Resumo: Trata o presente estudo de uma reflexão acerca da imunidade de execução no Direito Internacional. Ante a uma relativização crescente de institutos fundamentais das relações internacionais, como é o caso da soberania e da imunidade jurisdicional, observa-se uma sutil preferência de alguns Estados por adotar uma concepção absoluta da imunidade executiva. Resultado outro não haveria, senão fazer da efetividade processual um valor por vezes incerto nas relações interestados e, dada a crescente intervenção do Estado em atividades tipicamente privadas, também nas relações entre Estados e indivíduos.De modo diverso, contudo, alguns países adotam uma teoria relativa da imunidade de execução, excetuando algumas situações em que as medidas de constrição levadas a efeito pelas cortes domésticas poderão alcançar, uma vez aperfeiçoada a condenação, o patrimônio do Estado estrangeiro. Não obstante a isto, ainda no que se refere aos países que adotam restrições à imunidade executiva, os critérios por eles utilizados para se determinar as situações que contemplarão semelhante relativização são, de todo, controversos. Investigá-los é, sobretudo, uma tarefa de análise dos casos em que direitos fundamentais, como o acesso à Justiça, possam ser efetivados no plano internacional.
Palavras-chave:Imunidade de execução. Medidas de constrição. Sistematização normativa.
Sumário: 1INTRODUÇÃO. 2IMUNIDADES INTERNACIONAIS. 3IMUNIDADES DE JURISDIÇÃO. 4IMUNIDADES DE EXECUÇÃO. 4.1DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS. 4.2DA PROIBIÇÃO DA EXECUÇÃO FORÇADA PELO ESTADO JULGADOR. 4.3TRATAMENTO DOUTRINÁRIO E DO RECENTE MOVIMENTO DE RELATIVIZAÇÃO DA IMUNIDADE DE EXECUÇÃO: CONTRADIÇÕES. 4.4DA INADEQUAÇÃO DO CRITÉRIO ATOS DE GESTÃO v. ATOS DE IMPÉRIO E DA DIFICULDADE DE ESTABELECIMENTO DE ALGUM PARÂMETRO. 4.5PRINCIPAIS EXCEÇÕES À IMUNIDADE DE EXECUÇÃO. 4.5.1Da renúncia à imunidade de execução. 4.5.2Earmarked property – da execução contra propriedade reservada para satisfação de créditos. 4.5.3Propriedade que se destina a finalidades comerciais. 5CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.
1.INTRODUÇÃO
São evidentes as transformações vivenciadas pelo Direito Internacional. Novos atores passaram a dividir com os Estados, sujeitos clássicos das relações exteriores, a capacidade de ser destinatário de direitos e deveres internacionais. A soberania, elemento fundante de toda a teoria e prática das relações interestados, tornara-se um conceito relativizado. Progressivamente mais complexas estão as interações entre os agentes internacionais, fazendo das organizações regionais e mundiais uma tendência institucional. As cortes domésticas, anteriormente relegadas a funções jurisdicionais meramente internas, são hoje aptas a subjugar outros Estados a suas sentenças[1]. Enfim, é indubitável o vislumbre de um movimento do Direito Internacional no sentido de se coadunar aos mais altos reclames de seus construtores e destinatários.
Alguns institutos tradicionais remanescem, contudo e em certa medida, intangíveis e imutáveis; alheios, pois, do movimento adaptativo sobrevisto. Dada a complexidade e extrema relevância de alguns temas para o Direito Internacional, observa-se uma sútil, mas perigosa preferência pela mantença de alguns regramentos em reais pedestais, por vezes imunes de discussões profícuas e desconstruções teóricas que poderiam modificar alguma realidade que seja no plano internacional.
Trata-se, em verdade, do incipiente debate envolto à questão das Imunidades de Execução no Direito Internacional.
Pode-se dizer, em linhas gerais, que tratam as imunidades genéricas de uma prerrogativa derivada da soberania estatal, em que um Estado soberano não pode ver os seus atos subjugados à jurisdição interna de seu par. Referimo-nos, em especial, à tradicional norma consuetudinária internacional par in paremnon habet judicium, regramento basilar das relações interestados.
Premente, porém, é uma breve distinção entre Imunidade de Jurisdição e Imunidade de Execução a fim de melhor delinear o objeto deste modesto estudo[2]. Em suma, a primeira atrela-se à impossibilidade de um Estado figurar como parte em um litígio sob jurisdição de outro, enquanto a segunda modalidade de imunidade atesta a vedação de, uma vez submetido o Estado à jurisdição de seu par, executar-se a sentença então proferida.
