Resumo: A proteção dos direitos humanos no âmbito global tem sido realizada pelo controle de convencionalidade das leis, responsável por verificar a compatibilidade entre os tratados internacionais e o ordenamento doméstico do Estado aderente com a finalidade de assegurar a sua concretização junto ao corpo social, e o principal deles, a vida, tem início pela concepção nos moldes do Pacto de São José da Costa Rica de que é signatário o Brasil. Assim, pode-se afirmar que a vida tem início com a fecundação, quer dizer, no momento em que as células reprodutoras masculina e feminina se fundem, e formam a unidade celular denominada ovo, encontrando-se apartir deste ponto sobre o abrigo da tutela jurídica estatal.
Palavras-chave: globalização, vida humana, teoria concepcionista, convencionalidade.
As transformações sociais e acontecimentos históricos vivenciados em passado recente não foram contidos por fronteiras, culturas ou nações. Assim, em cenário dinâmico de profundas mudanças nos diversos campos da ciência constata-se o surgimento da hegemonia estadunidense no pós – guerra, a presença marcante da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN na segurança do ocidente, e a crise de identidade do Estado – Nação, alterando-se definitivamente o aspecto geopolítico mundial.
A realidade que se apresenta recrudesceu ainda mais com o surgimento das instituições financeiras (FMI, Banco Mundial, etc.), empresas multinacionais e organizações não governamentais - ONGS, que seguida da informatização dos meios de comunicação e revolução digital resultou na formação do mundo globalizado. É neste contexto, de grande avanço da tecnologia, que o estudo sobre a fertilização, fecundação extracorpórea e células-tronco, assume papel decisivo em torno de diversas questões acerca do tema: quando começa a vida?
A resposta desta incógnita definirá o momento em que a pessoa será investida de proteção jurídica, e indicará apartir de qual ponto deverá ser abarcada pela legislação vigente. Embora a norma jurídica tenha o condão de disciplinar a vida em sociedade, vale à pena lembrar que esta é formada por seres humanos, sejam eles idosos, adolescentes, crianças e até por aqueles que estão por nascer. Nesse particular, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...]2
Souza argumenta[1]:
[...] a Constituição Federal confere a todos, de modo igual, direitos e garantias fundamentais, entre eles o direito a vida, segundo o disposto no caput do art. 5º. Contudo, de que vale ter assegurado somente o direito à vida, se não existir direito à vida digna? A Constituição Federal proclama o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção: a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. Dignidade da pessoa humana é o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, entre outros; direitos que são conferidos a todos, indistintamente.[2]
Entrementes, há divergências acerca do momento em que se inicia a vida humana, e por consequência de quando deve estar protegida pelo Direito. Logo, existem aqueles que defendem seu início com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, como a professora Claudia Batista, doutora em neurociência da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outros afirmam que se inicia quando o ovo (óvulo fecundado) adere à parede do útero (nidação), como o neurofisiologista Luiz Eugênio Mello, da Universidade Federal de São Paulo[3].
Em reportagem da Revista Veja do dia 25 de abril de 2007, as correntes sobre o início da vida divergem em ser o momento da fecundação, quando o espermatozoide penetra no óvulo formando o embrião, que carrega carga genética do futuro ser humano; ou da nidação, quando o óvulo fecundado se fixa à parede do útero já preparado para alimentá-lo, que ocorre entre o quinto e o sexto dia após a fecundação. Segundo essa matéria jornalística, para a maioria dos neurocientistas a gênese verifica-se no momento em que o embrião acelera sua reprodução e começam os primeiros vestígios de formação dos órgãos, inclusive do sistema nervoso com duas semanas após a fecundação.
Sob o prisma religioso os católicos e os protestantes concordam com a teoria de que é com a fecundação que se inicia a vida. No entanto, para o islamismo a vida começa entre a oitava e décima sexta semana, sendo um período em que o embrião vira feto com o aparecimento de membros e órgãos.
