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Disforia de gênero e suas repercussões jurídicas

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A atuação do Estado deve estar pautada em garantir o bem estar social, mas é notório o descaso que vem sendo dispensado aos que apresentam o conflito de identidade.

Resumo: O presente trabalho foi elaborado com o objetivo de discutir a disforia de gênero, suas implicações no âmbito do direito, bem como desmistificar o assunto. Para isso, foram analisados os mais variados estados comportamentais, bem como as resoluções do Conselho Federal de Medicina autorizativas da redesignação sexual. A problemática atinente a esta questão diz respeito à falta de legislação que regulamente a matéria. Entretanto, os direitos dos disfóricos encontram-se assentes no princípio basilar de todo Estado Democrático de Direito – A dignidade da pessoa humana. O direito à intimidade e à privacidade, garantidos constitucionalmente também foram abordados. Os direitos da personalidade, indissociáveis à dignidade humana, foram analisados. Não obstante, a ausência de legislação específica que trate do tema, a tarefa de suprir tais lacunas ficou a cargo da doutrina e jurisprudência, que vêm se inclinando no sentido de reconhecer os direitos daqueles que possuem o sexo biológico em antagonia com o sexo psicológico. O Projeto de Lei nº 70/1995, que versa sobre a mudança do prenome e sexo mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à redesignação sexual, está há bastante tempo em tramitação perante as casas legislativas, o que reflete o desinteresse dos legisladores acerca da matéria. Isso só contribui para persistir a invisibilidade jurídica que afeta essa população. Todavia, o Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual, elaborado pela Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, promete acabar com a omissão legislativa. Cuida-se de enorme inovação jurídica, que minuciosamente abrangeu os direitos referentes a homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais.

Palavras-chave: Disforia de Gênero – Dignidade da Pessoa Humana – Direitos da Personalidade – Ausência de Legislação – Estatuto da Diversidade Sexual.

Sumário: Introdução. 1. A disforia de gênero. 1.1 Breve análise da disforia de gênero. 1.2 Outros aspectos da sexualidade que não se confundem com a disforia de gênero. 1.3 A cirurgia de redesignação de sexo. 2. Fundamentos dos direitos dos disfóricos. 2.1 Dignidade da pessoa humana. 2.2 Direito à intimidade e privacidade. 2.3 Direitos da personalidade. 3. Legislação e projetos de lei concernentes à alteração do prenome e sexo no direito brasileiro. 3.1 Lei nº 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos). 3.2 Projeto de Lei nº 70/1995. 3.3 Estatuto da diversidade sexual. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

Através do presente trabalho de pesquisa, pretende-se expor algumas considerações em relação à problemática relativa à disforia de gênero, que caracteriza-se pelo sentimento persistente de inadaptação entre o sexo biológico e o psicológico, ou seja, o indivíduo acredita que pertence ao sexo oposto ao de sua constituição genital.

Esse conflito de identidade repercute tanto na Medicina como no Direito, sobretudo porque, há atualmente, a possibilidade de através de procedimento cirúrgico adequar o sexo biológico ao psicológico daquele que sofre com a inversão. No que tange ao Direito verifica-se que não há regulamentação da matéria, ficando esta a cargo da doutrina e jurisprudência.

Percebe-se que a questão vem paulatinamente chamando cada vez mais a atenção da sociedade, porque, dentre outros motivos os meios de comunicação de massa passaram a enfocar o tema até então pouco discutido. Contudo, a disforia de gênero é de extrema relevância para o direito, uma vez que, realizada a cirurgia de redesignação sexual, seus resultados terão enormes reflexos em vários segmentos da área, sendo imprescindível o enfrentamento dessas questões, seja pela sociedade, Judiciário e até mesmo nos bancos acadêmicos.

Discorrer sobre esse fenômeno não é tarefa das mais fáceis e, para isso, se tentará conceituá-lo no decorrer do trabalho adotando-se o critério estabelecido na Resolução nº 1652/2002, ou seja, tratou-se a questão do ponto de vista patológico mesmo.

