2. A interpretação vigente da lei n. 6.683/79
Está aberto o debate em torno da possibilidade de uma nova interpretação à Lei n° 6.683 de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anistia. O tema do debate não é novidade tanto entre as vítimas do regime militar havido no Brasil, quanto entre os seus algozes, aqueles que, em nome da defesa da “Segurança Nacional” praticaram a tortura, os homicídios, os desaparecimentos forçados e toda forma de assédio possível e que, até os dias atuais, se beneficiaram com a Lei da Anistia, conforme afirma Roncolato (2008, p. 31) ao escrever que “Ao contrário do que a mídia fez parecer, essa é uma batalha que se trava há 29 anos, ou mais”.
Soto (2009, p. 12) lembra que:
A Lei de Anistia beneficiou, teoricamente, vencidos e vencedores, torturadores e torturados. Seu texto levanta questões que até hoje provocam polêmicas – como quando se indaga se a tortura, rotulada universalmente como um ato hediondo, pode ser considerada ato político.
A Lei da Anistia, se considerado tecnicamente o teor de seu texto, alcançaria tão somente àqueles que cometeram crimes políticos ou conexos a estes, segundo a Legislação em vigor à época (Lei de Segurança Nacional), sem prejuízo de toda a discussão acerca do que seriam os crimes conexos. Não poderia, portanto, alcançar aos militares que trabalharam pela manutenção do regime, com exceção daqueles punidos com fundamento no AI-1 – Ato Institucional número um – que expulsou da corporação mais de uma centena de oficiais de carreira em alta patente.
Segundo Angela Mendes de Almeida (2008, p. 04):
A Lei da Anistia de 1979, outorgada pelo governo Figueiredo, fez questão de incluir em sua redação a anistia aos “crimes políticos e conexos”. A expressão “conexos”, em si anódina, tornou-se uma senha. Começava a se desenvolver uma verdadeira política do esquecimento, a tentativa de passar uma borracha no passado recente, de mesclar compactamente os atos executados em nome do Estado e as ações de grupos políticos contra esse Estado nascido de um golpe militar. Floresceu nesse período, entre políticos à direita e à esquerda, aquela incansável tendência à conciliação impossível dos contrários, que de Figueiredo a Sarney, chegou à Nova República.
As enormes manifestações populares que precederam a Lei da Anistia, desde 1977, não redundaram em uma anistia ampla, geral e irrestrita, como pediam os presos, ex-presos e perseguidos, e sim em uma legislação destinada a blindar as práticas de tortura, morte e desaparecimento contra qualquer investigação. Nos anos seguintes a força popular foi canalizada para o processo eleitoral, na esperança em um partido e em um homem.
[…]
Dos três pilares de uma transição de regimes ditatoriais para Estados democráticos de Direito – verdade, justiça e reparação – toda a atenção foi concentrada nesta última, principalmente na reparação econômica com a qual se pretendeu cimentar a parede do esquecimento.
Há, porém, quem defenda que a interpretação da Lei da Anistia não deva ser reavaliada, repetindo o argumento impresso no texto legal de que ela atingiu a todos quantos cometeram crimes políticos e conexos a eles, no período compreendido entre 1961 e 1979.
O tema voltou à cena em julho de 2008, quando, numa audiência pública promovida pelo Ministério da Justiça para discutir a violação de direitos humanos na época da ditadura, o Ministro da Justiça, Tarso Genro e o Secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Vanuchi, defenderam publicamente a punição a todos aqueles que praticaram atos de tortura no decorrer daquele período no Brasil. Desde então muitas têm sido as manifestações em defesa tanto de um lado quanto de outro, as matérias nos órgãos de comunicação e os eventos promovidos com este tema.
Segundo o Ministro Tarso Genro (apud BELCHIOR, 2008):
Se um agente público na ditadura invadir uma residência e prender alguém cumprindo ordem legal, isso é crime político de um estado de fato vigente naquele momento. Mas nem a legalidade da ditadura permitia a tortura. Não precisa mudar a lei. Tem que ser interpretação do Poder judiciário.
Da mesma forma como não há consenso na sociedade civil, também não há nos órgãos oficiais. Segundo Fábio Guibu e Graciliano Rocha (2008), o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, rebateu a opinião do Ministro Tarso Genro afirmando categoricamente que “Não haverá mudança na Lei da Anistia”. Tal declaração foi dada aos jornalistas do jornal Folha de São Paulo após a participação do Ministro numa cerimônia de troca de comando do Comando Militar do Nordeste – CMNE – ocorrida em Recife (PE). O Ministro afirmou, ainda, que "A Lei da Anistia já esgotou os seus efeitos" e, portanto, "não existe hipótese de você rever uma situação passada".
Mas não é só entre os ministérios diretamente envolvidos com a questão que a controvérsia é exposta. O site Consultor Jurídico veiculou, em 5 de novembro de 2008, a notícia de que em São Paulo, onde o Ministério Público Federal move, desde maio do ano passado, através de seus procuradores Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Marlon Alberto Weichert e outros, uma ação civil pública contra a União e dois ex-militares, comandantes do DOI-CODI paulista em 1975 (Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel), este mesmo Ministério Público Federal emitiu parecer, assinado pelo procurador Fábio Elizeu Gaspar, no qual se posiciona contrariamente à abertura de ação penal para investigar a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido justamente à época do comando de Brilhante Ustra e Audir Maciel, por entender que os acusados já não podem mais ser condenados por este crime após a Lei da Anistia de 1979.
Uma das autoras desta ação civil pública, a Procuradora da República Eugênia Fávero, em matéria divulgada pela Agencia Brasil (2008), no site do Jornal Gazeta do Povo, defende que os crimes de tortura cometidos durante a ditadura militar se enquadram no conceito de crime de lesa-humanidade, previsto desde 1945 pelo Tribunal de Nuremberg, sendo, portanto, imprescritíveis.
