EXMO. SR. DR. JUIZ FEDERAL DA ___ VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP
1. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei (artigo 6º do CPC).
2. No entanto, no recente Parecer nº 1/2013/ORLJ/CGU/AGU, o Advogado-Geral da União reconhece que a cobrança de honorários pela União carecem de base legal.
3. Logo, a União é parte ilegítima na execução dos honorários dos advogados da União, o que é matéria de ordem pública e pode ser alegada de ofício e em qualquer grau de Jurisdição.
A PARTE, já qualificada nos autos, vem, respeitosamente, perante V. Excelência, opor a presente
EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE
contra a União Federal, que executa em seu nome e em violação ao devido processo legal os honorários dos advogados de sucumbência.
I – DA ILEGITIMIDADE AD CAUSAM ATIVA DA UNIÃO
A tese veiculada nessa defesa é nova, porém seus fundamentos são bastante conhecidos. A ninguém é dado pleitear direito alheio em nome próprio sem lei que lhe autorize (art. 6º do CPC).
Trata-se da regra processual de legitimação extraordinária que impede que pessoas distintas, mas em situações de proximidade, litiguem em juízo pelo direito uma da outra. A jurisprudência pátria é rica em exemplos:
TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO. SÓCIOS-GERENTES. PRESCRIÇÃO. ART. 6º DO CPC. ILEGITIMIDADE DA EMPRESA PARA POSTULAR DIREITO DOS SÓCIOS.
1. Nos termos do artigo 6º do CPC "Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei".
2. A personalidade jurídica da sociedade não se confunde com a personalidade jurídica dos sócios. Dessa forma, a sociedade executada não tem legitimidade para pleitear o reconhecimento da prescrição intercorrente com relação às sócias.
3. O reconhecimento da prescrição com relação às sócias em nada aproveita à sociedade empresária. Ausência de interesse jurídico.
Recuso especial improvido.
(REsp 1393706/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 18/09/2013)
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENA DE PERDIMENTO DE BENS. PLEITO DE LIBERAÇÃO DOS BENS DA PESSOA JURÍDICA. ILEGITIMIDADE. NOME PRÓPRIO DIREITO ALHEIO. RECURSO DESPROVIDO.
I. Nos termos do art. 6º do Código de Processo Civil, o recorrente não detém legitimidade para postular eventual violação de direito líquido e certo, visando ao desbloqueio de bens das pessoas jurídicas, mesmo que figure na qualidade de sócio.
II. O recorrente é parte ilegítima para oferecer imóveis das pessoas jurídicas como garantia para cumprimento da pena de perdimento de bens em substituição dos bens seqüestrados que pretende sejam liberados.
III. Recurso desprovido.
(RMS 31.387/RO, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 01/03/2012, DJe 19/03/2012)
O caso dos autos é mais um.
Não se desconhece que existe jurisprudência afirmando que os honorários da União se incorporavam ao patrimônio público. Não há problema algum que a lei adote essa solução, que é até comum no meio privado, quando o empregador, muitas vezes, assume 100% dos honorários de sucumbência de seu advogado, conforme contrato de trabalho.
No entanto, a Advocacia-Geral da União chamou a atenção da comunidade jurídica com o Parecer nº 1/2013/ORLJ/CGU/AGU, em anexo, ao concluir que não existe base legal para a União auferir como seus os honorários dos advogados da União. Logo, falta à União ilegitimidade ad causam ativa para execução da verba, que é matéria de ordem pública.
Em outras palavras, a Administração Pública, que está atrelada à legalidade estrita, admitiu que cobra honorários à revelia da lei.
É oportuno registrar que, no julgamento das Reclamações nº 5.133, nº 7.181 e nº 13.195, o Supremo deixou bem claro que as posições processuais do ente público e de seu advogado são distintas. E se são diferentes, há um plexo de direitos e deveres que decorrem dessas posições e não se confundem, a exemplo da titularidade da verba honorária.
Seja como for, se inexiste lei, há duas saídas: continuar legitimando a cobrança desses haveres de forma ilegal pela União ou respeitar o patrimônio dos particulares, que é protegido como direito fundamental, e reconhecer a inexigibilidade dessa cobrança, por afronta ao devido processo legal, até regulamentação da matéria.
Com efeito, a atividade financeira do Estado[1], que consiste na obtenção de dinheiro para custear as necessidades públicas, está plenamente submetida à Constituição, que disciplina a atuação desse ente todo poderoso – a União Federal – nas relações e interferências sobre as atividades econômicas particulares.
O Estado pode obter dinheiro quando explora atividades econômicas, que estão reservadas aos particulares por força da livre-iniciativa, se necessário for para atender imperativos de segurança nacional ou relevante interesse público, conforme definido em lei (art. 173 da CF).
O Estado também pode fazer dinheiro exigindo dos particulares tributo sobre fatos de repercussão econômica (art. 150, I da CF), ou mesmo mediante o endividamento público, pela emissão de títulos, pela realização de operações de crédito ou concessão de garantias (art. 48, II da CF), conforme definido em lei.