Muito embora se tenha muito o que comemorar com a autorização pelo Conselho Federal de Medicina para a realização da cirurgia de redesignação sexual no Brasil, no que pertine à legislação, não se pode dizer o mesmo. A Lei dos Registros Públicos permaneceu estática não acompanhando a evolução, deixando de contemplar especificamente aqueles casos em que é preciso alterar o nome e sexo em virtude de redesignação sexual.

Assim, o principal desafio é desmistificar o assunto, tornando-o conhecido de todos para tentar aliviar o peso do estigma carregado pelos disfóricos. É realmente um desafio abordar questões tão polêmicas que estão diametralmente opostas àqueles “padrões” de condutas considerados como os “corretos”, os “normais”, mas é exatamente por essa razão que a temática se torna interessante.

Deixar que esses sujeitos permaneçam a margem da sociedade vai de encontro a todo o ordenamento jurídico de qualquer Estado Democrático de Direito, sobretudo fere o princípio basilar da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade humana, portanto, o disfórico é merecedor de todo o respeito e atenção.

A principal preocupação, antes de tudo, deve ser com a inserção desses indivíduos no seio da sociedade de forma que eles possam livremente estudar, trabalhar e se relacionar com os demais de maneira satisfatória.

No decorrer do trabalho, o tema será dividido em três capítulos, para melhor compreensão e organização. Versará o primeiro capítulo sobre a disforia de gênero, o qual será subdividido em três subitens para uma melhor explanação e compreensão do tema.

No primeiro subitem se fará uma breve análise da disforia de gênero e seus aspectos comportamentais tendo-se também a preocupação de esclarecer os tipos de disfóricos. No segundo subitem serão estudados outros estados comportamentais como a homossexualidade, bissexualidade, a travestilidade e a intersexualidade, tendo como seu principal estado o hermafroditismo que frequentemente se confunde com a disforia de gênero.

Para essa diferenciação, procurar-se-á demonstrar com bastante clareza e simplicidade o que se tem de mais peculiar em cada estado com o fito de evitar que se tome uma coisa por outra.

Já no terceiro, falar-se-á acerca das resoluções do Conselho Federal de Medicina que concederam autorização para a realização da cirurgia de redesignação de sexo e da cirurgia propriamente dita, suas etapas preparatórias e as posteriores bem como se descreverá em que estágio se encontram as técnicas usadas para a construção dos fenótipos masculino/feminino e feminino/masculino.

No segundo capítulo, será abordado os Fundamentos dos Direitos dos disfóricos, com ênfase no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana por ser o núcleo central de todo o ordenamento jurídico e por constituir o polo irradiador dos demais direitos dos que possuem o sexo morfológico diverso do biológico. O direito à intimidade e privacidade tão importantes para que haja o esquecimento da situação anterior também estarão presentes neste capítulo,por fim os direitos da personalidade que não poderiam ser olvidados, uma vez que, são modernamente concebidos como cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana.

Por derradeiro, o terceiro capítulo conterá uma análise das legislações e projetos de legislações existentes no direito brasileiro que abarcam a inversão sexual, possibilitando a retificação de nome e sexo.

Para isso, se começará discorrendo sobre a Lei dos Registros Públicos (LRP), as possibilidades postas as disposição daqueles que necessitam por algum motivo mudar o nome civil, seguindo-se do projeto de lei nº 70/1995 em andamento nas casas legislativas que ainda não logrou êxito em ser aprovado e para fechar o estudo não se poderia deixar de mencionar o inovador e ousado anteprojeto de lei do Estatuto da Diversidade Sexual, composto por uma série de dispositivos que alteram mormente a Lei dos Registros Públicos e demais legislações infraconstitucionais.

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Quanto à metodologia empregada, será usada primordialmente a pesquisa bibliográfica, tendo como fontes obras científicas, doutrina e artigos publicados em revistas e sites, que digam respeito ao tema. Pesquisas jurisprudenciais também serão um ponto de referência, visto que, por ausência de legislação específica o entendimento de nossos tribunais tem relevante papel na construção do direito. A pesquisa que será desenvolvida, será do tipo qualitativa procurando entender especificamente o fenômeno e trabalhando com descrições e interpretações.