Não obstante se tratarem, Imunidade de Jurisdição e de Execução, de institutos jusinternacionalistas evidentemente distintos, é inegável a aproximação entre eles. A apreciação jurisdicional de uma demanda internacional naturalmente presume a execução ou o cumprimento da decisão então proveniente. Regra geral, apreciação e execução são etapas sucessivas e dependentes no iter processual. Afinal, por um lado, a medida a ser executada será definida na fase de apreciação jurisdicional. E, por outro, de nada adiantaria a apreciação de uma demanda desacompanhada da execução e satisfação da medida ou direito estipulados.
É o que se depreende das palavras de José Ignácio Botelho de Mesquita, para o qual:
Na imunidade de cognição está compreendida a imunidade de execução e vice-versa: na renúncia à imunidade de cognição está incluída a renúncia à imunidade de execução. Assim é porque o processo de cognição, em tal caso, tem por finalidade precípua a criação de um título executivo judicial a favor do credor e não se pode conceber que a aceitação da jurisdição para tal fim não implique a aceitação da utilidade que se possa extrair da sentença condenatória.[3]
No entanto, é perceptível uma incongruência entre as fases de apreciação e execução nas demandas internacionais julgadas nas Cortes internas dos Estados. É dizer, não se observa que, da prestação jurisdicional exercida pelas Cortes internas de certo Estado, haverá, necessariamente, a execução da medida estipulada no decisum; não há garantias.
A incongruência a que se refere deve-se, sobretudo, à aplicação hodierna que as Cortes internas dos Estados fazem dos institutos da Imunidade de Jurisdição e da Imunidade de Execução. Notadamente, tem-se que esta última modalidade das imunidades internacionais não acompanhou a evolução doutrinária e jurisprudencial já assumida e, de certa forma e com as devidas ressalvas, pacificada no campo das Imunidades de Jurisdição.
Durante os últimos 50 anos, muitas cortes nacionais adotaram o conceito restritivo de imunidade em detrimento de outro absoluto. Atualmente, nas jurisdições que seguem a teoria restritiva da imunidade de jurisdição, estados estrangeiros são normalmente passíveis de apreciação no que concernem seus atos de gestão, comerciais ou atividades não soberanas. Outras cortes são mais resistentes, contudo, para igualmente restringir o objeto da imunidade de execução.[Tradução nossa]. [4]
Em efeito, os julgados das Cortes internas dos Estados[5], bem como manifestações dos sujeitos de Direito Internacional[6] atestam a convergência doutrinária e jurisprudencial em torno de um critério, em certa medida, objetivo para a casuística de aplicação do Instituto da Imunidade Jurisdicional.
De modo diverso, contudo, a aplicação de medidas executivas pelas Cortes internas dos Estados é um recurso bastante limitado e restrito no Direito Internacional[7], conforme pretende-se investigar ao longo deste estudo. E, ainda que um recurso de aplicação limitada, não se vislumbra, de maneira evidente, algum critério objetivo e pacificado que possa orientar os casos em que haverá ou não a relativização do instituto da Imunidade de Execução.
Deste contexto, algumas consequências de natureza material e formal lhe são inerentes. Formalmente, a ausência de garantias de que da apreciação jurisdicional das Cortes internas advirá a execução da sentença torna o processo como um todo inócuo. Materialmente, por outro lado, a falta, em tese, de um critério objetivo para aplicação de medidas coercitivas pelas Cortes internas é, indubitavelmente, um instrumento que compromete a segurança jurídica podendo vir, eventualmente, a causar ‘injustiças’ no plano internacional.[8]
Nesse mesmo sentido, há de se ver, ainda, que o debate acerca da aplicabilidade das Imunidades de Execução nos julgados domésticos e internacionais tem em seu histórico marcas de preterimento. Reflexão já notada pela doutrina, como se observa:
Contudo, a execução dos julgamentos de jurisdições internacionais recebeu pouca atenção da doutrina durante muito tempo; considerava-se, com efeito, que a execução espontânea e de boa fé deveria ser o corolário do reconhecimento da competência da Corte, posicionamento que a prática também confirmava. Durante muito tempo, a doutrina, em conformidade com a concepção normativista, vinculou o processo de execução à esfera política, excluindo-a completamente da esfera jurisdicional.[Tradução nossa].[9]
A existência de sentenças variadas, ora privilegiando a Imunidade de Execução dos Estados, ora denegando-a em favor de alguns atos, aponta para uma direção preocupante. A coexistência de precedentes jurisdicionais conflitantes compromete a segurança jurídica que se espera de qualquer tribunal ou órgão decisório. E é justamente este o cenário que pretendemos enfrentar neste estudo.