Diante desta celeuma, torna-se imprescindível a visualização do tema sob a ótica da Medicina Legal. Croce e Croce[4] Junior afirmam:
Houve quem pensasse que se deveria definir a gestação como iniciada quatro a seis dias após a fecundação, com a ocorrência da nidação do ovo na face posterior da parte central do útero, no endométrico, quando então, e só então, passa a alimentar-se a expensas do organismo materno. Dessa forma, pela fecundação espermatozoide-ovular, ocorre a formação intratubária de ser vivente que, durante quatro a seis dias, percorre, impulsionado pelo peseudoperistaltismo e pela contracorrente central de líquido causada por movimentos ciliares, no interior da trompa de Falópio, sem nutrir-se, em desenvolvimento embriogenético em que a mórula[5] vive no oviduto, à maneira do que sucede com o ovo de vertebrado inferior. Então, embora exista fecundação, não haveria gestação propriamente dita durante quatro a seis dias, contados da data da geração, durante os quais o ovo, em divisão celular, adquire a maturação e a capacidade de implantação, percorrendo a luz tubária até chegar à cavidade uterina onde, auxiliado por correntes remoinhantes consequentes aos movimentos miometriais, nida o endométrico. Todavia, afirmamos, há gestação, pois o epitélio tubário desencadeia, estimulado pela progesterona, logo após a ovulação, uma fase secretora que nutre o óvulo por embebição (nutrição tubotrofa) e por isso o ovo não se nutre a expensas próprias durante sua migração pela trompa. Vale, portanto, a concepção tradicional, pois, a assim não ser, não se poderia imputar ao DIU ação abortiva.[6]
Quanto à teoria concepcionista, de forma extrauterina, Moore e Persaud, com propriedade afirmam:
O desenvolvimento humano se inicia na fertilização, o processo durante o qual um gameta masculino ou espermatozoide [...] se une a um gameta feminino ou ovócito [...] para formar uma célula única chamada zigoto. Esta célula altamente especializada e totipotente marca o início de cada um de nós, como indivíduo único.[7]
Demais disso, não há um consenso entre a comunidade científica acerca do momento em que a vida humana tem início. Em razão de tantas possibilidades, o universo jurídico discute três teorias, cada qual se baseando em uma ou outra afirmação da gênese, quer embrionária ou não, de quando se iniciará a proteção jurídica ao nascituro, ou, a partir de qual momento será dotado o ser de direitos (e deveres), emanados da norma.
Do ponto de vista de Almeida a teoria natalista é a adotada pelo ordenamento brasileiro[8], conforme se depreende do art. 2º do Código Civil, ao prescrever que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Parise reconhece que pela teoria natalista a personalidade jurídica só começa apartir do nascimento com vida e que o nascituro só possui expectativas de direitos[9].
Com efeito, Chaves, acerca da teoria natalista entende que:
[...] antes do nascimento, o feto não é considerado ser humano, não tendo, portanto, personalidade jurídica, existindo apenas uma expectativa de personalidade, razão pela qual se pune o aborto provocado, resguardando a lei os direitos do nascituro, para quando do nascimento com vida. Argumentam os seguidores desta corrente que a opinião dos adeptos da teoria concepcionista é insustentável, porque o ser humano, ainda não separado do ventre materno, não tem existência própria, fazendo parte das vísceras maternas e, se o nascituro fosse considerado pessoa, além de sujeito de direitos seria também sujeito passivo de obrigações[10].
Parise, em sentido contrário, assevera:
A teoria natalista vem sendo muito questionada na atualidade, sob o argumento de que se encontra ultrapassada perante os novos rumos que o Direito vem tomando, na busca de acompanhar a evolução humana, ou seja, é uma teoria que não se adéqua à realidade[11].
Em outra abordagem, a teoria da personalidade condicional, defendida por Monteiro, revela que sendo o feto uma expectativa de vida humana, este consiste numa pessoa em formação, não devendo ser ignorado pela lei. Entretanto, para que ele adquira seus direitos, deve nascer com vida.[12] Sem embargo, Parise critica nessa afirmação o seu conteúdo teórico:
[...] a teoria da personalidade condicional defende que a personalidade jurídica começa desde a concepção, mas os direitos do nascituro estão sujeitos ao nascimento com vida. O problema com esse posicionamento é que ele condiciona a existência da personalidade jurídica ao nascimento; este, na verdade consolidará, sim, a capacidade jurídica[13].
Verifica-se que a teoria concepcionista considera como momento inicial da vida a fecundação, ou melhor, o instante em que as células reprodutoras masculina e feminina se fundem formando a unidade celular denominada ovo.