1. A DISFORIA DE GÊNERO

1.1 Breve análise da disforia de gênero

Considerada como transtorno de identidade sexual, a disforia de gênero é a denominação comumente empregada, para a expressão popularmente conhecida como “transexualidade”. Trata-se de fenômeno não tão raro, que está intimamente ligado à percepção que o indivíduo tem de si mesmo. A questão é tormentosa e merece toda atenção e respeito, haja vista que seus reflexos atingirão diretamente os direitos inerentes a todo ser humano.

Antes de expor o seu conceito será necessário tecer breves comentários acerca dos fatores quem compõem a noção de sexo. Atribuir a alguém o gênero masculino ou feminino vai muito além de simplesmente levar em consideração a constituição do órgão sexual. Essa noção deve ser compreendida como a soma de diversos fatores que juntos integram a identidade sexual.

Em apertada síntese, Flávia Justus descreve a formação da identidade sexual como sendo a perfeita sincronia entre os fatores:

Consoante Maria Berenice Dias:

A psicologia define a sexualidade humana como uma combinação de vários elementos: o sexo biológico (o sexo que se tem), as pessoas por quem se sente desejo (a orientação sexual), a identidade sexual (quem se acha que é) e o comportamento ou papel sexual. [2]

Levando-se em consideração a noção exposta dos elementos caracterizadores do sexo, pode-se afirmar que ocorre a disforia de gênero sempre que houver conflito entre o fator biológico e o psicossexual atingindo, por via reflexa, o fator psicossocial.

Portanto, pode-se conceituar essa inversão como sendo a manifestação pela qual o indivíduo nasce anatomicamente de um sexo, entretanto, psicologicamente, acredita que pertence ao sexo oposto, não se identificando de maneira nenhuma com o seu sexo biológico.

A disforia de gênero encontra-se catalogada na Classificação Internacional de Doenças (CID 10), cujo código é F 64.0:

F 64 Transtornos da identidade sexual

F 64.0 Transexualismo

Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado. [3]

O conceito trazido pela CID 10 faz referência a dois critérios determinantes que devem ser reconhecidos concomitantemente no indivíduo, a fim de inseri-lo na categoria de disfórico: a inadaptação ao sexo biológico e o desejo de submeter-se à intervenção cirúrgica ou a tratamento hormonal com vistas a tentar ajustar o físico ao psíquico.

Em última análise, extrai-se que há uma cisão no equilíbrio entre o corpo e a mente dos disfóricos. Enquanto seus caracteres sexuais são biologicamente atinentes a um determinado sexo, a psique desse indivíduo pertence ao sexo contrário. Mesmo não sendo portador de qualquer anomalia física o seu grande desejo é adequar o seu corpo a sua mente, pois acredita que houve “uma falha da natureza”.

Quando crianças, os meninos que apresentam a inversão sexual tendem a gostar de brincadeiras tipicamente femininas, pois acham as brincadeiras masculinas agressivas e tendem a se aproximar de outras crianças do sexo feminino. Isso se verifica porque eles se identificam com o universo feminino, ao passo que se sentem excluídos do universo masculino. No caso de meninas, sucede o mesmo, as brincadeiras de boneca, casinha, são rejeitadas por elas que preferem as brincadeiras de menino, tais como: jogar bola, soltar pipas, bolinhas de gude, entre outras. [4]

Na idade escolar o contexto é exatamente o mesmo: os meninos disfóricos sentem-se acolhidos pelo grupo de meninas enquanto que, são violentamente repelidos pelos meninos. O inverso acontece com as meninas disfóricas. Merece destaque o fato de que nessa época as experiências tendem a ser dolorosas e marcantes, pois os constrangimentos a que são submetidos tornam cada vez mais difícil a tarefa de concluir os estudos. Muitos, por não suportarem os tratamentos desagradáveis e até porque não dizer cruéis que lhe são dispensados, abandonam os estudos, não conseguindo sequer completar o ensino médio.

