5 CONCLUSÃO
Abrimos o tópico conclusivo deste trabalho com uma pequena reflexão sobre um importante fato histórico ocorrido na Prússia, que mais tarde seria denominado o caso do moleiro confiante:
Conta-se que Frederico, o Grande Rei da Prússia, pretendeu, certa vez, estender os limites de seu parque, denominado Saint Sussi. Ao lado, havia uma propriedade particular pertencente a um moleiro. Funcionários do palácio procuraram o modesto produtor de farinha, dizendo-lhe que o rei precisava de suas terras e perguntando por quanto iria vendê-las, o moleiro disse que o moinho era tanto dele como a Prússia era do rei, e que não venderia sua propriedade. Frederico mandou chama-lo e fez o possível para efetuar a compra. O súdito respondeu que ali havia morrido o seu avô e ali tinham nascido seus filhos. Não venderia, qualquer que fosse o preço. Perdendo a paciência, perguntou o poderoso monarca: ‘Você não sabe que eu posso tomar sua terra?’ Respondeu o moleiro: ‘Poderia se não tivéssemos juízes em Berlim’. Frederico, encantado, porque via em seu reino um que confiasse assim na Justiça, disse aos cortesãos que era necessário mudar os planos. Um século depois, um bisneto do famoso moleiro de Saint Sussi, estando em dificuldades, pediu ao rei uma cooperação. O rei, entendendo a necessidade da família, disse que não iria comprar o moinho, porque havia uma razão específica. ‘Meu caro vizinho, o moinho não é meu nem seu, pertence à História, é para nós, portanto, impossível você vendê-lo e a mim compra-lo. Como, entretanto, os vizinhos devem ajudar uns aos outros, remeto-lhes uma ordem: passe no Tesouro’.[57]
No mesmo tom do discurso feito pelo moleiro, o Itamaraty se pronunciou em caso tratando das imunidades internacionais, no qual o Embaixador da República Democrática da Alemanha se recusou a receber notificação da reclamação trabalhista movida por um empregado brasileiro:
Renova-se a tentativa por meio de carta, conforme recomenda o instituto de Direito Internacional. A empregadora, querendo, alegue imunidade e conteste a ação. Se não o fizer, seu silêncio poderá ser interpretado como confissão em matéria de fato. Se o proletário que pede justiça tiver razão, esta lhe será, pelo menos, reconhecida. A Justiça brasileira, que nesse caso agora represento, saberá cumprir o seu dever até onde for possível. Espero que a República Popular Alemã, por seu mui digno Embaixador, tenha, para com o possível direito de seu empregado, o mesmo acatamento que teve Frederico, o Grande, Rei da Prússia, pelo direito igualmente desarmado daquele seu súdito e vizinho, o moleiro que confiou na Justiça. Há juízes em Brasília. Brasília, 16 de dezembro de 1980[58].
A despeito dos belos e significativos discursos, ousamos complementar, a partir do que se expôs neste breve estudo, as palavras do moleiro e do diplomata brasileiro.
Sem dúvidas, a presença de magistrados qualificados e cada vez mais inseridos no debate em torno das imunidades internacionais e, em específico, da imunidade executiva, representa um grande avanço. No entanto, o problema central com que se deparou este trabalho fundamenta o argumento de que isto não é o suficiente.
Como se pôde observar, a imunidade de execução enfrenta um cenário ainda não tão claro, embora a evolução do instituto junto às cortes nacionais e supranacionais seja evidente. A incerteza a que se refere aperfeiçoa-se claramente, como se intentou demonstrar, na constante dualidade vista na aplicação de uma concepção absoluta ou relativa da imunidade de execução. Se, por um lado, ainda remanescem cortes domésticas atreladas estritamente ao brocardo par in paremnon habet judicium, por outro, alguns tribunais nacionais sinalizam para uma postura cada vez mais exceptiva em relação à aplicação da prerrogativa de foro dos Estados.
Em complemento a este contexto de incerteza e insegurança jurídica, o estudo pretendeu esclarecer que, ainda que se opte por uma teoria relativa da imunidade de execução, não se observa uma pacificação razoável acerca de quais situações devem comportar esta relativização e nem mesmo acerca de quais critérios devem ser utilizados como base para que se permita a execução de sentença proferida por cortes domésticas contra Estados soberanos.
Não obstante a isto, este breve estudo também trouxe elementos que atentam para o fato de que alguns critérios vêm, ainda que preliminarmente e com as devidas ressalvas já feitas, despontando junto à doutrina como exceções mais pacíficas à imunidade de execução. De fato, a renúncia, a earmarked property e as propriedades que se destinam a finalidades estatais não comerciais mostraram-se, por vezes, como ‘denominadores comuns’ tanto em julgados internacionais como nos principais diplomas normativos sobre o tema.
Conquanto sejam meritórias e de extrema valia a suposta ‘pacificação’ das supramencionadas exceções, tratam-se, indubitavelmente, de iniciativas incipientes. Reitera-se, o debate em torno da imunidade de execução desenvolve-se a passos hesitantes.
Todo este cenário marcado pela insegurança jurídica aponta para uma direção preocupante. A Justiça (entendida novamente aqui como acesso aos tribunais) e a efetivação dos direitos, seja dos Estados ou, até mesmo e principalmente, dos indivíduos, não pode ser assegurada em sua plenitude; não há garantias.
Principalmente no que se refere a estes últimos, dada a progressiva intervenção dos Estados na economia e em atividades comerciais, multiplicam-se sobremaneira as relações estabelecidas entre os entes públicos e os particulares e, por óbvio, igualmente se multiplicam os potencias conflitos entre as partes. Se, por um lado, defender-se a teoria absoluta da imunidade executiva representará a impossibilidade de a parte eventualmente ofendida buscar qualquer meio para pleitear seus direitos; por outro, a adoção de uma teoria relativista ainda não é apta a garantir, uma vez comprovada a divergência das cortes na aplicação dos critérios para semelhante relativização, que haverá uma prestação jurisdicional minimamente satisfativa.
Nesse contexto, discorda-se, em parte, das palavras de Guido Soares, para o qual:
[...] o problema de execução é muito sério, e a experiência internacional que temos é esta: por mais que tenhamos todos os casos de Estados estrangeiros, no fundo, quando se trata de execução, a coisa foge ao Poder Judiciário e vai para a velha diplomacia, inclusive, com os perigos da reciprocidade[59].
De fato, o problema envolto à imunidade de execução é de todo complexo, mas ele não deve “fugir ao Judiciário”. Ao contrário, é nele que se encontra a expectativa de que o tema fique cada vez mais claro e, por consequência natural, aos jurisdicionados seja não só garantido a prerrogativa de pleitear seus direitos, mas de ter a sua demanda efetivada e satisfeita por critérios minimamente objetivos.
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