III. AS CONTRIBUIÇÕES DAS TEORIAS DISCURSIVAS PARA O DEBATE
A teoria discursiva de Klaus Günther apóia-se numa distinção relativo ao âmbito de validade da norma jurídica e o âmbito de aplicação normativa. Desse modo, o discurso jurídico comportaria dois níveis de estrutura, quais sejam, discurso de fundamentação ou justificação e discurso de aplicação. A tese desenvolvida por Günther é que a justificação de normas e a aplicação de normas, sejam elas regras e princípios, têm objetivos específicos e orientados por princípios distintos.
No discurso de fundamentação, objetiva-se alcançar sobre a validade das normas que seriam, posteriormente, aplicáveis prima facie, utilizando-se, destarte, da aferição do princípio de universalização. De outro modo, no discurso de aplicação, tem-se o escopo de encontrar a norma adequada diante do caso concreto, considerando as normas válidas.
O discurso de fundamentação, como já dito, relaciona-se com a elaboração de normas válidas sob o prisma do princípio da universalização. Busca-se considerar os interesses de todos os possíveis afetados pela norma em discussão e antecipando-se, na realização da norma, de todas as possíveis conseqüências que essa teria; a legitimação da norma está vinculada ao fato de os interessados terem participado na elaboração da norma e concordarem com os a incidência dela. O debate sobre a ocorrência de determinados casos possíveis para incidência da norma se faz na medida em que a generalização desses é possível, isto é, escolhem-se alguns fatos a partir de elementos comuns e aspectos tidos como relevantes, desprezando a características peculiares de cada situação analisada. O que importa em um discurso de justificação é a determinação do conteúdo semântico de uma norma para que ela seja traduzida em “termos universais” passíveis de aceitação por todos os interessados em circunstâncias gerais e previsíveis.
Certo é que as condições ideais de tempo e de conhecimento não se verificam na realidade fática, há limitações para se discutir a elaboração da norma e seus efeitos, contudo, neste horizonte de tempo e espaço limitados não se perde de vista o princípio de universalização que fundamenta o discurso de justificação. As condições ideais exigidas no plano da justificação de normas devem ser satisfeitas na medida do possível, pois a norma válida se configura pela observância das suas hipóteses de incidência e efeitos colaterais por todos aqueles que consentiram na elaboração da norma nos limites estabelecidos para deliberarem.
Como forma de complementar a ‘versão fraca’ do critério de abstração e universalização do discurso de fundamentação, Klaus Günther propõe um segundo plano discursivo no qual se insere o discurso de aplicação.
O discurso de aplicação toma como partida a existência de normas válidas e aplicáveis prima facie que deverão ser aplicadas a determinado caso. Considera-se nesse plano discursivo os possíveis efeitos colaterais que não foram previstos pelo discurso de justificação, seja pelo não vislumbramento da ocorrência de determinados efeitos ou pela não relevância de tais implicações no momento de discussão para o fomento da norma válida. A singularidade dos casos é a condição de possibilidade para determinar, no plano aplicativo, a suplementar a lacuna discursiva da norma.
Apesar de a norma válida delinear as situações fáticas de incidência, ela não avaliza a sua aplicação sob quaisquer que sejam as circunstâncias. Assim, o plano discursivo de aplicação, previsto pela norma válida elaborada em condições ideais limitadas, é complementado pela descrição do caso concreto singular. De outro modo, determina-se que uma norma válida aplicável prima facie é aquela que se configura pela similitude sintático-semântica entre o enunciado normativo posto e a descrição do caso, levando-se em conta os fatos não considerados e previstos na proposição de ocorrência da norma universalmente válida.
Desse modo, o princípio de universalização possui um cariz ‘forte’ no âmbito discursivo de aplicação, tendo em vista que as normas se configuram válidas e, sob quaisquer que sejam as hipóteses, adequadas devido a aceitação por todos dos efeitos e conseqüências previstas individualmente. Nesse ponto, cabe elucidar que não se está a se discutir a validade da norma, pois se verifica que, na aplicação, a norma é aplicável prima facie em relação a outras normas postas prima facie de acordo com a singularidade do caso; assim, estabelece-se que o sendo de adequabilidade da norma frente ao caso singular é o critério que justifica que se integralize a imposição de um comando normativo ao invés de outro, por conseqüência, produz-se aceitação por todos os interessados. Conforme explanação de Habermas:
“Se entendêssemos a ‘colisão’ das normas ponderadas no processo de interpretação como uma ‘contradição’ no sistema de normas, estaríamos confundindo a ‘validade’ de uma norma, justificada sob o aspecto da fundamentação, com a ‘adequação’ de uma norma que é examinada sob o aspecto da aplicação” [24].