2 IMUNIDADES INTERNACIONAIS
A palavra imunidade provém da palavra immunitas, cuja tradução é “isenção” ou “dispensa”. Trata-se, em efeito, de uma isenção outorgada para que o ente não esteja sujeito a determinadas imposições legais do Estado estrangeiro. Em melhores palavras, a imunidade de jurisdição seria a isenção, para certas pessoas ou agentes, da jurisdição exercida por outro ente soberano.Fundada sob o postulado da soberania, a imunidade constitui verdadeiro instrumento garantidor da autonomia e da independência das atividades representativas inerentes a um Estado.
A partir desta breve definição e apenas para melhor delinear o objeto deste artigo, fica evidente que deter-nos-emos especificamente sobre as denominadas imunidades estatais jurisdicionais, sem nos atentarmos para as questões envoltas às imunidades diplomáticas ou, ainda, sobre questões relativas à teoria do ato do Estado. É dizer, serão estudadas, essencialmente, as imunidades estatais em face dos tribunais domésticos dos Estados estrangeiros, das quais são espécies a imunidade de jurisdição e a imunidade de execução[10]. Ambas serão sucintamente abordadas neste tópico apenas a título de composição do debate principal que se pretende instaurar.
Como já sobrevisto, a imunidade de jurisdição, para o Direito Internacional Público, poderia ser definida como a “isenção, para certas pessoas, da jurisdição civil, penal, administrativa, por força de normas jurídicas internacionais, originalmente costumeiras, praxe, doutrina, jurisprudência, ultimamente, convencionais, constantes de tratados e convenções”.[11]
Por outro lado, a imunidade de execução visa subtrair um Estado às medidas executórias forçadas, tais como a penhora, promovidas por outro Estado. Seguindo a doutrina de Guido Soares, a imunidade de execução seria a inaptidão das cortes de um determinado Estado para “[...] decretar medidas constritivas (provisórias e preliminares, de preparação ou acautelatórias, e medidas definitivas), contra as pessoas, e em especial, contra os bens de propriedade ou posse daquelas pessoas imunes”.[12]
É de se observar, a par das definições sublinhadas, que tanto imunidade de jurisdição como imunidade de execução constituem categorias autônomas. A consideração que ora se faz é importante quando se observa que ambas as espécies de imunidade estatal são, em muitas das vezes, trabalhadas em um só contexto; atribuindo-se a elas a mesma contextualização história e os mesmos efeitos jurídicos. O que, indubitavelmente, é de todo equivocado.
De fato, as duas modalidades de imunidades estatais
são juridicamente inconfundíveis, pois, embora possuam relações estreitas entre si, traduzem realidades independentes e distintas, desse modo reconhecidas, quer no plano conceitual, quer, no âmbito de desenvolvimento das próprias relações internacionais.[13]
Cumpre frisar, imunidade de jurisdição e de execução são garantias processuais essencialmente distintas; desde a contextualização histórica até a pacificação doutrinária e jurisprudencial assente sobre o tema, como será melhor esclarecido ao longo deste estudo. Trata-se de institutos autônomos, ainda que as similitudes, muito em razão de sua condição de espécies do gênero imunidades estatais, sejam igualmente evidentes.
3 .IMUNIDADES DE JURISDIÇÃO
Em linhas gerais e sentido amplo, as imunidades jurisdicionais podem ser definidas como regramentos que impedem que os Estados sejam submetidos, formal e materialmente, à jurisdição de seus pares[14]. De fato e deve se reconhecer, é de conhecimento que o “Estado tem como direito fundamental o de exercer a sua jurisdição no território nacional”[15]. A capacidade de exercer a jurisdição em seu próprio território decorre da própria condição de soberania estatal.
Entretanto, existem certas pessoas e coisas às quais não se aplica a regra de sujeição à jurisdição do Estado estrangeiro, ainda que se encontrarem no seu território. Para tanto, estas pessoas devem dispor de prerrogativas de imunidade jurisdicional.
