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A pena de perdimento de veículos e a aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade pelos tribunais pátrios

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Os tribunais pátrios têm afastado a aplicação da pena de perdimento dos veículos, sob a alegação de que a reprimenda não pode superar o valor do proveito econômico obtido. No entanto, tais decisões judiciais não se coadunam com a moderna hermenêutica constitucional.

1.  Introducão

Nas regiões que fazem fronteira com outro país são frequentes os casos de descaminho e as discussões judiciais em torno da aplicação de penalidades administrativas pela autoridade fiscal. A sensível diferença entre os preços dos produtos importados e dos produtos nacionais, a facilidade para atravessar a fronteira através de barcos, aliado ao pequeno efetivo de auditores fiscais escalados para fiscalizar a entrada de produtos estrangeiros contribui para a utilização crescente da importação ilegal de bens. Tal atividade constitui, além de malferimento ao princípio da isonomia, eis que os demais contribuintes do país se submetem a alta carga de impostos decorrentes do regime aduaneiro, um atentado à captação de recursos públicos, deixando a descoberto uma série de medidas estatais necessárias ao implemento da políticas públicas. Além disso, a prática do descaminho atenta contra os direitos do consumidor e à saúde pública, na medida em que muitas das mercadorias importadas têm proibida sua introdução no território nacional.

O Regulamento Aduaneiro (D. 6.759/2009) estabelece a pena de perdimento do veículo caso fique caracterizado dano ao erário, tanto das mercadorias transportadas, quanto do veículo transportador. Frequentemente, entretanto, os sujeitos passivos das obrigações tributárias ajuízam ações ordinárias ou mandados de segurança com a finalidade de ver afastada a pena de perdimento, alegando que o valor do veículo apreendido é muito superior ao valor da mercadoria apreendida.

Os tribunais pátrios, com base na aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade têm afastado a aplicação do Decreto-Lei nº1.455/76, bem como a responsabilidade objetiva, nos termos do art. 136 do Código Tributário Nacional c/c arts. 602 e 603 do Regulamento Aduaneiro.

Ocorre que o legislador ordinário, ao estabelecer as sanções aplicáveis nos casos de descaminhos, sopesou a gravidade da conduta do infrator, o dano ao erário praticado pela conduta lesiva, e o caráter pedagógico da medida, a necessidade de coibir a reincidência, a gravidade na introdução de mercadorias danosas ao consumidor e perigosas à saúde humana. O entendimento jurisprudencial em torno da questão, pois, merece ser analisado sob o prisma do constitucionalismo moderno, especialmente os postulados da hermenêutica jurídica pós-positivista, alinhando-se ao paradigma de Estado democrático de direito.

O princípio constitucional utilizado como fundamento para as mencionadas decisões não se coadunam com a leitura mais escorreita do ordenamento jurídico como um todo, especialmente se consideradas as teorias de Dworkin e Habermas sobre a aplicação do direito.

A importância do tema, portanto, está fulcrada tanto no aspecto econômico que representa as milhares de ações questionando a fiscalização tributária, quanto pelas teorias constitucionais acerca da aplicação do direito e o papel do juiz dentro desse contexto.


2. A pena de perdimento de veículo em caso de descaminho e o entendimentos dos tribunais.

Especialmente em regiões de fronteira, em que a facilidade para introdução de mercadoria estrangeirasé flagrante, são comuns a imposição de pena de perdimento de veiculo em razão de introdução irregular de mercadorias importadas.Os motoristas abordados ao transportar mercadorias estrangeiras irregularmente introduzidas no País, sem a documentação comprobatória da importação regular, cuja natureza, quantidade e valor total caracterizem destinação comercial, estão sujeitos à pena de perdimento do referido veículo.

A pena de perda de bens tem fundamento de validade na própria Constituição da República, em seu artigo 5º, XLVI,"b”.

Necessário registrar que as disposições legaisque  autorizam a aplicação da pena de perdimento, tem a finalidade de desencorajar o contribuinte a importar mercadorias cuja entrada é proibida no território nacional (por razoes de saúde publica ou ambiental, em consonância com o direito do consumidor) ou, mesmo sendo legal a importação, a tentar fazê-lo sem o pagamento dos tributos devidos (o que constitui atentado à livre concorrência), entre outras práticas condenáveis.