Essas recordações marcam de forma tão profunda que são capazes de acarretarem traumas oriundos da infância:

As mais antigas lembranças da infância que tenho, creio que são da épo ca dos cinco ou seis anos, quando entrei na escola. Não tinha qualquer afinidade com os meninos, nem com suas brincadeiras abrutalhadas. Eles nunca me chamaram para nada, dizendo que eu não era homem. Já com as meninas, eu me dava muito bem, brincava de boneca, casinha, bola queimada e sempre me senti uma delas. Um dia pedi a minha mãe que me comprasse um uniforme como o delas, mas recebi foi uma surra.

Quando vi uma menina nua pela primeira vez, era mais jovem ainda, acho que tinha quatro anos, era uma prima minha. Fiquei pensando como era diferente e como ela teria feito para arrancar “aquilo lá”. Sem saber exatamente o que era, já via que meu físico era diferente do das mulheres e eu não queria isto, desejava ser como elas. Isto vem desde minhas mais remotas lembranças. Às vezes chego a pensar que no berçário já pensava assim. (M.C. , transexual, 25 anos, amazonense). [5]

Após a infância, por volta dos 12 (doze) anos de idade, se inicia a adolescência, que pode ser considerada como a fase mais crítica para os disfóricos, pois é nela que ocorrem mudanças físicas e biológicas, com a acentuação principalmente dos caracteres sexuais. Nas meninas se desenvolvem as mamas, há o surgimento dos pêlos nas regiões axilares e pubianas e o princípio da menstruação; nos meninos, ocorre o surgimento de pêlos nas regiões axilares, torácicas e pubianas, aumento em volume dos testículos e tamanho do pênis, surgem a barba e oscilações na voz.

É nessa fase que há o desenvolvimento de uma intensa repulsa por seus órgãos genitais, que se constituem um objeto de rejeição, tentando escondê-los a todo custo. “A explosão da crise da puberdade exaspera não só a necessidade de viver, como também de demonstrar que se pertence a outro sexo”. [6]

É também nessa fase que surge o desejo perturbador de extirpar o órgão genital; no caso de disfóricos do gênero masculino e, de usar faixas, sobre os seios para ocultar o volume, no caso das disfóricas do gênero feminino. É evidente a tentativa desesperada de se livrar daquilo que os incomoda. “Trata-se de uma recusa, de uma recusa total do sexo de atribuição; o sexo anatômico lhes é totalmente inaceitável, provoca neles horror”. [7]

Essa é a principal característica do transtorno da identidade sexual, a imensa repulsa que sente pelos seus órgãos genitais. A vontade de conformação entre o sexo psicológico e o biológico é tão persistente que alguns tentam, por conta própria, extirpar os órgãos genitais imbuídos do sentimento de repugnância que aquilo ali para nada lhe serve.

Com efeito, constata-se que a sua libido é totalmente dirigida para pessoa do mesmo sexo, mas frise-se que como se sentem verdadeiramente pertencentes ao sexo oposto não há o que se falar em homossexualidade, porque não haveria uma unidade de gênero e sim dualidade de sexos.

A fala do disfórico retrata fielmente o exposto acima:

Não gostava do meu corpo, e comecei a passar a gostar menos ainda; eu olhava meu corpo me dava conflito, me dava asco, raiva. [8]

Dependendo do momento em que se manifesta a inversão da identidade psicossocial, pode-se dividi-la em dois tipos: disforias de gênero primária e secundária.

Na sua forma primária, o desequilíbrio se manifesta precocemente, é insistente e imperativo. Desde a mais tenra idade, o sujeito se situa no mundo do sexo oposto. Para os estudiosos sobre o tema, também pode ser chamado de “transexualismo verdadeiro”.

