras da Fazenda Areia Branca e seu entorno, os escravos e seus descendentes desenvolveram uma forma de organização social própria, com relativa autonomia econômica, integração ao mercado, relações de parentesco, compadrio e vizinhança como fatores centrais de sociabilidade.

3. Os atuais moradores reconhecem o vínculo existente com esse passado escravo. Os habitantes da comunidade, no momento da reintegração de posse e hoje dispersos, apresentam relações de parentesco com os escravos citados em testamento, sendo, portanto, os herdeiros das terras.

4. A condição compartilhada pelos membros do grupo diz respeito à descendência do primeiro grupo de escravos que herdam a fazenda, operando como elemento distintivo e definidor da identidade do grupo, inclusive no tange ao nome da comunidade, Porcinos, que remete à atuação profissional do ancestral, sendo este, juntamente com o sobrenome Melo, que também remete ao núcleo de origem, diacríticos de pertencimento que são carregados no nome.

5. A comunidade reconhece-se como pertencente a um mesmo e único universo que se relaciona com modos específicos com a sociedade envolvente, e reconhece-se enquanto “comunidade remanescente de quilombo”, apresenta sua certidão de auto reconhecimento e pleiteia a titulação das terras nos termos do Artigo 68 do ADCT.

6. As complexas redes de relações sociais constituídas nesse espaço ao longo de pelo menos duzentos anos delimitaram uma territorialidade específica, com elementos do uso comum, elementos, práticas, símbolos, representações e ações singulares, que diferenciam a comunidade e marcam elementos do grupo étnico.

7. Os atuais remanescentes de quilombo de Porcinos encontram-se dispersos, em situações delicadas, absorvidos por processos de favelização, situações estas que colocam em risco a existência e continuidade do grupo.

8. No plano social, quando o grupo ocupava o território, os laços se estabeleciam de maneira plena, durante celebrações populares, plantio e colheita, criação de animais e cultivo das roças, momento em que se articulavam redes de parentesco e sociabilidade, trocas e atualizações de pertencimento, dos moradores do local e daqueles descendente que residiam fora do espaço.

9. As terras que foram objeto da reintegração de posse representavam o único e último quinhão de terras que restou aos remanescentes de escravos com o intenso processo de perda fundiária ocorrido ao longo do século XX. Após a perda desse espaço, a comunidade dispersou-se e corre o risco de desintegrar-se enquanto grupo étnico. Tal quinhão, apesar de aparentemente isolados entre grandes propriedades, remonta a um território maior, área da antiga Fazenda Areia Branca, e os descendentes referem-se a várias localidades, os territórios da memória, que fizeram – e fazem – parte do extenso território constituído e cultivado por seus antepassados, perdidos ao longo do século.

10. A comunidade é representada pela Associação Espirito Santo da Fortaleza Porcinos, fundada em 25/07/2008, com sede na CRT 213 C Alimentadora Brahma, no. 97, e escritório na Rua Andrade Neves, Santa Cecília, ambas no município de Agudos, São Paulo.

11. Foi identificada demanda por reconhecimento de direitos territoriais nos termos do Artigo 68 do ADCT/ CF-88, objetivada em termos de extensão. Contudo, a primeira demanda da comunidade é retornas aos 2 alqueires que ocupava, o último quinhão alvo da reintegração, por figurar essa situação emergencial, e sequencialmente o grupo solicita continuidade da atuação dos órgãos responsáveis pelo processo de reconhecimento e titulação com vistas a esclarecimento e consolidação da demanda territorial.

12. A base da reivindicação do grupo está, no momento, posta em termos do retorno às terras objeto da reintegração, e expansão dos limites da área, uma vez que ela se refere à cerca de 5% do território original, de modo a que se possibilite melhor distribuição das residências e retorno das famílias hoje dispersas pela região, garantindo espaços livres para a implantação de moradias para as novas gerações.

13. Considerando ser de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária a responsabilidade legal, e dispõe de equipe de apoio cartográfico, os trabalhos relativos à produção de mapas históricos e situação do pleito devem ser iniciados, assim como devem ser elaborados levantamento fundiário e da cadeia dominial, bem como o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, em caráter de urgência, uma vez que a comunidade encontra-se fora de seu território original, com sérios riscos à sua continuidade enquanto grupo étnico e portador de direitos diferenciados e assegurados tanto por convenções internacionais quanto pela Constituição Brasileira.

14. A relação de pertencimento está intimamente relacionada a um lugar no espaço, no qual os grupos asseguram sua reprodução, biológica e social, e sua permanência cultural, social e econômica. É através da interação do grupo com o espaço que a expressão identitária é assegurada. A terra e seus recursos naturais são apropriados pelos grupos étnicos, no caso por quilombolas, como uma espécie de patrimônio coletivo, sem valor comercial e cuja propriedade assegura a manutenção dos marcos de referência de sua história. As comunidades quilombolas possuem territorialidade específica, ou seja, formas próprias de apropriação e uso dos recursos naturais, diferentemente daquelas que predominam em sociedades organizadas através de valores eurocêntricos. Território, cultura, identidade e direito estão interconectados. Romper essa interconexão equivale a condenar as comunidades ao desaparecimento, físico e cultural, e violar direitos constitucionalmente assegurados. É o que se vê no caso em questão, a comunidade quilombola de Porcinos, situação que demanda urgência no andamento dos procedimentos de reconhecimento e titulação pelos órgãos competentes.

Para acessar e baixar a Nota Técnica na íntegra clique aqui.

https://agudosquilombo.files.wordpress.com/2013/06/nt_porcinos-0107-2.pdf

Para apoiar: Petição para que a comunidade quilombola volte às suas terras

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Sobre a autora
Rebeca Campos Ferreira

Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Graduanda em Direito, Bacharel em Ciências Sociais (USP), Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (USP), Professora voluntária da UNEAFRO Brasil e Perita em Antropologia do Ministério Público Federal (MPF).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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