O enquadramento da tortura nos crimes de lesa-humanidade é apenas mais um dos muitos argumentos dentre tantos colocados a favor de uma nova interpretação da Lei da Anistia. Segundo o também Procurador da República e autor da ação contra o Coronel Ustra, juntamente com a Dra. Eugênia Fávero, Dr. Marlon Alberto Weichert (2008), em entrevista concedida ao jornalista Paulo Henrique Amorim, no programa Entrevista Record, exibida no dia 24 de junho de 2008:
A lei tecnicamente não é recíproca. Ela fala que estaria anistiando também crimes de motivação política. Mas crimes de motivação política não são crimes que o Estado pratica contra o cidadão. São crimes que o cidadão pratica para questionar a autoridade do Estado. Então, esse é um conceito muito tranqüilo. A Lei de Anistia não anistiou torturador, não anistiou o agente público. Na verdade, o que nos parece que do ponto de vista histórico o que aconteceu é que as próprias Forças Armadas tinham vergonha de admitir que estavam praticando crimes. E deixaram a oportunidade de colocar lá a previsão de que eles colocaram crimes e se anistiavam por esses crimes. Mas, mesmo que tivessem colocado essa previsão, essa lei seria inconstitucional, inválida. Porque o direito não aceita a auto-anistia, ou seja, eu pratico o crime e depois eu me auto-perdôo. A anistia só tem aceitação jurídica se for dentro de uma discussão democrática, ou seja, hoje no regime democrático, vamos discutir uma lei de anistia. As partes estão bem representadas, todo mundo tem seu espaço político de manifestação. Mas num governo ditatorial, o governo diz: eu dou uma anistia pra vocês e eu vou me auto-perdoar também. Isso não é aceito. Os tribunais internacionais, a ONU já disseram que isso não tem validade.
A divergência está em todos os poderes e esferas oficiais do Estado. Tem sido também amplamente divulgada a opinião contrária à revisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, da Advocacia Geral da União e até do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva.
O Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes (apud NASCIMENTO, 2008, p. 15), manifestou-se publicamente sobre o assunto dizendo que:
[…] a abertura dos arquivos da repressão em países da América Latina não é a melhor (solução), tanto é que eles não produziram estabilidade institucional. […] Ao contrário, eles têm produzido ao longo dos tempos bastante instabilidade.
Noutra oportunidade, Mendes (2008) também se manifestou, desta vez alegando a sua discordância com o que chamou de “idealizações ou politizações do tema direitos humanos”, afirmando que:
Evidente que esse tema - direitos humanos - se presta a idealizações ou politizações, eu tenho uma posição clara com relação a isso: repudio qualquer tentativa de manipulação ou tentativa de tratar unilateralmente os casos de direitos humanos. Direitos humanos valem para todos: presos, presidiários, presos políticos, da mesma forma.
A opinião do presidente do Supremo Tribunal Federal, no entanto, não é unanimidade na magistratura. Entidades representativas dos magistrados como a AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros – e a AJD – Associação Juízes para a Democracia – já se manifestaram publicamente favoráveis a uma nova interpretação da lei, esta última, inclusive, participando como “Amicus Curiae” na ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – n° 153, movida pelo Conselho Federal da OAB junto ao Supremo, provocando o Judiciário a se manifestar e a dar a última palavra sobre qual a interpretação a ser dada ao artigo 1°, da Lei, que define o seu alcance e abrangência.
Nas palavras do Vice-Presidente da AMB para Direitos Humanos, João Ricardo dos Santos Costa (2009):
Como entidade de magistrados, a AMB não poderia se omitir perante questão tão significativa, notadamente diante da possibilidade de o país ser submetido à jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujos precedentes não admitem as excludentes de responsabilidade que obstam a investigação e sanção dos responsáveis pelas violações. O constrangimento de uma sanção internacional nos afeta como nação, pelo significado da imagem de um Estado-judiciário incapaz de pagar a dívida que tem com o seu povo: a de resgatar a verdade histórica. O Brasil, isso é por demais relevante, dentre os Estados submetidos às ditaduras militares na América Latina, foi o único que não revisou sua legislação de anistia no período de redemocratização.
[…]
A posição da AMB demonstra a consciência e o respeito desta geração de magistrados com as futuras gerações É uma contribuição para que jamais se repitam os trágicos momentos patrocinados pela ditadura militar.
A Associação Juízes para a Democracia foi mais além, não se contentando apenas em manifestar a sua opinião sobre o assunto, solicitou ao Ministro Eros Grau, relator da ADPF no Supremo, que pudesse participar da ação movida pela OAB como amicus curiae por entender que os agentes públicos não podem ser beneficiados pela lei.
Registrou-se também a discussão sobre os crimes ocorridos durante o período das ditaduras militares na América Latina no V Fórum Mundial de Juízes, ocorrido em Belém do Pará, paralelamente ao Fórum Social Mundial. Ali, ao final do evento, foi aprovada a Carta de Belém, na qual, dentre outras determinações, o Fórum manifesta-se favorável à interpretação técnico jurídica da lei da anistia, bem como da persecução criminal dos autores dos crimes cometidos por agentes públicos durante o regime militar. Estas determinações foram amplamente divulgadas, sendo publicadas, entre outros locais, na página virtual da Associação dos Magistrados do Trabalho da 13ª região – ANAMATRA13.
Pressionado a emitir uma posição, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (apud NASCIMENTO, 2008, p. 15), ironicamente durante um ato que indenizava a UNE – União Nacional dos Estudantes – pela demolição de sua sede durante a ditadura, declarou que:
Toda vez que falamos dos estudantes e operários que morreram, falamos xingando alguém que os matou quando, na verdade, esse martírio não vai acabar se a gente não aprender a transformar nossos mortos em heróis e não em vítimas.
Como se percebe, portanto, é verdadeira a afirmação de que a controvérsia está em todos os poderes e esferas do Estado dada a sua importância não apenas para a satisfação dos ensejos daqueles que foram vítimas direta ou indiretamente do sistema, mas também (e principalmente) para que se determine qual a essência do Estado que será implementada nesta nossa, ainda jovem, democracia.