A forma secundária é aquela que geralmente se identifica quando o sujeito já está na fase adulta, podendo ser inclusive passageira. Conforme assevera Matilde Josefina Sutter “o impulso transexual é flutuante e temporário, motivo pelo qual podemos dividir o transexualismo secundário em transexualismo do homossexual e do travesti”. [9]

Por essa razão, os autores também a denominam de “transexualismo falso ou transitório”. Todavia, cumpre salientar que o tipo secundário se apresenta em número infinitamente menor que os primários. Ademais, de acordo com as estatísticas, a maior parte dos disfóricos primários é do sexo masculino.

O tratamento adequado para a forma primária é a cirurgia de redesignação de sexo, pois conforme dito alhures pelo motivo de existir a sólida convicção de que pertence ao sexo oposto, sessões de terapia não surtiriam o menor efeito. Ao contrário da secundária em que esta terapêutica se revela a mais apropriada, logo, infere-se que se cuida apenas de desarranjo na órbita psicológica que pode ser revertida com a supracitada terapia.

1.2 Outros aspectos da sexualidade que não se confundem com a disforia de gênero

A pluralidade de aspectos que envolvem a sexualidade humana gera sempre acaloradas discussões, porque gira em torno de questões muito delicadas que envolvem valores arraigados na sociedade. A postura da sociedade frente a essa problemática ainda é muito rígida, discriminando e rejeitando tudo aquilo que for diferente dos “padrões normais de comportamento”.

É inconcebível que o Estado e o Judiciário fechem os olhos diante da diversidade sexual. A disforia de gênero é uma realidade que não pode ser negada, assim como as demais feições que assumem a sexualidade humana. Por oportuno, registre-se que quanto maior o respeito ao direito à diferença, mais fortalecidos estarão os direitos fundamentais inerentes a todo Estado democrático de direito.

Ao abordar o assunto, Maria Berenice Dias pondera: “indispensável que se reconheça que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sua sexualidade”. [10]

Muito feliz a colocação da ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o exercício a sexualidade humana é essencial à qualidade de vida, por isso, a obrigatoriedade em sua proteção.

Feitas essas breves considerações passa-se a examinar outros estados comportamentais, não sob o prisma da diferença na sua acepção pejorativa, mas no sentido de delineá-lo apenas para que não se confundam.

A homossexualidade se caracteriza pela preferência que o indivíduo possui de manter relações sexuais com parceiros do mesmo sexo. A atração pelo mesmo sexo e a plena consciência disto pode ser considerada a tônica do relacionamento homoafetivo.

A etiologia da expressão “homossexualidade” corrobora com o exposto anteriormente. Segundo Ana Paula Ariston Barion Peres, “a palavra 'homossexualismo' origina-se do prefixo grego homo, que significa 'o mesmo' e, não, da palavra latino homo,'homem'”. [11]

Outro traço distintivo entre a homossexualidade e a disforia, talvez o mais importante deles, consiste em que o primeiro não nutre o desejo de redesignação sexual, enquanto que, o segundo, ao invés, sente-se insatisfeito com o sexo anatômico e biológico que apresenta.

Ademais, a homossexualidade deixou de ser considerada como uma doença por volta dos anos 90, mais precisamente com a edição da resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, que orientou os psicólogos a não tratarem como patologia, sugerindo a cura, e, a não indicarem outra forma de orientação sexual, como sendo a mais adequada.

No que tange à bissexualidade, não se verifica a predominância pela preferência sexual por um ou por outro sexo, o comportamento é flexível. Vez por outra o bissexual pode se relacionar com indivíduos do mesmo sexo como também do sexo contrário, em outras palavras, inexiste regra a ser seguida por eles.

A intersexualidade pode ser definida como: “aqueles quadros clínicos que apresentam problemas (diagnóstico, terapêutico e jurídico) quanto ao verdadeiro sexo da pessoa considerada”. [12]

O hermafrodita se encaixa perfeitamente na noção de intersexualidade e provavelmente é seu o principal estado.

Segundo a mitologia grega “Hermafrodita, filho de Hermes e da deusa do mar e do amor Afrodite, nasceu com uma mescla tão completa dos traços de seus pais que seu sexo era ambíguo, não podendo ser definido”. [13]

Em linhas gerais, a característica do hermafrodita consiste na dubiedade concernente aos órgãos sexuais, que se apresentam indefinidos, não se tendo como precisar a olho nu a qual gênero pertence à criança hermafrodita.