No que se refere à imunidade de jurisdição, propriamente, cabe analisar alguns aspectos relevantes. Em efeito, a isenção de que aproveita o ente de Direito Público, neste caso, abrange a atividade jurisdicional exercida pelo Estado soberano. E, conforme afirma Cândido Rangem Dinamarco,
“[...] a jurisdição é, portanto, uma função estatal e o seu exercício constitui a exteriorização da capacidade que tem Estado de se impor para cumprir os seus objetivos, ou seja, exteriorização do poder”.[16]
Considerando que a jurisdição de um Estado é inicialmente ilimitada, consistindo, segundo Humberto Theodoro Júnior, em um “poder que toca ao Estado, entre as suas atividades soberanas, de formular e fazer atuar praticamente a regra jurídica concreta [...]”[17], a imunidade é um instituto que a relativiza. Isto porque, em determinados casos em que for parte outro Estado, a jurisdição dos tribunais nacionais não poderá, ao menos num olhar superficial, ser exercida.
A imunidade de jurisdição configura, portanto, um conjunto de regras negativas que estabelecem quando uma corte não poderá julgar um caso. Tomando por base a definição de jurisdição trazida por Dinamarco, seria a imunidade jurisdicional um fator limitador da exteriorização do poder estatal perante os seus pares que, na condição de soberanos, seriam indiferentes à sua jurisdição.
Ao longo do último século, contudo, a imunidade de jurisdição apresentou uma espetacular e expressiva evolução doutrinária e jurisprudencial. Inicialmente vista sob uma perspectiva absoluta, a imunidade jurisdicional vem sendo tratada de maneira relativizada a partir do que se observa dos últimos julgados internacionais.[18]
A visão clássica das imunidades jurisdicionais decorre, efetivamente, da máxima “the king can do no wrong”. O brocardo inglês visa atestar que a Lei não poderia, em nenhuma hipótese, insurgir-se contra o rei. Numa compreensão mais refinada do tema, Guido Soares afirma que:
[...] ninguém tem jurisdição sobre o Rei, isto é, este se situa acima da Lei e, logicamente, é imune. Nessa linha, surgem algumas citações de uma doutrina de imunidade absoluta, que ainda persiste em alguns países, cuja expressão é: the king can do no wrong.[19]
O contexto delineado não é de difícil compreensão. De fato, a Lei não poderia se insurgir contra o rei, eis que a sua própria vontade se aperfeiçoava nas normas que regiam o Estado. O entendimento fica ainda mais claro quando se é levado em conta que era o próprio rei quem escolhia e nomeava os juízes das cortes. Neste sentido, tanto a elaboração como a aplicação da Lei passavam pelas mãos do soberano. Pelo que incabível era se pensar que o judiciário julgaria o rei por seus próprios atos.
Da mesma forma que o rei soberano não poderia ser submetido à jurisdição interna de seu Estado, também não o poderia ser à jurisdição de seus pares. A submissão de um soberano à jurisdição de seu par seria uma afronta ao postulado da soberania e, indubitavelmente, um óbice à manutenção das relações internacionais. Na qualidade de seres soberanos, os reis e seus representantes estavam acima de qualquer Lei.
Com o surgimento dos Estados Nacionais, a imunidade de jurisdição continuou a ser aplicada, a par do que ocorria com os reis soberanos, sob uma perspectiva absoluta.
A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros possuiu, durante muito tempo, um caráter plenamente absoluto, pois era aplicada de forma análoga à imunidade concedida à pessoa do soberano, ou seja, de forma praticamente irrestrita, significando que os atos executados por um Estado não podiam, desta forma, ser submetidos à apreciação de uma corte de outro país igualmente soberano.[20]
Por conseguinte, consolidou-se na doutrina[21] a concepção absoluta do instituto das imunidades de jurisdição, incorrendo na “exclusão de qualquer intervenção de juiz ou autoridade administrativa de um Estado, em qualquer controvérsia que diga respeito a Estado estrangeiro diretamente, bem como em relação às emanações deste”.[22]
No campo jurisprudencial, a concepção absoluta da imunidade de Estado estrangeiro foi cristalizadaatravés da paradigmática decisão sobre o caso da Escuna Exchange, proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América em 1812. Esta decisão assumiu a posição das cortes norte-americanas em favor da concepção absoluta das imunidades jurisdicionais e tornou-se o precedente que orientou as cortes não só dos Estados Unidos, mas de diversos outros países.[23]
Entretanto, a teoria absoluta das imunidades jurisdicionais foi gradativamente perdendo força. Muito devido à alteração do perfil estatal, foi se concebendo, doutrinária e jurisprudencialmente, exceções à regra de que o ente soberano está totalmente imune à jurisdição de seus pares. Surgia, pois, a teoria relativista da imunidade de jurisdição[24].