Em todos os casos, é sempre a lei que permite o Estado auferir receita, seja pela exploração direta de atividades econômicas ou de seu patrimônio (receitas originárias), seja mediante gravames impostos à atividade dos particulares ou pelo endividamento público (receitas derivadas). A atividade financeira do Estado, por razões que chegam a ser óbvias diante de seu poder supremo em face do cidadão, está estritamente atrelada à legalidade, que é o primeiro limite ao poder.
II – DA VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Em âmbito federal, há outra subversão constitucional. A União cobra honorários para si por entender que eles são, como a herança vacante, uma res nullius ou coisa de ninguém (Parecer GQ 24/94 da AGU).
Ora, res nullius são coisas sem dono. Como não pertencem a ninguém, adquire sua propriedade o primeiro que delas se apossar (art. 1263 do Código Civil). É curioso e, no mínimo, desrespeitoso chamar o dinheiro e os bens dos brasileiros, no montante que se sub-roga na condenação na verba honorária, de coisas sem dono. Nessa lógica perversa, como chegou primeiro, a União, mesmo sem autorização legal, avança contra a propriedade das pessoas, que deveria ter tratamento como um direito humano fundamental, mas as transforma “coisas de ninguém” para dela se apossar e incrementar os números do superávit primário.
Embora o Parecer nº 1/2013/ORLJ/CGU/AGU pretendesse superar essa “falta de dono” do dinheiro cobrado pela União a título honorários, dizendo que ele não é mais coisa de ninguém, não conseguiu dizer de quem era até o presente momento porque concluiu que a matéria depende de lei. Na verdade, disse que a única regra legal que existe sobre o tema, o art. 23 da Lei nº 8.906/94, não tem incidência sobre os advogados públicos porque o art. 4º da Lei nº 9.527/97 “parece ter pretendido afirmar”[2] justamente essa exclusão. Mesmo não querendo mais tratar o dinheiro extraído do patrimônio particular como coisas de ninguém, a manifestação oficial conclui que lei é necessária para atribuir a titularidade desses haveres à União.
A opinião oficial da Advocacia-Geral da União não poderia ter sido mais contundente para ratificar a tese da defesa: não existe lei que ampare a apropriação dos honorários de advogado pela Administração Pública e, consequentemente, não existe autorização legal para investir contra o patrimônio dos particulares e obter dinheiro para os cofres públicos. A necessidade de lei reconhecida pelo parecer da AGU representa a assunção oficial, pelo órgão jurídico do Poder Executivo, da violação do devido processo legal constitucional (art. 5º, LIV da CF).
O vício que infirma a execução dos honorários pela União relaciona-se também com o devido processo legal qualificado, com o devido processo constitucional, que se refere não apenas à observância de um procedimento, mas a todo o esquema de estruturação do Estado e regramento do poder. Segundo Gilmar Ferreira Mendes[3], “o princípio do devido processo legal possui um âmbito de proteção alargado, que exige um fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas, constitucionalmente, como essenciais à Justiça”.
Minha preocupação, no entanto, debruça-se sobre outro aspecto bastante turvado pelo embate da União contra seus advogados espoliados: trata-se dos direitos fundamentais do executado, em especial do cidadão condenado a pagar as despesas decorrentes do ônus de sucumbência, em face da cobrança de honorários pela Fazenda Nacional.
Pareceres que valem como Decretos. Propriedades que se tornam coisas de ninguém. Atuação do Estado à margem da lei. Em matéria de honorários de advogado, não foram poucas as ficções jurídicas utilizadas para submeter a Constituição à conveniência dos governantes na sanha arrecadatória para aumentar o superávit primário. Trata-se de dinheiro auferido sem previsão legal e, consequentemente, sem regulamentação ou fiscalização específicas.
À Justiça resta uma escolha: ou corrobora, como quem repete um mantra, que os honorários integram o patrimônio da Administração Pública mesmo inexistindo lei nesse sentido (Parecer nº 1/2013/ORLJ/CGU/AGU) ou faz valer a vontade da Constituição e proteja os direitos fundamentais dos jurisdicionados até regulamentação da matéria pelo Congresso Nacional.
A tese é nova. E as esperanças também são renovadas.
III – CONCLUSÃO
Do quanto exposto, a União não pode cobrar honorários em seu próprio nome por um problema de ilegitimidade ativa ad causam (arts 6º, 295, II, 267, VI, 475-L, IV, 598 e 741, III do CPC) ou por violar o devido processo legal (art. 5º, LIV da CF). Por isso, requer a extinção da execução dos honorários por inexistir base legal que atribua esse valor a algum sujeito, na linha do Parecer nº 1/2013/ORLJ/CGU/AGU.
São Paulo/SP, 03 de abril de 2013.
Notas
[1] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 6.
[2] O art. 23 da Lei nº 8.906/94 encontra-se no título VI do Estatuto da OAB, cuja incidência sobre os advogados públicos não foi afastada pelo art. 4º da Lei nº 9.527/97 que se referiu, expressamente, ao título V do Estatuto.
[3] MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 642