Consoante autorizada doutrina, o hermafrodita pode ser designado como hermafrodita verdadeiro ou pseudo-hermafrodita. Neste último, os órgãos sexuais externos são ambíguos, todavia os órgãos internos são de um único sexo, enquanto que naquele os órgãos sexuais internos e externos são dos dois sexos, cumpre salientar que são raríssimos os casos em que se verifica o hermafrodita verdadeiro e quando se verifica os órgãos sexuais externos são atrofiados.

Matilde Josefina Sutter alerta que para tentar evitar qualquer tipo de erro, concernente ao sexo que irá constar no registro civil, é necessário que os pais levem essas crianças para que sejam realizados vários exames clínicos e laboratoriais especializados para detectar precisamente a qual sexo ela pertence. Só com base nos resultados desses exames se poderá atribuir qualquer um dos gêneros (masculino ou feminino) com segurança e registrar o hermafrodita. [14]

Nesses casos, após se chegar a conclusão definitiva sobre qual é o seu verdadeiro sexo biológico deverá necessariamente ser realizada uma cirurgia, que não pode ser considerada como redesignação de sexo, mas cirurgia corretora. Sua finalidade é retirar o órgão sexual dúbio que não corresponde ao sexo biológico do hermafrodita.

Em hipótese alguma, o hermafrodita se assemelha ao disfórico, já que neste o órgão sexual externo é inequivocamente determinado.

Entre todas as figuras até aqui apresentadas à atinente a travestilidade é sem dúvida, a que mais frequentemente se confunde com a disforia de gênero, entretanto a diferença básica consiste no motivo pelo qual ambos se vestem com a indumentária do sexo oposto.

O travesti sente prazer ao se vestir e se exibir com roupas que pertençam ao outro sexo enquanto que, para o disfórico essa vestimenta é algo natural, inerente ao papel social ao qual acredita pertencer.

Matilde Josefina Sutter classifica os travestis em fetichistas ou exibicionistas:

Os travestis são comumente classificados em dois tipos: fetichistas ou exibicionistas.

Os primeiros dependem de algum objeto ou peça do vestuário para se excitarem, vendo-a, tocando-a ou cheirando-a. Já os segundos se exibem, inicialmente de um modo reservado, diante de um espelho e, posteriormente, saem às ruas usando roupas femininas. [15]

Assim como ocorre na homossexualidade, na travestilidade não há o desejo de extirpação dos órgãos genitais, tampouco insatisfação relativa ao sexo biológico. O fetiche está no ato de vestir-se como mulher e ressalte-se que o número de travestis homens é infinitamente superior ao de mulheres. Portanto, a implantação de próteses de silicone mamárias, por exemplo, não deve ser entendida como uma possível vontade de redesignação sexual.

1.3 A cirurgia de redesignação de sexo

Sem sombra de dúvida, constitui-se o maior objetivo do disfórico, e daqui pra frente estar-se-á se referindo exclusivamente aos primários (ou verdadeiros), alinhar o seu corpo a sua mente, isso só será possível com a cirurgia de redesignação sexual. Essa aspiração simboliza primordialmente o fim do sofrimento interno.

A primeira cirurgia de redesignação sexual amplamente divulgada ocorreu na Dinamarca, em 1952. A intervenção foi realizada no ex-soldado norte-americano Geroge Jorgensen que passou a se chamar Christine Jorgensen. [16]

No Brasil, a primeira cirurgia só viria a ser realizada bem mais tarde, em 1971, o cirurgião plástico Roberto Farina foi o pioneiro nessa espécie de cirurgia. [17]

Até meados de 1997 não havia autorização para a utilização desse tratamento, o argumento usado era a mutilação causada em sujeitos perfeitos e sadios. Aqueles que se arriscassem a realizá-la poderiam ser severamente punidos pelo Conselho Federal de Medicina, além de estar sujeito a reprimenda penal.

