Aspectos relevantes na discussão acerca de uma nova interpretação da Lei da Anistia Política

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4. A LEI DA ANISTIA NO DIREITO COMPARADO

Diferentemente do que alega o Ministro Gilmar Mendes, os países que, após um longo regime ditatorial, enfrentaram em seu processo de redemocratização, a condenação dos crimes cometidos durante o regime, não se encontram, nem se encontraram, em qualquer crise institucional, pelo contrário, tiveram significativa queda em seus índices de violência, proporcional ao crescimento da confiança da sociedade em suas instituições públicas e democráticas como no Chile e na Argentina que puniram os seus torturadores e mandantes sem que tivessem qualquer problema institucional por isso.

Segundo os repórteres Daniel Pinheiro e Luiz Antonio Cintra (2008, p.26):

Argentina e Chile continuam a investigar os responsáveis por crimes de tortura e as desaparições forçadas ocorridas na América Latina, assim como se dá em outros países europeus, envolvendo inclusive militares brasileiros. Em todos os casos, a Justiça agiu a partir da constatação de que os crimes cometidos nos chamados porões dos regimes de exceção são delitos de lesa humanidade, sujeitos, desde 2002, aos acordos internacionais firmados no âmbito da Corte Penal Internacional. O Tribunal entende que nesses processos não cabe a figura da prescrição nem o argumento, no caso brasileiro, de que seriam “crimes conexos” aos delitos políticos, estes passíveis de enquadramento na Lei da Anistia, de 1979.

É importante que se diga que o ocorrido na Argentina e no Chile não representam exceções no comportamento do judiciário daqueles países com relação a outros ao redor do mundo, pelo contrário, a posição favorável à punição a todo tipo de violação dos direitos humanos, sobretudo àqueles considerados crimes de lesa-humanidade cometidos por Estados totalitários, vem se configurando cada vez mais como aquela que, além de orientar todas as Cortes internacionais de direitos humanos, pressionará cada vez mais fortemente às Cortes de cada Estado para que o façam da mesma forma, respaldadas pela influência cada vez maior que o direito internacional tem sobre os julgados no direito pátrio dos Estados.

Resultado de um intenso trabalho de pesquisa, a cientista política do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, Kathryn Sikking, chegou à conclusão de que o alto índice de criminalidade e falta de segurança dos países que passaram por um Estado de Exceção está diretamente ligado à sensação de impunidade que a sociedade traz por perceber que os criminosos que outrora estavam no poder não sofrem nem sofreram qualquer punição por seus crimes cometidos.

Márcia Junges (2008) relata que o relatório da pesquisa feita pela cientista política indica que:

os julgamentos e a punição de torturadores ajudam a construir o Estado de Direito, deixando claro que ninguém está acima da lei. Além disso, a punição deixa claro que haverá “custos” para os agentes individuais do Estado que se envolverem em abusos dos direitos humanos, e isto pode ajudar a prevenir futuras violações de direitos humanos.

[…]

Os julgamentos também são acontecimentos altamente simbólicos que comunicam os valores de uma sociedade democrática em favor dos direitos humanos e do Estado de direito.

Em se tratando especificamente dos países da América do Sul, Kathryn Sikkink (apud JUNGES, 2008, p.08) traz em sua pesquisa um quadro comparativo no qual demonstra como estes países – Argentina, Uruguai, e Chile – encararam os seus processos de redemocratização sustentando que:

[…] em agosto de 2003, o Congresso argentino aprovou, com o apoio do governo Kirchner, uma lei que anulou as leis de anistia (Obediencia Debida y Punto Final). Em junho de 2005, a Suprema Corte Argentina declarou, por sete votos a um, que as leis de anistia são inconstitucionais.

A Corte citou a jurisprudência do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos nos casos de Barrios Altos, que limitou a capacidade da legislação dos estados-membros de promulgar leis de anistia para crimes contra a humanidade.

A Suprema Corte também decidiu que o crime de desaparecimento era crime contra a humanidade para o qual não há prescrição. A decisão da Suprema Corte teve o efeito de permitir que se reabrissem centenas de processos envolvendo os direitos humanos que tinham ficado encerrados durante os 15 anos anteriores.

No Uruguai, a lei de anistia, chamada de Ley de Caducidad del Poder Punitivo del Estado, recebeu inicialmente um apoio adicional quando uma tentativa de reverte-la mediante um plebiscito não conseguiu a maioria dos votos. Recentemente, entretanto, em 2006 e 2007, líderes políticos, juristas e juízes do Uruguai decidiram que a formulação da lei de anistia não cobre os civis responsáveis por violações de direitos humanos durante o regime militar nem o auto-comando das Forças Armadas, mas apenas quem “agiu cumprindo ordens de seus superiores no comando”.

Esta mudança permitiu a realização de julgamentos contra o ex-presidente Juan María Bordaberry e o ex-ministro de Relações Exteriores Juan Carlos Blanco, que estão em prisão preventiva à espera do processo penal. Em dezembro de 2007, Gregorio Alvarez, ex-comandante em chefe do Exército e ex-presidente do Uruguai, também foi indiciado por supostos abusos dos direitos humanos durante o período do governo civil-militar.