3. A nova interpretação proposta pela ação de descumprimento de preceito fundamental e seus argumentos
Como dito acima, além das ações cíveis que tramitam nas diversas instâncias da Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal a ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – de número 153, assinada pelos advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro, na qual defende que, para que a Lei da Anistia seja interpretada conforme os preceitos e princípios da Constituição Federal de 1988, ela não pode alcançar os agentes que cometeram crimes comuns contra opositores do sistema, conforme divulgou a revista Consultor Jurídico no dia 21 de outubro de 2008. A ação conta com o apoio da Associação Juízes para a Democracia – AJD – que encaminhou ao ministro Eros Grau, relator da ADPF, o pedido para participar como amicus curiae, como forma de reforçar os argumentos apresentados pela OAB, sendo, esta petição, assinada, entre outros, por Dalmo de Abreu Dallari e Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo matéria publicada no dia 18 de dezembro de 2008, também pela Revista on line Consultor Jurídico. Estas duas petições trazem todos os mais relevantes argumentos jurídicos e políticos favoráveis a esta nova interpretação da Lei da Anistia, bem como rebate os argumentos contrários apresentados até o momento e que serão trazidos, de forma sintética, a seguir.
3.1. RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL
A peça assinada por Fábio Konder Comparato, inicia-se trazendo a controvérsia constitucional existente expressa pela divergência entre os entes institucionais dos poderes da República. Porém, ao fazê-lo, questiona também a recepção da Lei pela Constituição Federal de 1988 ao dizer que:
Caso se admita, como parece pacífico, que a Lei n° 6.683/79 foi recepcionada pela nova ordem constitucional, é imperioso interpretá-la e aplicá-la à luz dos preceitos e princípios fundamentais consagrados na Constituição Federal.
[…]
Se a tortura é, assim, universalmente qualificada como prática aviltante, que não dispensa punição, é inadmissível dar à Lei nº 6.683 a interpretação ora questionada, pois ela implicaria, fatalmente, a não-recepção desse diploma legal pela nova Constituição. (grifo do autor)
Embora pouco comentado, este argumento é de extrema relevância, pois, não pode (e nem faria sentido algum) uma nova constituição recepcionar uma lei que não esteja de acordo com os novos princípios e preceitos por ela mesma adotados como ensina Alexandre de Moraes (2007, p. 618) ao escrever que “O fenômeno da recepção, além de receber materialmente as leis e atos normativos compatíveis com a nova Carta, também garante a sua adequação à nova sistemática legal”. No entanto, tendo por fundamento este princípio, caso a Constituição Federal de 1988 não recepcionasse a Lei da Anistia, esta seria revogada, o que resultaria na estapafúrdia situação de retorno à condição de exilados e de direitos políticos suspensos a centenas de cidadãos brasileiros o que também contrariaria os princípios da nossa Carta Magna.
3.2. CONCEITO DE “CRIMES POLÍTICOS”
Argumenta a OAB ao fazer referência ao artigo 1° da Lei, bem como de seu §1°, que a redação a estes dispositivos foram propositadamente feitas de forma obscura com a intenção de se incluir entre os beneficiários da anistia os agentes públicos que, segundo a entidade, teriam comandado e executado crimes comuns contra os opositores do governo de então, e explica o seu ponto de vista, mais adiante, argumentando que:
É fora de qualquer dúvida que os agentes policiais e militares da repressão política, durante o regime castrense, não cometeram crimes políticos.
No período abrangido pela anistia concedida por meio da Lei n° 6.683/1979, vigoravam sucessivamente três diplomas legais, definidoras de crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social: o Decreto-Lei N° 314, de 13/03/1967; o Decreto-Lei n° 898, de 29/09/1969 e, finalmente, a Lei n° 6.620, de 17/12/1978.
Escusado dizer que os agentes públicos que mataram, torturaram e violentaram sexualmente opositores políticos, entre 02 de Setembro de 1961 e 15 de Agosto de 1979, não praticaram nenhum dos crimes definidos nesses diplomas legais, pela boa razão de que não atentaram contra a ordem política e a segurança nacional. Bem ao contrário, sob o pretexto de defender o regime político instaurado pelo golpe militar de 1964, praticaram crimes comuns contra aqueles que, supostamente, punham em perigo a ordem política e a segurança do Estado. (grifos do original)
Neste sentido, corrobora com a tese a AJD quando, através dos autores de sua peça processual, traz o estudo das teorias doutrinárias acerca dos conceitos do que poderia se classificar como crimes políticos argumentando que:
Há muito a doutrina bate-se para fixar os contornos dogmáticos dos crimes políticos, posicionando-se os autores em torno de três acepções: (i) teoria objetiva; (ii) teoria subjetiva; (iii) teoria mista.
Entende-se por objetiva a teoria que atrela a natureza política dos crimes unicamente aos bens jurídicos violados: modelo de Estado, ordem política e social, soberania, ou a estrutura organizacional de determinado regime. A teoria subjetiva remete a definição aos aspectos motivacionais do agente. Não se trata da qualidade do bem jurídico atacado, mas das intenções políticas do autor do delito. Tal definição confere natureza política aos crimes contra a ordem política em si, e aos crimes comuns, desde que praticados com motivação de afetar a ordem estabelecida.
A teoria mista, por sua vez, aponta como políticos os delitos contra bens jurídicos essenciais à ordem legal e constitucional, mas exige a caracterização da motivação política, a intenção de transformar as bases que sustentam determinado modelo de organização pública. Não basta a simples motivação, nem a afetação objetiva de bem jurídico político. Será a soma dos aspectos objetivo e subjetivo que caracterizará o delito em tela.
A legislação brasileira sobre crimes políticos não dispõe com clareza sobre seus elementos, mas afasta qualquer possibilidade de conceituação meramente subjetiva destes, já que, ao se referir a eles destaca sempre os bens jurídicos protegidos. Assim, desde o advento do Decreto-Lei 314/67, passando por suas diversas alterações (DL 898/69 e Lei 6.620/78) até a atual Lei de Segurança Nacional 7.170/83, tem-se uma estruturação dos crimes políticos como atos que violam bens jurídicos específicos, seja a “segurança nacional” (definida como “o estado de garantia proporcionado à Nação para a consecução de seus objetivos nacionais, dentro da ordem jurídica vigente”), seja a “integridade territorial e a soberania nacional; o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; a pessoa dos chefes dos Poderes da União”, acompanhados da motivação política peculiar.