A descrição do caso concreto singular e a hipótese de incidência do enunciado normativo não encerram a discussão sobre a adequabilidade de aplicação de uma norma jurídica, pois esses mencionados critérios podem orientar a aplicação de outras normas válidas. Ocorre, assim, uma reconstrução do senso de adequação de imposição de determinada disposição textual normativo frente ao caso fático.
Essa perspectiva de Günther é de suma importância para a concepção de Habermas no que concerne à atuação dos poderes do Estado, especificamente, o legislativo e o judiciário, pois, o primeiro se relaciona com o discurso de fundamentação e justificação, já o segundo identifica com o discurso de aplicação.
Na seara do legislativo, os indivíduos racionais interessados debatem acerca das conjunturas axiológicas que incidiram na elaboração da norma válida, a partir das razões compartilhadas intersubjetivamente que proporcionam condições de possibilidade de entendimento entre os falantes. Esse ‘pano de fundo’ que promove a compreensão dos indivíduos é precisamente definido por Manfredo de Oliveira:
“o mundo vivido se constitui como horizonte de possibilitação no qual já sempre se situam os que agem comunicativamente: ele é o pano de fundo não explicitado do agir comunicativo e, enquanto tal, o depósito cultural de convicções de uma comunidade humana, o lugar onde se movimentam os que agem comunicativamente. Portanto, as estruturas do mundo vivido estabelecem as formas de intersubjetividade: suas evidencias básicas são evidencias que geram relações intersubjetivas, já que os que agem comunicativamente nelas se apóiam e confiam” [25].
Os sujeitos substituídos pro seus representantes democraticamente eleitos objetivam consensualmente convergir suas proposições axiológicas para a produção da norma jurídica com o escopo de aceitabilidade e obrigatoriedade geral. Nesse ponto, a elaboração da norma válida é lócus que conjuga a pretensão axiológica normatizada na formação do direito posto. Desse modo, compreende-se que os princípios seriam normas deontológicas, pois conjugam pretensões de agir obrigatório com conteúdo de diretivas axiológicas válidas.
No plano do judiciário, que se fundamenta pelo discurso de aplicação, a imposição da decisão jurídica do caso tem de se identificar aos conteúdos normatizados pelo discurso de fundamentação proposto pelo Poder legislativo. Dito de outro modo, não se trabalha com pretensões de cunho axiológico ou de diretrizes políticas, mas com argumentos de princípios que se identificam com os direitos aos quais os destinatários do processo têm em face da concretude do caso fático.
Os princípios pressupõem validade devido à aceitabilidade e generalidade racional pela elaboração nas condições ideais limitadas pelo discurso de fundamentação, contudo, como já referido não se possibilita discutir a validade da norma na aplicação, pois já se deliberou em momento oportuno. Os argumentos de princípio se propõem a serem aplicáveis às situações de acordo com a adequabilidade que enfrentam na realidade fática, verificam, diante da descrição do caso e dos efeitos colaterais não previstos na discussão legislativa, os princípios a serem sopesados e qual deles no intercruzamento se sobrepõe ao outro. As normas-princípios são aplicáveis de maneira integral e não gradual.
As pretensões valorativas dizem respeito a pretensões que visam à consecução de diretivas a serem postas, aos e pelos sujeitos de uma comunidade, na seara legislativa. Os objetivos da coletividade são propostos pelos legisladores para satisfazer os interesses do bem comum, bem como orientam a atividade política. É nesse âmbito que os cidadãos se manifestam para a alteração da tradição que almejam se sustentar. Desse modo, as aspirações de direitos a serem instituídos apenas verificam com a discussão no plano discursivo próprio.
Destarte, os argumentos de cariz valorativo não se processam no plano discursivo da aplicação, pois o Judiciário[26] maneja vetores deotológicos, ou seja, os princípios que reclamam aplicação frente à adequabilidade do caso por se referirem a direitos postos. Não se possibilita graduar a aplicação dos princípios, haja vista a pretensão corretiva de otimização propor rediscutir as razões valorativas que ensejaram a formação da norma válida, incidindo num solapamento do princípio de universalização em que todos os interessados podem se manifestar para a elaboração da norma deliberada.
Desse modo, é relevante a crítica de Habermas à ponderação[27] de princípios de Robert Alexy, por esse compreender princípios e valores como os mesmos comandos estruturais:
“quando Dworkin entende os direitos fundamentais como princípios deontológicos do direito e Alexy os considera como bens otimizáveis do direito, não estão se referindo a mesma coisa. Enquanto normas, eles regulam uma matéria no interesse simétrico de todos; enquanto valores, uma ordem simbólica na qual se expressam a identidade e a forma de vida de uma comunidade jurídica particular. Certos conteúdos teleológicos entram no direito, porém o direito, definido através do sistema de direitos, é capaz de domesticar as orientações axiológicas e colocações de objetivos do legislador através da primazia estrita conferida a pontos de vista normativos”. [28]
Assim, as prescrições jurídicas que são levadas em conta na atuação do judiciário e não as pretensões valorativas a serem medidas para decisão judicial, pois, primeiramente, a legitimidade de utilização de proposições axiológicas é conferida pelo Estado ao Legislativo; segundo, a possibilidade de argumentos políticos no âmbito judiciário enuncia perigosa amplitude de atuação dos juízes para correções legislativas, como se fossem autorizados e/ou tivessem know-how maior que os membros do parlamento de promoverem as diretrizes valorativas.
