Com a publicação da Lei 14.454/2022 no Diário Oficial da União esta semana, tivemos mais um capítulo (e talvez o último) da novela do rol da ANS. A referida lei firmou de forma expressa o entendimento de que o rol da agência é exemplificativo, cassando pela via legislativa (e em tempo recorde) o entendimento pela taxatividade do rol, que foi firmado em julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em junho deste ano.
Antes da decisão do STJ, os planos de saúde insistiam na taxatividade do rol, negando uma série de terapias e tratamentos e restringindo a cobertura ao sempre defasado rol da ANS, e não à Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID) da OMS. Contudo, o entendimento majoritário da justiça era do rol exemplificativo, revertendo as negativas das operadoras.
Contudo, estas decisões beneficiavam somente os usuários que procuravam a justiça (ou seja, a minoria). Portanto, a insistência dos planos de saúde na tese da taxatividade se mostrava muito lucrativa, embora causadora de muito sofrimento para os enfermos e suas famílias. E mesmo com a minoria de casos sendo judicializados, o passivo gerado na justiça chegou a 1,3 bilhão por ano, onerando os cofres públicos e congestionado ainda mais o judiciário.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre 2015 e 2020 foram ajuizadas mais de 2,5 milhões de novas ações para acesso à saúde. Segundo o STJ, 73% das demandas no tribunal são contra os planos de saúde. E conforme estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP), 92,4% das ações contra os planos terminam com a sua condenação. Mas ainda sim, as operadoras mantinham a prática, por ser lucrativa.
Neste sentido, cumpre chamar a atenção ao papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma das responsáveis pela gravidade do quadro. Pois quando a agência não se omite, ela ratifica as absurdas práticas das operadoras, tornando a justiça ou o atendimento pelo SUS os únicos caminho aos doentes.
Por outro lado, as operadoras seguem batendo recordes de lucros. Em 2020 o lucro estimado das operadoras foi de 17,5 bilhões, em plena pandemia (50% maior do que no ano anterior). E ainda assim, os planos coletivos foram reajustados em 16% em 2021. Mas como nada é tão bom que não possa melhorar, as operadoras decidiram insurgir contra o único caminho que restava aos usuários. Lembrando que a maior parte dos usuários que judicializam são as pessoas com doenças raras, os portadores de deficiências, os idosos e as pessoas com necessidades especiais, como os autistas.
Assim, o objetivo através da ação no STJ era de fechar o caminho da justiça para os poucos que o buscavam, através de uma decisão que serviria ainda para influenciar as dos demais tribunais em todo o país. E foi exatamente o que aconteceu.
Com a decisão do STJ proferida em junho, os planos de saúde passaram imediatamente a negar terapias essenciais aos usuários, gerando uma situação de caos na saúde suplementar e sobrecarregando ainda mais o SUS, que passou a receber esta demanda. A descontinuidade de tratamentos vitais para milhares de pacientes gerou uma grande reação da sociedade, que passou a cobrar do Poder Legislativo uma solução para o problema.
Diante da cobrança, o Poder Legislativo agiu com extrema agilidade, levando somente poucos meses entre a apresentação do projeto de lei e a aprovação do mesmo nas 2 casas legislativas, além da sanção pelo presidente Bolsonaro. Uma linda atuação da classe política, digna dos anos eleitorais.
Com a vigência da nova lei, que altera disposições da Lei9656/98 (Lei dos Planos de Saúde), as operadoras de saude suplementar ficam obrigadas a arcar com os tratamentos dos pacientes, independente da presença no rol da ANS, desde que cumpridas as condições abaixo:
- ter eficácia comprovada;
- ter autorização da Anvisa;
- ter recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (CONITEC); ou
- ter recomendação de pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional e que tenha aprovado o tratamento para seus cidadãos.
A lei, que já está em vigência, traz normalidade a uma lógica que estava totalmente invertida. A partir de agora, os planos trabalharão em função dos pacientes, e não mais o contrário. A cobertura aos usuários precisa ser plena. Os planos de saúde não devem escolher as doenças, pois os pacientes não as escolhem.
Resta saber se este é, de fato, o último capítulo da novela. Pois nos últimos anos, a guerra declarada entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, assim como as constantes interferências nas atribuições uns dos outros, tem colocado a nossa sociedade em uma situação de grande fragilidade e insegurança. E uma nova reviravolta mediante atuação do STF, a exemplo do que ocorreu com a Lei que determinou o piso salarial da enfermagem, não pode ser descartada.
Oremos!