Logo, seja qual for a teoria que se adote para a definição de crimes políticos (puramente objetiva ou mista) é certo que, pela legislação pátria, a mera motivação não sustenta tal caráter, se a conduta principal ou preponderante não afetar bens jurídicos fundamentais para a estrutura política do país.
Não basta, porém, trazer as teorias doutrinárias a respeito da classificação dos crimes políticos, faz-se necessário ainda que estas sejam muito bem situadas no tempo e no espaço dos fatos alcançados pela Lei, ou seja, os crimes classificados como políticos no decorrer do regime militar. Tal definição é de fundamental importância para de determinar o real alcance da Lei. Neste sentido, a peça processual assinada por Dallari (2008) traz ainda que:
Dispõe tal norma que a anistia será concedida àqueles que praticaram crimes políticos. Se assentada a compreensão de que estes se caracterizam pela afetação objetiva da ordem instituída e do regime político que sustenta o Estado, ficam evidentemente excluídos os crimes praticados por servidores desta mesma ordem instituída, com o objetivo de garantir sua manutenção e a vigência de seus valores.
Se crimes políticos objetivam “predominantemente destruir, modificar ou subverter a ordem política institucionalizada (unidade orgânica do Estado)” por meio da turbação da segurança nacional e do modelo de Estado vigente, como apontar, sem insustentável silogismo, que os defensores oficiais desta mesma segurança, agindo para supostamente protegê-la, teriam praticados delitos desta natureza?
Qualquer interpretação em sentido contrário consistiria em um contra-senso. Afastar o elemento objetivo da definição do delito político permitiria caracterizar como tais quaisquer atos de agentes de Estado que violem direitos humanos a pretexto de evitar transgressões à ordem. Agressões e torturas policiais em delegacias e presídios seriam crimes políticos. Homicídios e execuções sumárias praticadas em operações policiais de repressão ao tráfico de droga também, da mesma forma que os massacres do Carandiru e de Carajás. Seriam todos, se condenados, poupados dos efeitos da reincidência (CP, 64, II), e ao mesmo tempo incidiria vedação à extradição quando da prática de atos similares no exterior (CF, art. 5º, LII).
É evidente que tais ilações são absurdas. E sobre o mesmo preceito absurdo funda-se a pretensão de caracterizar os delitos praticados por agentes oficiais do governo militar, remunerados por este, contra seus opositores ideológicos, como crimes políticos, na acepção jurídica do termo.
Ademais, importa destacar que nenhum objetivo político exige a prática de atrocidades como: ameaça de atirar a vítima de avião, simulação de fuzilamento, ameaça de torturar filhos e cônjuge, estupro, criação de ruído intenso para impedir o sono, espancamento, garroteamento, afogamento, pau-de-arara, choques elétricos nos mamilos e genitais, dentre outros. Por mais que se argumente a existência concomitante de objetivo de proteger um regime totalitário, tais crimes são comuns, e como tais devem ser tratados, processados e julgados pelas autoridades competentes.
Por fim, após trazer a definição de crimes políticos para justificar a falta de alcance aos agentes públicos que cometeram crimes comuns em nome do Estado, Dallari e Bandeira de Mello (2008) complementam a análise do artigo primeiro e parágrafo primeiro da Lei 6.683/1979, trazendo à luz quais teriam sido os crimes políticos cometidos por agentes públicos que estejam tenham sido por ela afetados:
É de se perceber que a Lei destaca, na primeira parte, os crimes políticos, e ao final menciona os servidores públicos punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. Desta forma, os delitos e infrações perpetrados pelos agentes do regime, aos quais se estende a anistia, são restritos àqueles punidos nos diplomas especificamente indicados.
Trata-se de crimes ou ilícitos administrativos realizados por servidores insubordinados, inconformados com a ordem autoritária instituída, e, por isso, sancionados com base nas normas excepcionais apontadas, como, por exemplo, a centena de oficiais de alta patente expulsa pelo Ato Institucional n.4.
Ora, os crimes cometidos pelos agentes de repressão em prol do regime, não seriam jamais punidos pelos Atos Institucionais. Praticaram crimes comuns, e, portanto, não são beneficiados pela anistia.
[…]
Os delitos ora em questão, cometidos por agentes do regime, não tem punição fundada em atos institucionais, mas no Código Penal e 15 no Código Penal Militar ou na legislação penal especial, razão pela qual não assiste razão à pretensão de vê-los anistiados pela Lei 6.683/79.
3.3. CRIMES CONEXOS
É consenso entre os que discutem a questão da Anistia Política brasileira que é justamente na expressão “conexos” que está a estratégia para que o regime militar a impusesse também aos agentes públicos que tenham praticado atos de violação dos direitos humanos. Mas qual seria o sentido dado à expressão “crimes conexos” no caso específico dos crimes cometidos pelos agentes públicos com relação aos opositores do regime?
Para os juristas Hélio Bicudo e Flávia Piovesan (2006):
Há que se romper com a insustentável interpretação de que, em nome da conciliação nacional, a lei de anistia seria uma lei de "duas mãos", a beneficiar torturadores e vítimas. Esse entendimento advém da equivocada leitura da expressão "crimes conexos" constante da lei. Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas que se encadeiam em suas causas. Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo delinqüente e pelas ações de sua vítima.
Na opinião esboçada acima, portanto, a conexão entre os agentes públicos e os opositores do regime seria impossível, posto que as motivações de um com relação ao outro seriam antagônicas. Mas seria apenas esta a possibilidade de conexão existente? Comparato e Gentil Monteiro (2008) trazem na peça inicial da ação robusta argumentação teórica na qual respondem a esta questão:
É de geral conhecimento que a conexão criminal implica uma identidade ou comunhão de propósitos ou objetivos, nos vários crimes praticados. Em conseqüência, quando o agente é um só a lei reconhece a ocorrência de concurso material ou formal de crimes (Código Penal, artigos 69 e 70). É possível, no entanto, que os agentes sejam vários. Nessa hipótese, tendo em vista a comunhão de propósitos ou objetivos, há co-autoria (Código Penal, art. 29).
É bem verdade que, no Código de Processo Penal (art. 76, I in fine), reconhece-se também a conexão criminal, quando os atentes criminosos atuaram uns contra os outros. Trata-se, porém, de simples regra de unificação de competência, de modo a evitar julgamentos contraditórios. Não é norma de direito material.