O Chile também tem uma lei de anistia, mas a Corte Suprema chilena decidiu, em 1999, que essa lei não incluía os desaparecimentos, que foram considerados crimes permanentes e contínuos até que os corpos fossem localizados, não sendo, portanto, cobertos pela lei de anistia. Essa decisão da Suprema Corte permitiu que centenas de processos envolvendo os direitos humanos fossem reabertos e prosseguissem em tribunais chilenos.

Segundo os juristas Hélio Bicudo e Flávia Piovesan (2006):

Em 2005, decisão da Corte Suprema de Justiça da Argentina considerou que as leis de ponto final (lei nº 23.492/86) e de obediência devida (lei nº 23.521/87) – ambas impediam o julgamento de violações cometidas no regime repressivo de 1976 a 1983 – eram incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que tem permitido o julgamento de militares por crimes praticados durante a repressão.

No Chile, o decreto-lei nº 2.191/78 – que previa anistia aos crimes perpetrados de 73 a 78, na era Pinochet – também foi revogado por decisão do sistema interamericano, por violar o direito à verdade. O ex-ditador chileno vive sob prisão domiciliar.

No Uruguai, recente decisão condenou o ex-ditador Juan María Bordaberry. E, no Peru, por sentença da Corte Interamericana, leis de anistia também foram invalidadas, com fundamento no dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos.

Há que observar que, mesmo se tratando do maior líder continental, onde o Estado Democrático de Direito já está consolidado e a sociedade já goza de ampla liberdade de expressão e profunda oferta de informação, o Brasil, passados 30 anos da aprovação da Lei e mais de vinte da promulgação da Constituição cidadã, ainda não pode afirmar que tenha concluído definitivamente o seu processo de democratização e de acerto de contas com as vítimas produzidas pelo Estado de Exceção anterior.

Percebe-se, portanto, que, conforme as palavras do jornalista Paulo Henrique Amorim (2009):

O Brasil foi o último a acabar com a escravidão.

O Brasil será o ultimo a punir os torturadores dos anos militares (*).

Lula, Fernando Henrique, José Serra, Nelson Jobim e Gilmar Dantas já disseram que são contra a revisão da Lei da Anistia.

A certa altura, o Governo brasileiro será colocado na lista dos “rogue countries” pela OEA – porque não processa os militares torturadores, como fizeram TODOS os países da América do Sul, inclusive os que – como o Brasil – formavam a Operação Condor.

(*) “Anos militares”. O Conversa Afiada prefere usar essa expressão a “ditadura militar”. Entre outros embustes, o Brasil conseguiu desmoralizar a expressão “ditadura militar”. É o que faz, por exemplo, o próprio Estadão, sustentáculo do regime militar e um dos primeiros a ele aderir. Hoje, na capa, o Estadão, com nojo, fala em “ditadura”. Na hora de constituir o Ministério do primeiro governo militar, estava lá um nobre Mesquita, com uma lista de ministros paulistas […].

Por fim, o Supremo Tribunal Federal deverá proceder ao julgamento da ADPF 153, neste segundo semestre de 2009. Tal julgamento, seja qual for o seu resultado, deve orientar as futuras discussões sobre os temas relacionados à ditadura ocorrida no Brasil entre os anos de 1964 e 1985, como as relativas à abertura dos arquivos, aos desaparecidos políticos ou ao cumprimento da sentença imposta ao Governo pela Justiça brasileira no caso da abertura dos arquivos referentes à Guerrilha do Araguaia. Resta à sociedade acompanhar, discutir e aguardar.


5. Conclusão

Anistia significa perdão em seu sentido mais amplo. A anistia política no Brasil deu-se num peculiar momento em que se buscava a transição de um Estado de Exceção, ditatorial e repressor por natureza, para a sua redemocratização passados 15 anos do golpe militar que foi a sua gênese. Diferentemente do ocorrido nos demais países da América Latina, onde a anistia realmente se deu a partir da redemocratização, no Brasil foi feito o processo inverso, ou seja, a suposta redemocratização viria após a anistia, e bem após, já que a primeira eleição direta seguinte à aprovação da Lei n° 6.683/79 só se daria em 1989, passados, portanto, dez anos do ato.

O sentido da anistia ser concedida somente após a redemocratização está justamente no fato de, somente com um novo regime político implantado no país, este poderá ter a legitimidade para lançar mão da punição daqueles que, em defesa desta nova ordem, violaram as leis impostas por um Estado de Exceção, bem como punir os excessos cometidos por aqueles que detinham o poder.

Como se percebe, o Estado de Exceção que no Brasil teve início no ano de 1964 e apenas em 1985 voltou a ter um civil como Presidente da República e em 1989 eleições diretas, não foi, ainda, completamente esclarecido. Muito há o que se estudar, desvendar e dirimir sobre este obscuro momento em nossa recente história republicana, embora muitos, às vezes até mesmo em altos postos nos Poderes da República, defendam o seu esquecimento e, para isso, simplesmente retirem tanto quanto for possível da pauta de discussão tais assuntos. É preciso que se discuta ainda, e cada vez mais, este período até que ele fique incrustado na memória de nosso povo para que aqueles fatos não voltem mais a acontecer em nosso país.