Felizmente, essa posição foi revista com a edição da Resolução nº 1.482 do Conselho Federal de Medicina que autorizou, a título experimental, a realização da cirurgia de redesignação sexual do fenótipo masculino/feminino e do feminino/masculino, assim como também os demais procedimentos necessários para o tratamento da disforia.

Inicialmente todo e qualquer procedimento cirúrgico só podia ser praticado em hospitais públicos adequados à pesquisa.

Na verdade, essas disposições revelaram-se um pouco tímidas e no intuito de ampliá-las foi editada uma nova resolução, a de nº 1.652 de 2002, que entre outras inovações permitiu que fossem realizados procedimentos cirúrgicos do tipo masculino/feminino, tanto na rede pública como na privada, independente de atividade de pesquisa.

Posto isso, consoante os critérios estabelecidos pela autorização do Conselho federal de Medicina, art. 3º, só estará apto para se submeter à intervenção cirúrgica aquele que apresentar:

Esses requisitos, na verdade, são os utilizados para se detectar a presença da disforia de gênero. Caso as respostas sejam positivas a todos os quesitos o tratamento mais indicado será a redesignação. No entanto, a intervenção cirúrgica é o último e mais relevante passo no tratamento dessa patologia.

Nesse sentido, é a posição esposada por Márcia Arán, Daniela Murta e Tatiana Lionço:“a cirurgia de transgenitalização foi considerada a etapa mais importante no tratamento de transexualismo, pela possibilidade de adaptar a morfologia genital ao sexo com o qual o indivíduo se identifica”. [19]

Antes disso, é necessário o acompanhamento por uma equipe de profissionais de saúde composta por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. Essa equipe será responsável pelo acompanhamento do caso por no mínimo dois anos.

Havendo parecer positivo da equipe técnica diagnosticando a inversão sexual, o primeiro passo é a psicoterapia, após esse período deve ser iniciada a terapia hormonal. São ministradas doses de hormônios para o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, independentemente do sexo biológico do pretendente a redesignação. Todos obrigatoriamente passam por essa fase.

No disfórico feminino/masculino, antes de se chegar à etapa final é preciso que sejam realizadas outras intervenções, cujo propósito é eliminar os caracteres secundários femininos. A mastectomia retira a glândula mamária e a histerectomia útero, ovários e trompas.

Percorrido esse longo caminho, finalmente o paciente poderá se submeter à cirurgia. A técnica usada para construção do pênis é chamada de faloplastia, procedimento revestido de alta complexidade e somente os hospitais universitários e públicos adequados a pesquisa estão habilitados para realizá-la.

A neocolpoplastia é a empregada para a construção da neovagina, e ao contrário da faloplastia existem diversas técnicas, todas elas bem desenvolvidas, capazes de proporcionar um resultado bem positivo. O aspecto do órgão genital é praticamente perfeito.

Não obstante a evolução da Medicina em matéria de cirurgia plástica, não se pode descartar a hipótese de eventuais insucessos, que ensejarão novas reintervenções para aperfeiçoar o que foi feito. Além disso, no caso de neocolpoplastia recomenda-se em algumas situações que o paciente faça uso de moldes mantenedores das dimensões vaginais por diversos meses.

Mas, o procedimento terapêutico não se encerra por aí, deve ser mantida a psicoterapia pós-cirúrgica, a terapia hormonal e nos disfóricos masculinos/femininos ainda existe a necessidade de pequenas cirurgias plásticas como: implantação de silicone nos seios, eliminação dos pelos da barba e abdômen, rinoplastia e remodelamento da cartilagem laríngea, tudo para se aproximar ainda mais da estética feminina.

Sobre as autoras
Andréa Paula da Cruz

Bacharela em Direito em Caruaru (PE).

Renata de Lima Pereira

Advogada. Mestra em Direito Privado pela UFPE. Professora de Direito Civil e Empresarial da Estácio/Recife e ASCES/Caruaru.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Andréa Paula; PEREIRA, Renata Lima. Disforia de gênero e suas repercussões jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3605, 15 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24437. Acesso em: 14 nov. 2024.

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