Pois bem, sob qualquer ângulo que se examine a questão objeto da presente demanda, é irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode ser reconhecida, nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal), ou por várias pessoas em co-autoria. No caso, portanto, a anistia somente abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetivos.
[…]
Tampouco se pode dizer que houve conexão criminal pela prática de crimes “por várias pessoas, umas contra as outras”. Em primeiro lugar, porque essa regra de conexão é exclusivamente processual. Em segundo lugar, porque os acusados de crimes políticos não agiram contra os que os torturaram e mataram, dentro e fora das prisões do regime militar, mas contra a ordem política vigente no País naquele período.
Nota-se, portanto, pela argumentação apresentada, que a conexão trata-se de mero instrumento processual destinado a facilitar os trâmites e a unificar a jurisprudência em crimes que tenham os mesmos propósitos ou objetivos, não se tratando, portanto, de direito material e, conseqüentemente, não podendo dar causa à extinção da punibilidade trazida pela anistia.
Neste ponto, mais uma vez, Dallari e Bandeira de Mello (2008), representando a entidade dos magistrados trazem substancial argumentação que corrobora com o argumento dos advogados ao sustentar que:
A doutrina brasileira, com base no disposto nos diversos diplomas legais, especialmente no Código Penal e no Código de Processo Penal, classifica as diversas formas de conexão: (i) Conexão material: concurso formal, material ou crime continuado (CP, arts. 69, 70, 71); (ii) Conexão intersubjetiva por simultaneidade: duas ou mais infrações praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, sem acordo mútuo de vontades (autoria colateral) (CPP, art.76, I, primeira parte); (iii) Conexão intersubjetiva por concurso: duas ou mais infrações praticadas por várias pessoas em concurso (com acordo mútuo), embora diverso o tempo e o local (CPP, art.76, I, segunda parte); (iv) Conexão objetiva: duas ou mais infrações praticadas, quando uma delas visa facilitar ou ocultar a prática da outra (CPP, art.76, II); (v) Conexão probatória: a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influírem na prova de outra infração (CPP, art.76, III); (vi) Conexão intersubjetiva por reciprocidade: duas ou mais infrações praticadas, por várias pessoas, umas contra as outras (CPP, art.76, I, última parte).
De todas as hipóteses de conexão, apenas as duas últimas poderiam fundamentar a conexão dos crimes de repressão aos crimes políticos praticados contra o regime militar. Todas as demais exigem uma unidade de desígnios ou o mesmo sentido de conduta, o que evidentemente não acontece entre o repressor e o insubordinado.
Mas mesmo a conexão probatória e a conexão por reciprocidade não se sustentam nos casos em discussão, pois são institutos meramente processuais, cuja aplicação se presta apenas à racionalidade e à eficácia do exercício da jurisdição. São regras de competência com escopo único de unificar processos, facilitar a instrução e evitar decisões contraditórias. Por isso, não se prestam a conceituar a conexão material prevista na Lei 6.683/79.
Não faria sentido estender a anistia a um crime apenas porque a prova de sua ocorrência está ligada a outro delito beneficiado com o instituto (conexão probatória), ou porque sua realização é recíproca ao crime anistiado (conexão intersubjetiva por reciprocidade).
Ademais, em relação à última espécie de conexão mencionada, cabe destacar que sua caracterização exige a simultaneidade das agressões, no mesmo contexto fático, de forma que a reunião de feitos facilite a análise probatória e impeça decisões díspares. Ocorre, por exemplo, no caso de tumulto ou agressão entre diversas pessoas.
Assim, mesmo que este modo de conexão fosse apto a expandir a anistia aos crimes praticados por agentes da repressão militar, seria forçoso apontar a existência de simultaneidade de agressões. No entanto, tal simultaneidade não se verificou na prática dos crimes contra opositores do regime militar. Foram ações sistemáticas, planejadas, regulares, realizadas sobre vítimas já detidas, sob a custódia dos agressores, sendo que parte delas sequer foi acusada da prática de crimes antecedentes.
Como revelar, aqui, a reciprocidade ou a simultaneidade? Haveria conexão se se tratasse, por exemplo, de conflito entre estudantes e policiais, em praça pública, com agressões mútuas. Mas não faz sentido aplicar a mesma fórmula para a prática de crimes da forma supra descrita, realizados de forma metódica por agentes treinados para tal.
Tais argumentações deixam clara a total impossibilidade da consideração da conexão no caso dos crimes políticos com relação aos agentes públicos e os opositores do regime da época seja por se tratar de mero instrumento processual, seja pela total incompatibilidade existente entre estes e aqueles o que, por si só, já afasta qualquer possibilidade de conexão.
3.4. LEGITIMIDADE DA LEI
Não são poucos os reclamos existentes quanto à legitimidade daqueles que aprovaram o projeto apresentado e transformado na Lei da Anistia. Com efeito, segundo escreve Carlos Fernandes, Presidente da ABAP – Associação Brasileira de Anistiados Políticos – na home page da entidade:
Aprovada no Congresso Nacional sob vaias da oposição que a desejava como reclamada pelo povo, AMPLA, GERAL E IRRESTRITA. A Lei 6683/79, porém, apesar de restrita, teve o grande mérito de reabrir as portas do Brasil aos seus exilados e de libertar os que aqui permaneciam presos. Permitiu o retorno ao trabalho dos que haviam sido demitidos, em havendo interesse das empresas estatais, dando-lhes prazo para reversão e aposentando compulsoriamente os que não fossem aceitos. Seu pecado maior foi o de excetuar da Anistia, no parágrafo II do Artigo 1º, aqueles que haviam participado da luta armada contra a Ditadura Militar.