Para que a atual configuração do Estado brasileiro que, através de suas instituições, garante a eficácia da previsão constitucional à ampla participação popular nos processos decisórios dos rumos da nação, não volte a ser alvo de golpes daqueles que se utilizaram da violação dos direitos humanos com o mero escopo da utilização do poder institucional para fins unicamente de promover uma classe ou parcela da sociedade, é preciso esclarecer, sob certos aspectos, como se deu o Estado de Exceção e, quem sabe, punir os responsáveis pelos excessos cometidos.

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Enquanto o Brasil não der solução ao ensejo por justiça das vítimas do regime ditatorial aqui implantado em 1964, não poderá dizer que o assunto foi completamente esclarecido e, consequentemente, não terá virado esta página da história nem, tampouco, se encontrará em pleno exercício do Estado Democrático de Direito como é tão proclamado em nosso país. Isso porque, não há exercício democrático sem o mais amplo, geral e irrestrito direito à justiça e à informação que, no caso do Brasil, se consubstancia no direito das vítimas das mais cruéis violações dos direitos humanos em terem do Estado muito mais que uma mera reparação pecuniária, mas também (e sobretudo) a sua reparação moral, a reparação de sua dignidade retirada pelo Estado e que continua sendo negada à medida que seus violadores permanecem ainda nas ruas, recebendo altas pensões e salários oriundos do erário ou atuando em altos postos da Administração Pública nos mais diversos poderes da República e na manutenção do sigilo dos arquivos dos órgãos de repressão que podem levar ao encontro dos corpos de muitos dos desaparecidos políticos ou, pelo menos, do esclarecimento quanto ao que de fato lhes tenha acontecido como no caso de muitos dos participantes da guerrilha do Araguaia, do estudante Honestino Guimarães – até hoje desaparecido – e de tantos outros os quais o Estado se nega a cumprir a responsabilidade que carrega.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental intentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil tendo como amicus curiae a Associação Juízes para a Democracia traz ao debate nacional e à decisão da Justiça o pleito de centenas de famílias que direta ou indiretamente foram afetadas pela repressão imposta pelo regime militar e não se trata, como argumentam alguns, de revanchismo ou de vingança, mas da conclusão do processo de reparação do Estado, que já admitiu a sua culpa, com a sua população como já o fez, inclusive, todos os demais países da América do Sul.

O Supremo Tribunal Federal, corte máxima em nosso país, não se pode curvar a argumentos tão pobres, frágeis e ultrapassados como o da prescrição, o de que a anistia alcançou a todos ou o de que uma nova interpretação da lei traria instabilidade política ao país, pois, como visto neste trabalho, é pacífica na jurisprudência internacional que as violações dos direitos humanos em épocas de ditadura são considerados crimes comuns e de lesa-humanidade e, portanto, imprescritíveis; a concessão de auto-anistia dos Estados para com os seus membros é considerada inadmissível e imoral nos tribunais internacionais e, por fim, que os regimes democráticos nos Estados que, de alguma forma puniram os agentes públicos que extrapolaram as suas funções violando os direitos humanos, não foram alvos de instabilidade política ou de questionamentos quanto à sua legitimidade, pelo contrário, estudos demonstram que nestes países a sociedade tem maior segurança e confiança na aplicação da justiça e os índices de criminalidade são menores desde então.

O Brasil estará se colocando em delicada situação frente aos diversos órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos caso não tenha a coragem de considerar os crimes cometidos durante o seu regime de exceção como crimes de lesa-humanidade, correndo o risco de ser condenado em cortes internacionais como a Interamericana de Direitos Humanos, além de ter que suportar a vexatória situação de ter estes criminosos julgados por outros países e de por em risco a sua reputação de país defensor dos Direitos Humanos e, consequentemente, a sua candidatura a um dos assentos permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

Não se pode admitir, portanto, que, por receio de um suposto movimento golpista advindo dos quartéis e de uma pequena parcela da sociedade, o Brasil coloque em risco todos estes preceitos. Há que se reconhecer e se confiar que a democracia em nosso país vem, ano após ano, período após período, se fortalecendo de forma que, passados já 21 anos da promulgação da Constituição de 1988, as instituições democráticas já estão consolidadas não havendo mais espaço para golpes de Estado.

Por fim, este trabalho cumpre com o seu objetivo inicialmente proposto trazendo à discussão o importante tema da necessidade de uma nova interpretação à Lei N° 6.683/79 para que o Brasil se enquadre de forma definitiva entre aqueles que fizeram justiça à sua sociedade processando e julgando os mandantes e os executores dos crimes de lesa-humanidade aqui cometidos nos porões das delegacias e quartéis militares.

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Sobre o autor
Glayton Robert Ferreira Fontoura

Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp|LFG

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de conclusão de curso de Direito da Faculdade Metropolitana de Blumenau – FAMEBLU, integrada ao grupo UNIASSELVI.

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