A esse respeito recorremos a que pronuncia Chaves:
a personalidade civil do homem começaria a partir da concepção sob o argumento de que, se o nascituro tem direitos, deve ser considerado pessoa, para ser sujeito de direitos e detentor de personalidade jurídica. Se assim não fosse, não haveria como fundamentar que o nascituro tenha direitos, sem ser considerado pessoa e mais, se há em nossa legislação a punição pelo aborto como crime contra a pessoa, não resta dúvida de que o nascituro, no Direito Brasileiro, é considerado como tal e tem personalidade civil.[14]
De acordo com Parise, esta teoria foi criada no intuito de determinar a proteção jurídica do nascituro em situação extracorpórea, pois o ser humano adquire personalidade jurídica desde o momento de sua concepção, ou fecundação, quando passa a ser considerado pessoa[15].
Diversos juristas adotam a teoria concepcionista, dentre eles destacam-se França, Leite e Montoro. Do ponto de vista de França o embrião está para a criança como a criança está para o adulto. Pertencem aos vários estágios do desenvolvimento de um mesmo e único ser: o Homem, a Pessoa.[16] Leite acredita que quando o Código Civil distingue pessoa e personalidade, estabelece precisamente que a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida, porém protegendo os direitos do nascituro desde a concepção[17].
Afirma Montoro:
[...] a) o nascituro não tem qualquer capacidade-de-exercício; b) tem certa capacidade-de-direito; c) é juridicamente pessoa desde a concepção. [...] É inegável, entretanto, que o nascituro tem capacidade de direito, que se estende a múltiplos setores da vida jurídica. O ser concebido tem capacidade de suceder, de receber doações. [...] O direito penal lhe defende a vida e garante seu direito de nascer. A afirmação de que estamos em presença de simples “expectativas de direitos” não resiste a um exame sério. O direito à vida ou o direito de representação, por exemplo, existem na sua plenitude desde o início da gestação. E bastaria ao nascituro ser titular de um único direito para que não se lhe pudesse ser negada a qualidade de pessoa[18].
Parise acrescenta:
Portanto, o pré-embrião, apesar de herdar genes do pai e da mãe, possui uma identidade genética própria e distinta, uma personalidade. E a capacidade limitada de seus direitos não lhe exclui essa personalidade, mesmo que, quanto ao exercício de direitos, esteja o embrião enquadrado na categoria de absolutamente incapazes. Além disso, somente certos efeitos e direitos dependem do nascimento com vida, ou seja, os direitos patrimoniais materiais – doação e herança – onde o nascimento com vida torna-se, então, elemento do negócio jurídico que se relaciona com sua total eficácia. Além disso, quanto se fala de técnicas de fertilização in vitro e crio conservação de pré-embriões, surge a dúvida sobre o momento da aquisição da sua personalidade jurídica, uma vez que o início de sua vida não ocorreu no ventre materno. Assim, alguns juristas entendem que o nascituro somente será pessoa, caso o ovo fecundado seja implantado no útero materno[19].
Acerca desta teoria há que se destacar também, os ensinamentos de Diniz ao afirmar que apesar de o início da vida ocorrer com a fecundação e a vida viável com a gravidez (que ocorre através da nidação[20]), o início legal da personalidade jurídica é o momento da fusão do óvulo e do espermatozoide, mesmo fora do corpo da mulher[21].
Frente a esse entendimento, nota-se que atualmente a teoria que melhor se adequa à realidade corresponde à teoria concepcionista, pois desde a concepção o nascituro é detentor de proteção jurídica sendo lhe atribuído o direito de nascer com vida. Portanto, foi muito importante a participação do Brasil como signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), a qual assegura a toda pessoa o direito de que se respeite a vida, desde o momento da concepção, nos termos de seu art. 4º., item 1.
Por tudo isto, o art. 2º do Código Civil (Lei 10.406/2002) se interpretado sob as diretrizes fornecidas pela teoria concepcionista, além de constitucional será convencional por revelar compatibilidade com o disposto nos arts. 5º inc. I, da Constituição Federal e 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Conquanto o nascituro não possa, ainda, ser sujeito de obrigações, lhe é garantida a personalidade jurídica para a aquisição de direitos que propiciem seu nascimento com vida; direito fundamental tutelado constitucionalmente. Nesse ponto, convém salientar a relevância do controle de constitucionalidade, e convencionalidade das leis. Naquele examina – se a compatibilidade do texto legal com a Constituição, e neste, da norma com os tratados e convenções internacionais. Existindo contradição em qualquer uma dessas hipóteses a lei ordinária não deverá ser aplicada por nulidade, incidindo uma espécie de efeito paralisante como se verificou, a título de exemplo, em relação ao disposto no art. 502 do Código Civil que prevê a prisão do depositário infiel.