São três os principais argumentos que questionam a legitimidade da lei, quais sejam: o fato de não ter havido um necessário processo de ruptura de um regime ditatorial para a democracia, sendo esta transição, pelo contrário, dirigida pelos próprios militares; a participação no Congresso Nacional dos chamados “Senadores biônicos”, eleitos de forma indireta; e a aprovação do projeto de lei nos termos exatos propostos pelos militares, o que fazia com que a anistia aprovada, embora de fundamental importância naquele momento, não fosse nem ampla, nem geral e nem irrestrita como reinvidicavam os setores da sociedade civil que lotou as galerias do Congresso naquele dia. É o que esclarece Edson Telles (2009), ao escrever que:
Durante a transição política para a nova democracia a anistia foi simbolizada como um ato de perdão para os dois lados envolvidos no conflito. Esta interpretação esteve vinculada ao momento político vivido pelo país, que não sofreu uma ruptura entre os dois regimes, mas antes teve seu processo promovido desde o fim dos anos 70 pelos militares – a chamada “abertura lenta e gradual”, controlando as mudanças e impedindo uma maior participação popular e dos movimentos sociais.
Comparato e Gentil Monteiro (2008) vão além nesta argumentação, afirmando que:
Ressalte-se, em primeiro lugar, que a citada lei foi votada pelo Congresso Nacional, na época em que os seus membros eram eleitos sob o placet dos comandantes militares. Sua carência de legitimidade democrática é acentuada quando se recorda que, por força da Emenda “Constitucional” nº 08, de 14 de abril de 1977, que ficou conhecida como “Pacote de Abril” , 1/3 dos Senadores passaram a ser escolhidos por via de eleição indireta (“Senadores biônicos” ), tendo participado do processo legislativo do qual redundou a aprovação congressual, em 1979, da lei em referência.
Ela foi sancionada por um Chefe de Estado que era General do Exército e fora guindado a essa posição, não pelo povo, mas pelos seus companheiros de farda.
Em conseqüência, o mencionado diploma legal, para produzir o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram crimes contra o povo, deveria ser legitimado, após a entrada em vigor da atual Constituição, pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres, ou então diretamente pelo povo soberano, mediante referendo (Constituição Federal, art. 14). O que não ocorreu.
[…]
O derradeiro argumento dos que justificam, a todo custo, a encoberta inclusão na Lei nº 6.683 dos crimes cometidos por funcionários do Estado contra presos políticos é o de que houve, no caso, um acordo para permitir a transição do regime militar ao Estado de Direito.
A primeira indagação que não pode deixar de ser feita, a esse respeito, é bem esta: Quem foram as partes nesse alegado acordo?
Uma resposta imediata pode ser dada a essa pergunta. As vítimas sobreviventes ou os familiares dos mortos não participaram do acordo. A maior parte deles, aliás, nunca soube a identidade dos assassinos e torturadores, e bom número dos familiares dos mortos ignora onde estão os seus cadáveres.
O acordo foi, então, negociado por quem? Os parlamentares? Mas eles não tinham como nunca tiveram, procuração das vítimas para tanto, nem consultaram o povo brasileiro para saber se aprovava ou não o acordo negociado, que dizia respeito à abertura do regime militar, em troca da impunidade dos funcionários do Estado que atuaram na repressão política.
E a outra parte, quem seria? Os militares aboletados no comando do País? Ora, até hoje a corporação militar não confirma o acordo, pela excelente razão de que ela nunca admitiu o cometimento de crimes pelos seus agentes da repressão. (grifos do autor)
3.5. AUTO-ANISTIA
Tendo a Lei da Anistia, durante todos estes anos, alcançado também os agentes públicos violadores dos direitos humanos, no que os seus defensores costumam chamar de “uma via de mão dupla”, por óbvio que se abre espaço para a argumentação acerca da concessão de auto-anistia do regime de exceção para com os seus agentes.
Neste sentido, declara Wálter Fanganiello Maierovitch (2008):
[…] à época do golpe brasileiro e, como ocorre até hoje em face do direito internacional e das convenções, o recurso da auto-anistia é ilegítimo. Trata-se, na verdade, de expediente concebido por ditadores e tiranos, isso para assegurar impunidade a eles e aos seus carrascos.
A brasileira Lei n° 6.683, de 1979, que concede anistia aos autores de crimes políticos, conexos a eles ou por motivação política, foi editada em pleno regime militar. Ou seja, representa um caso típico de auto-anistia. A mesma linha jurídica foi traçada pelo tirano chileno Augusto Pinochet.
A auto-anistia é vedada por todas as Cortes do Direito Internacional por pretender tornar impunes aqueles que se aproveitaram da estrutura estatal para violar direitos e cometer crimes em benefício próprio. Várias já são as jurisprudências neste sentido conforme sustenta, a OAB por seus procuradores – Comparato e Gentil Monteiro (2008) – ao afirmar que:
[…] num regime autenticamente republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que, ao delinqüirem, executaram suas ordens. Tal seria, obviamente, agir não a serviço do bem comum do povo, mas em seu próprio interesse e benefício.
Vale registrar que a Corte Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Brasil no Decreto Legislativo nº 89, de dezembro de 1998, já decidiu, em pelo menos 5 (cinco) casos, que é nula e de nenhum efeito a auto-anistia criminal decretada por governantes.
A Constituição Federal dispõe que o Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, entre outros, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II). Porventura temos o direito de exigir de outros países o respeito aos direitos humanos, quando nos recusamos a respeitá-los em nosso próprio território? (grifos do autor)
Dallari e Bandeira de Mello (2008), representando a Associação Juízes para a Democracia, corroboram este argumento com um questionamento ainda mais contundente sustentando o seguinte:
Além de afrontar os preceitos constitucionais em vigor e pretéritos, a interpretação extensiva da Lei de Anistia contrasta com o princípio da moralidade e com os parâmetros éticos estabelecidos no ordenamento nacional e em documentos jurídicos internacionais.
Isso porque validar a expansão da extinção de punibilidade aos agentes do regime militar implica legitimar a auto-anistia. A elaboração de normas legais, em estados de exceção, que eximem seus próprios integrantes da persecução penal, é condenável sob a perspectiva ética, e sob o prisma da moralidade dos atos legislativos e administrativos. As normas de auto-anistia, pelo pesado vício de probidade que carregam, não ostentam validade jurídica, e o mesmo pode ser afirmado sobre qualquer interpretação da Lei de Anistia nesse sentido.
[…]
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, com jurisdição reconhecida pelo Brasil (DL 89/98, promulgada pelo Decreto 4463/02), já consolidou entendimento sobre a nulidade de leis de auto-anistia, oferecendo importante indicativo que referenda a interpretação aqui esposada.