IV. O CASO DA UNIÃO HOMOAFETIVA: HERMENÊUTICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Diante das explanações postas, é notório que a atuação no reconhecimento da união homoafetiva pela Corte Suprema não se coaduna com a distinção proposta entre discurso de fundamentação e discurso de aplicação.
A causa que leva a proposição desse reconhecimento de direitos está relacionada a pretensões de cunho axiológico que se vinculam diretamente a consecução de diretivas queridas pelo interesse coletivo da comunidade. Vale pontuar que é válida a pretensão que tem o escopo de regulamentar a união homoafetiva, contudo, a via correta é que se diverge para o alcance do objetivo visado; não haveria que ter atuação positiva do Poder Judiciário, haja vista esse ocupar da aplicação de princípios, que são vetores deontológicos, mas a via legislativa se faz necessário para que se possam aduzir pretensões valorativas que incidam sobre a mudança da norma válida que se consubstancia no dispositivo do §3º, art.226, da Constituição Federal. A distinção de discursos acentua a noção de divisões de competências dos poderes proposto pelo Estado Democrático de Direito.
Na interpretação feita pelo Corte Maior ao dispositivo posto à dúvida de constitucionalidade, o intérprete (STF) acaba objetivando desacoplar algo qual que está ‘escondido’ e ‘essencializado’ como se o legislador tivesse falado algo por detrás do texto enunciado. Quanto ao fato de o constituinte ter sido preconceituoso não se tem dúvidas, todavia, não se pode ‘extrair’ do texto ‘homem e mulher’ o escamoteado ‘homem e homem’. “Não se desacopla do texto um sentido que nele está escondido. Os entes não estão dispersos no mundo à espera desse processo dedutivista. Tampouco a tarefa do interprete é buscar algo que está ‘escondido’ no texto” [29]. Nesse ponto, cabe a metáfora de Humberto Eco quanto à interpretação de textos:
“Se quisermos provar que um texto visível A é o anagrama de um texto oculto B, precisaremos mostrar que todas as letras de A, devidamente reorganizadas, produzem B. Mas se começamos por descartar algumas letras o jogo não tem mais validade. Roma é um anagrama de amor, mas não de amora” [ 30].
Assim, volta-se a discussão posta. Há uma imbricação entre texto e norma interpretada, a moldura sintático-semântica delimita a atuação criativa do intérprete. Além disso, a partir da situação hermenêutica e do sentido antecipado pela pré-compreensão e que emerge o sentido produzido do texto; contudo, a atribuição de sentido não envolve subjetividade assujeitadora do juiz, a interpretação/aplicação se manifesta a partir de nosso modo-de-ser-no-mundo, em que se encontra, como ser-na-Constituição, embasados no sentido posto textualmente. Compreende-se que texto sempre se refere a algo, porque é sempre ser de um ente.
Conclui-se que não se pode verificar a possibilidade de ‘interpretação conforme’ pelo Supremo tribunal Federal objetivando ‘regulamentar’ a união homoafetiva, pois a técnica como foi utilizada não se coaduna com a perspectiva de interpretação jurídica pautada nas noções estabelecidas pela Hermenêutica Filosófica, pois se estar a dizer qual norma em qualquer texto, ou seja, um ser é um ser de um ente. Além disso, a decisão como foi proferida não alinha consonância com a atribuição de competências postas pelos poderes na sua divisão de atuação, tendo em vista a as medidas corretivas de legisladores segundos realizada pelo Supremo Tribunal Federal, o que se deseja numa democracia, na linha de Dworkin, é que os juízes se atentem a argumentos de princípio, a partir dos direitos, não o que eles pensam sobre política, cinema, educação, etc.
Essas medidas corretivas acenam para um ativismo judicial um tanto perigoso. Numa tentativa de adjudicar uma causa de relevante importância, situam as decisões do judiciário em legiferantes, reformando a disposição textual para o bem coletivo. A questão se mostra muito bem aceita pela comunidade quando se tem pretensões ‘boas’, anseios que têm respaldo de recolhimento por todos; o problema se coloca quando surgem ‘pretensões ruins’ argumentativamente fundamentadas no uso ad hoc de valores não normatizados pelo legislativo (discurso de justificação).