Por um lado, os Estados nacionais passaram a se inserir em atividades mercantis, tipicamente executadas por particulares. Por outro, alguns entes soberanos desenvolveram programas intervencionistas e diretivos na economia, em clara inspiração keynesiana. Vale dizer, os Estados não mais se reservavam a atividades de índole estritamente pública. Invariavelmente, atividades mercantis e comerciais tornaram-se o cerne de inúmeras políticas governamentais.
Todavia, a principal motivação para que as imunidades de jurisdição fossem relativizadas não foi a simples transgressão dos limites do publicus pelos Estados nacionais. É interessante notar que a principal razão para a contestação da teoria absoluta envolveu a busca da comunidade internacional pelo mais nobre sentimento de Justiça. Explica-se melhor.
[...] transformações ocorridas no panorama político, social e econômico do século XIX levaram a uma consequente alteração no papel desempenhado pelo Estado, que passa a se envolver de forma cada vez mais intensa em campos antes dominados pela ação dos particulares, levando a um número cada vez maior de relações de caráter privado, como transações comerciais, entre os particulares e o Estado. Consequentemente, aumentou também a litigância sobre disputas oriundas destas relações, e, nestes casos, as reivindicações de imunidade trouxeram resultados injustos, pois os indivíduos prejudicados tinham negados os remédios legais por razões completamente desconexas do âmago da sua causa de ação[25].
É notável a importância do desenvolvimento dos direitos humanos para a evolução e transformação da teoria das imunidades jurisdicionais. Não é difícil se imaginar que, quando ainda vigente a teoria absoluta, inúmeros Estados utilizaram de suas prerrogativas de imunidade não só para os assuntos estritamente públicos, mas para todos os demais em que estivessem envolvidos. Aí se incluindo, porventura, aqueles assuntos em que o Estado atuava como se particular fosse. Por óbvio, estabelecia-se uma relação particular entre partes visivelmente desiguais, sendo a imunidade a principal força motriz.
De fato, a restrição aos indivíduos de pleitearem seus direitos junto a Estados estrangeiros (à custa de uma imunidade absoluta) não se justificava. Raciocínio diverso seria consagrar a denegação da Justiça[26]. Uma vez atuando como ente de direito privado, aos Estados devem, nestas situações, ser aplicadas normas de semelhante natureza.
Valor fundado e decorrente deste poder de império, as Imunidades de Jurisdição tiveram de se remodelar a esta nova realidade. Veio à lume, então, a separação doutrinária entre atos de império e atos de gestão, como suposta alternativa para solucionar as controvérsias geradas pela adoção da teoria absoluta das imunidades de jurisdição.
Os atos de império indicariam, em linhas gerais, aquelas atividades estatais de representação oficial executadas por seus funcionários. Os atos de gestão, a seu turno, corresponderiam às atividades decorrentes da atuação do Estado na iniciativa privada. No mesmo sentido, trazemos a doutrina da administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que delineia com autoridade a separação de atos estatais a que se faz referência:
Essa classificação vem do direito francês e foi também desenvolvida pelos autores italianos; atos de império seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes, a não ser por delegação do poder público. Atos de gestão são os praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não diferem a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum.[27]
Ante ao exposto, tem-se que somente os atos de império do Estado poderiam usufruir da prerrogativa de Imunidade de Jurisdição. Atos de gestão, invariavelmente, seriam passíveis à apreciação jurisdicional interna de outro Estado. Indubitavelmente, o vislumbre da separação supra delineada coadunou-se aos princípios vetores da ciência jusinternacionalista. Isto porque se tornou possível a responsabilização direta dos Estados em situações em que ele não estava atuando em nome de seus nacionais.
A Justiça, entendida aqui como acesso direto à Justiça para pleitear quaisquer direitos, entoava, pois, um novo tom, certamente mais amplo e democrático. A passagem de uma visão absoluta das imunidades de jurisdição para outra relativa reveste-se, pois, de considerável relevância já que “[...] quanto mais extenso for o reconhecimento da imunidade, maior será a proteção dada ao Estado, e menos estará assegurada a proteção dos direitos do particular em face dos alegados direitos e prerrogativas do Estado”.[28]
Não se observa, contudo, o mesmo compasso interpretativo, seja em sede de doutrina ou de jurisprudência, quando a discussão versa sobre o instituto da Imunidade de Execução. É o que passaremos a ver a partir de agora.