[…]
Revela-se robusta a reprovação, por parte da comunidade internacional, a leis que anistiam agentes de regimes totalitários pela prática dos atos mais vis, como a tortura e outros já elencados.
Não restam dúvidas sobre a posição da comunidade internacional sobre a anistia para agentes da repressão em governos totalitários, respaldadas por recente movimento judicial em países da América Latina rechaçando leis dessa natureza (Argentina, Chile, Peru e Guatemala).
Se o Brasil, em livre manifestação de sua soberania, incorporou obrigações internacionais em que se obriga a proteger valores humanitários essenciais, deverá, no momento de interpretar judicialmente o sentido de suas leis, levar em consideração estes mesmos valores. E o sentido, no caso em questão, é rechaçar a anistia àqueles que perpetraram atos bárbaros durante a vigência de um regime ditatorial, possibilitando que o Poder Público, através do regular processo legal, apure fatos e responsabilidades.
Vale mencionar, mais uma vez, que respeitar tais posições não implica abdicar do conteúdo das normas brasileiras, que nunca anistiaram expressamente os agentes do regime. Basta, para tal, conceder a interpretação conforme a própria Carta Constitucional, como requerido na inicial da ação em comento.
As argumentações apresentadas deixam evidentes a utilização da lei da anistia com a intenção de manter impunes aqueles que comandaram e executaram os crimes e as violações de direitos humanos em nome do Estado em favor da manutenção do poder político existente no regime militar. Ainda assim, não é raro que se encontre quem defenda este ponto de vista, inclusive dentro das mais diversas esferas do poder público, como visto anteriormente.
3.6. PRESCRIÇÃO
A discussão acerca da prescrição dos crimes e violações dos direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, talvez seja a mais controversa já que, determinada a sua prescrição, o julgamento daqueles que cometeram tais abominações não pode ser mais reclamado, sejam elas classificadas como crimes políticos, conexos ou comuns.
Para que se possa proceder a uma avaliação mais precisa, é necessário, entretanto, que se traga o conceito de prescrição no que se refere às normas penais. Neste sentido, temos que, segundo ensina Costa Jr. (2009, p. 273):
Tanto o jus puniendi quanto o jus punitionis acham-se delimitados pelo tempo. Se o Estado negligenciar, deixando correr o tempo sem exercitar a pretensão punitiva (jus persequendi in judicio) após a prática delituosa, ou abstendo-se de fazer valer a pretensão executória (jus punitionis) depois da decisão condenatória irrecorrível, perderá o direito de fazê-lo. A prescrição penal é essa perda, da pretensão punitiva ou da pretensão executória pelo decurso do tempo, sem o seu devido exercício.
O fenômeno da prescrição, então, está ligado à perda da pretensão punitiva do Estado provocada pela sua própria inércia frente à sua obrigação de fazê-lo. É o que explica também Fernando Capez (2009, p. 590), que conceitua a prescrição como:
Perda do direito-poder-dever de punir pelo estado em face do não-exercício da pretensão punitiva (interesse em aplicar a pena) ou da pretensão executória (interesse de executá-la) durante certo tempo.
O não-exercício da pretensão punitiva acarreta a perda do direito de impor a sanção. Então, só ocorre antes de transitar em julgado a sentença final. O não-exercício da pretensão executória extingue o direito de executar a sanção imposta. Só ocorre, portanto, após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Se de um lado há os que defendem que tais crimes já não podem ser julgados, alegando para tanto o efeito da prescrição, como o Ministro Gilmar Mendes, há, pelo outro, aqueles que defendem a imprescritibilidade dos crimes de tortura e demais violações dos direitos humanos, seja por determinação legal, seja por considerá-lo, no âmbito do Direito Internacional, como um crime contra toda humanidade (ou, como é chamado, de lesa-humanidade) como o juiz espanhol Baltasar Garzón, responsável pela prisão do general Pinochet, a própria Organização das Nações Unidas ou as diversas instituições internacionais de defesa dos direitos humanos.
Segundo Manfred Novak (2008), principal autoridade da ONU para a tortura:
Os crimes de tortura não prescrevem. Há jurisprudência suficiente que mostra que leis de anistia não devem ser usadas para impedir investigações. É obrigação do Estado investigar tortura e levar os responsáveis à Justiça. Isso sem limitações.
A tese da imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade nas Cortes Internacionais não encontra oposição, sendo amplamente utilizada e, inclusive, prevista em diversas convenções internacionais das quais o Brasil também é signatário. Sobre este aspecto, é importante ressaltar que, caso o Brasil não cumpra as convenções internacionais às quais se filiou, pode sofrer sanções dos mais diversos organismos internacionais o que pode, inclusive, prejudicar a sua imagem e pôr em risco a sua política externa.
Segundo publicação do site Consultor Jurídico (2008):
Parecer do Centro Internacional de Justiça de Transição, nos Estados Unidos, afirma que o Brasil viola convenção continental de Direitos Humanos ao declarar a prescrição de crimes cometidos na ditadura. O estudo foi feito a pedido do Ministério Público Federal.
Segundo presidente do centro, Juan Méndez, o Brasil pode sofrer sanções de cortes internacionais ao justificar o arquivamento de processos que investigam crimes da ditadura com a alegação de que eles prescreveram e não podem ser avaliados por causa da Lei da Anistia, assinada em 1979.
“Portanto, pode se dizer que se o Brasil, como Estado parte da convenção, alega a prescritibilidade para não investigar nem punir os crimes de lesa-humanidade cometidos durante o período da ditadura (1964-1985), não estaria cumprindo as obrigações gerais do artigo 1.1 e estaria dessa maneira violando a convenção (americana de Direitos Humanos)”, aponta Méndez.
Uma das pessoas que mais e melhor representam a luta contra as leis de anistias e as impunidades aplicadas pelos regimes de exceção no mundo nos dias de hoje é o Juiz espanhol Baltasar Garzón que ficou conhecido por decretar a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Lê-se em matéria publicada no Jornal do Senado (2008) em ocasião da visita do Magistrado àquela instituição:
Ao deixar o Senado, Garzón declarou que uma lei de anistia não pode impedir a investigação de “crimes de lesa-humanidade”.