A teoria da Dupla Compatibilidade Vertical Material [...] Todas as normas infraconstitucionais que vierem a ser produzidas nos país devem, para análise de sua compatibilidade com o sistema do atual Estado Constitucional e Humanista de Direito, passar por dois níveis de aprovação: 1) A Constituição e os tratados de direitos humanos (material ou formalmente constitucionais) ratificados pelo Estado; e 2) os tratados internacionais comuns também ratificados e em vigor no país. A compatibilidade das leis com a Constituição é feita por meio do clássico e bem conhecido controle de constitucionalidade, e com os tratados internacionais em vigor no país (sejam ou não de direitos humanos) por meio dos controles de convencionalidade (em relação aos tratados de direitos humanos) e de supralegalidade (no que toca aos tratados comuns), tema até então inédito na doutrina brasileira[22].
De sorte, o instante em que se inicia a vida foi questão tormentosa levada ao Supremo Tribunal Federal por meio da ADI 3510, em que se discutia a constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Debatia-se a possibilidade ou não da utilização de embriões inviáveis congelados no intuito de obter células-tronco para fins terapêuticos, e de pesquisa científica. Como a Constituição Federal garante o direito à vida, era preciso determinar seu início para dizer se o art. 5º daquela lei era constitucional. Os ministros decidiram, por maioria, pela sua constitucionalidade sob o argumento de que a Constituição Federal é garantidora da vida, saúde, planejamento familiar e da pesquisa científica com destaque para a sociedade fraternal preconizada em seu bojo. Em reforço a fundamentação citou-se diversos dispositivos referentes ao direito de saúde (CF, arts. 196 a 200), bem como da obrigatoriedade do Estado assegurá-lo em consonância com a utilização de células-tronco embrionárias para o tratamento de doenças. Entenderam que as garantias da dignidade da pessoa humana e inviolabilidade da vida não poderiam obstar tal norma, pois o pré-embrião não acolhido em seu ninho natural, isto é, no útero, não poderia ser classificado como pessoa. Em contrapartida, a ampliação do bloco de constitucionalidade põe em dúvida a convencionalidade da Lei de Biossegurança; CF, art. 5º, § 3º.
Reza o art. 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.
Ao que parece o Pacto de São José da Costa Rica certamente adotou a teoria concepcionista, sendo necessário examinar a compatibilidade da norma especial com seu texto para verificar a possibilidade de sua aplicação.
Percebe-se dessa forma que o controle de convencionalidade das leis revela-se imprescindível a salvaguarda da vida, como de qualquer outro direito fundamental, próprio do Estado Constitucional e Humanista de Direito sujeito ao sistema global de proteção dos direitos humanos - Sistema das Nações Unidas, e Sistema Interamericano de Direitos Humanos, os quais, felizmente, o Brasil participou da quase totalidade dos tratados e convenções internacionais integrando assim o bloco de constitucionalidade nacional.
Dessarte nota-se que a vida, cujo início para o Direito determina uma série de desdobramentos relevantes junto ao corpo social não deve prescindir a toda evidência, de análise aprofundada no ordenamento jurídico, mormente quanto à convencionalidade da Lei de Biossegurança em que os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, além da ponderação que deve existir entre direitos fundamentais em franca colidência certamente poderão servir de norte interpretativo a conduzir a um posicionamento justo, equânime, e adequado à realidade do mundo contemporâneo que se busca conformar, onde os avanços da ciência não devem ser ignorados, a exemplo do que se consagrou na decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade. Explicitando melhor a ideia, quer-se dizer com isso que uma análise apressada dos diplomas legais poderia conduzir o intérprete a ledo engano de se entender que os embriões congelados decorrentes da fusão entre espermatozoides e óvulo (concepção) não poderiam se submeter a pesquisas científicas, justamente por se considerar que já exista vida humana.
Diferentemente do que sucede com a concepção intrauterina, enquanto os embriões congelados não forem introduzidos no aparelho reprodutor feminino não se pode admitir a existência de vida humana, mas tão somente de mera expectativa, pois ainda que inseminados na mulher, não conduzem a certeza insofismável de gestação.
Posto isso, conclui-se que a Lei de Biossegurança observa a dupla compatibilidade vertical material, pois além de encontrar-se em harmonia com a Constituição revela também, indene de dúvidas, a convencionalidade necessária a lhe conferir validade no ordenamento jurídico doméstico.