Para o juiz, os crimes cometidos por agentes públicos durante regimes ditatoriais não podem prescrever e suas vítimas “são universais”. Baltasar Garzón defende a ação de cortes internacionais nos países que descumprirem a Declaração dos Direitos Humanos, independentemente de críticas quanto ao desrespeito às suas soberanias.
[…]
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos diz que estes crimes não são prescritivos. Tanto que Alberto Fujimori, do Peru, está sendo processado. Temos que ser conscientes de que cada país não é único no mundo. Há uma estrutura jurídica internacional – afirmou Garzón, ressaltando que, em uma democracia, qualquer material secreto tem que vir a público.
Quando perguntado sobre o seu entendimento acerca da posição defendida pelo Ministro da Justiça, Tarso Genro, Garzón (2008) respondeu:
Pelo que entendi, corrija-me se eu estiver equivocado, o ministro Genro disse que a tortura não pode ser considerada como um delito político. Se foi isso o que ele disse, estou de acordo com ele. Se não foi isso, posso dizer que a tortura não pode ser considerada como delito político caso tenha sido praticada de forma sistemática, num plano preconcebido contra parcelas da população. Isso se configura como crime de lesa-humanidade. Se nenhum crime de lesa-humanidade pode ser considerado crime político, ele não pode ser anistiado, como dizem as leis internacionais e a própria Constituição brasileira. Quanto à polêmica, ela sempre acontecerá a respeito de qualquer tema político delicado, seja no Brasil, na Espanha ou em qualquer lugar do mundo. Temos de diferenciar a polêmica política da questão judicial. A análise de aplicação e da extensão da Lei de Anistia e a da prescrição dos crimes da ditadura são questões jurídicas.
Embora seja um importante defensor da classificação da tortura como crime de lesa-humanidade e da primazia do Direito Internacional sobre o nacional, sobretudo nos casos referentes aos direitos humanos, Baltasar Garzón não é o único. Este entendimento tem se solidificado entre os defensores dos direitos humanos também aqui no Brasil.
Para o procurador do estado de São Paulo, José Damião de Lima Trindade (1998, p. 158):
Na medida em que são tomados como universais, isto é, inerentes a todas as pessoas, os Direitos Humanos exigem duas conseqüências. De um lado, apontam para a gradativa revisão da noção tradicional de soberania absoluta de cada país: sendo os Direitos Humanos tema de legítimo interesse de todas as nações, que não se circunscreve à jurisdição interna de cada Estado, o Direito preocupa-se com as hipóteses em que podem ser admitidas intervenções supranacionais no plano interno de cada país neta matéria.
Complementando o raciocínio de Trindade, assinala Pedro Nikken (apud TRINDADE, 1998, p. 158) que:
Se os direitos humanos limitam o exercício do poder, não se pode invocar a atuação soberana do governo para violá-los ou impedir sua proteção internacional. Os direitos humanos estão acima do Estado e de sua soberania, e não pode ser considerado violação ao princípio da não-intervenção quando se põem em movimento os mecanismos organizados pela comunidade internacional para sua promoção e proteção.
Por fim, para que se fixe de uma vez por todas o argumentos dos crimes cometidos durante o Estado de Exceção como crimes contra a humanidade, a AJD em sua argumentação junto à ADPF 153 (2008) apresenta robusta e convincente argumentação a seguir exposta:
De acordo com as normas de direito internacional incorporadas em nosso ordenamento jurídico, todo crime que implica uma grave violação aos direitos humanos deve ser considerado um crime contra a humanidade.
A definição de crimes contra a humanidade foi expressa pela primeira vez no Estatuto de Nuremberg, que os define como “atos desumanos cometidos contra a população civil, a perseguição por motivos políticos, o homicídio, o extermínio e a deportação, dentre outros.”
[…]
Segundo princípio de direito internacional os crimes de lesa humanidade são imprescritíveis. Este princípio consta da Resolução 2332 (XXII), de 18 de dezembro de 1967, da Assembléia Geral das Nações Unidas, que reconhece a necessidade de afirmar em direito internacional, por meio de uma convenção, o princípio da imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes de lesa humanidade, para assegurar sua aplicação universal. A resolução adverte ainda que a aplicação aos crimes de guerra e aos crimes de lesa humanidade das normas de direito interno relativas à prescrição dos delitos ordinários suscita grave preocupação na opinião publica mundial, pois impede a persecução e a punição das pessoas responsáveis por estes crimes.
Nota-se que se trata de princípio já vigente na ordem jurídica mundial à época dos fatos ora em debate.
Posteriormente entrou em vigor em 1970, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade. Esta convenção define que são imprescritíveis os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.
No âmbito do direito internacional convém destacar ainda a Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Brasil através do Decreto nº 678, de 06.11.92 e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, de 16.12.1966, promulgado pelo Decreto nº 592, de 06.06.92, que estabelecem que “ninguém poderá ser submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”; e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 10.12.1984, também ratificada em 1989 pelo Brasil, promulgada pelo Decreto n.º 40, de 15.02.91.
Uma das obrigações assumidas pelo Brasil na Convenção Americana de Direitos Humanos foi a de alterar a sua legislação interna e de adotar providências materiais para tornar efetivos os direitos neles previstos.
Está claro, portanto, que o Brasil se comprometeu a combater os crimes contra a humanidade, e a tortura em particular, e a declaração da imprescritibilidade destes ilícitos estará em consonância com o ordenamento jurídico internacional.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que é inaplicável a prescrição nos casos de violações muito graves de direitos humanos. Esta Corte também afirmou expressamente que a penalização dos crimes contra a humanidade é obrigatória de acordo com o direito internacional geral, de forma que é perfeitamente possível a persecução penal àqueles que praticaram atos de repressão política, dada a natureza de tais atos e o repúdio social que tornam imprescritível e imperdoável tal prática.
Estes são os principais pontos controversos na discussão acerca da possibilidade de uma nova interpretação para a Lei n° 6.683/79. Como se percebe, há muitos pontos de vista a serem levados em consideração, de forma que, ao Supremo Tribunal Federal caberá dar a última palavra sobre o assunto.