O objetivo da lei é impedir que o contribuintealcance  seu  intento ilegal. Dessa forma, não basta apená-lo com sanção pecuniária. É desejável que suas mercadorias sejam apreendidas, bem como o veículo que foi utilizado para o transporte irregular, impedindo-o de obter qualquer vantagem pretendida.

2.1. Arcabouço normativo aplicável.

Nos termos do Regulamento Aduaneiro (D. 6.759/2009), basta que se caracterize dano ao erário para que a pena de perdimento, tanto das mercadorias transportadas, quanto do veículo transportador, tenha cabimento, nos seguintes termos:

Art. 674. Respondem pela infração (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 95):

I - conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática ou dela se beneficie;

II - conjunta ou isoladamente, o proprietário e o consignatário do veículo, quanto à que decorra do exercício de atividade própria do veículo, ou de ação ou omissão de seus tripulantes;

Art. 688.Aplica-se a pena de perdimento do veículo nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 104; Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 24; e Lei nº 10.833, de 2003, art. 75, § 4º):

(...)

V - quando o veículo conduzir mercadoria sujeita a perdimento, se pertencente ao responsável por infração punível com essa penalidade;

A lei 10.833/2003, assim preceitua:

Art. 75 . Aplica-se a multa de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) ao transportador, de passageiros ou de carga, em viagem doméstica ou internacional que transportar mercadoria sujeita a pena de perdimento:

Omissis................................

§ 1º Na hipótese de transporte rodoviário, o veículo será retido, na forma estabelecida pela Secretaria da Receita Federal, até o recolhimento da multa ou o deferimento do recurso a que se refere o § 3º.

Omissis..............

 § 4º Decorrido o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias da aplicação da multa, ou da ciência do indeferimento do recurso, e não recolhida a multa prevista, o veículo será considerado abandonado, caracterizando dano ao Erário e ensejando a aplicação da pena de perdimento, observado o rito estabelecido no Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976.

Pela dicção do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76, o dano ao erário é presumido quando ocorre uma das hipóteses previstas em seus incisos. O §1º do art. 23, prevê a pena de perdimento de mercadoria caso se verifique a ocorrência de uma das situações descritas no artigo em comento, senão vejamos:

Art 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:

(...)

II - importadas e que forem consideradas abandonadas pelo decurso do prazo de permanência em recintos alfandegados nas seguintes condições:

a) 90 (noventa) dias após a descarga, sem que tenha sido iniciado o seu despacho; (...)

§ 1o O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias.

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Nessas hipóteses, a aplicação da pena de perdimento também se apóia na responsabilidade objetiva, nos termos do art. 136 do Código Tributário Nacional c/c arts. 602 e 603 do Regulamento Aduaneiro.

Código Tributário Nacional

Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.

Regulamento Aduaneiro

Art. 673. Constitui infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte de pessoa física ou jurídica, de norma estabelecida ou disciplinada neste Decreto ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-lo (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 94, caput). 

Parágrafo único. Salvo disposição expressa em contrário, a responsabilidade por infração independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, da natureza e da extensão dos efeitos do ato (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 94, § 2º).

Art. 674. Respondem pela infração (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 95):

I - conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática ou dela se beneficie;

II - conjunta ou isoladamente, o proprietário e o consignatário do veículo, quanto à que decorra do exercício de atividade própria do veículo, ou de ação ou omissão de seus tripulantes;

Logo, em se tratando de internação irregular de mercadoria, deve ser aplicada a pena de perdimento, com base nos seguintes dispositivos legais:

Lei 4.502/64

Art, 87. Incorre na pena de perda da mercadoria o proprietário de produtos de procedência estrangeira, encontrados fora da zona fiscal aduaneira, em qualquer situação ou lugar, nos seguintes casos:

I – quando o produto, tributado ou não, tiver sido introduzido clandestinamente no país ou importado irregular ou fraudulentamente;

Decreto-Lei 37/66

Art. 105. Aplica-se a pena de perda da mercadoria:

...

X – Estrangeira, exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no país, se não for feita prova de sua importação regular;

Regulamento Aduaneiro – Decreto 4.543/2002

Art. 689. Aplica-se a pena de perdimento da mercadoria nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 105; e Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 23, caput e § 1º, este com a redação dada pela Lei nº 10.637, de 2002, art. 59):

(...)

X - estrangeira, exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no País, se não for feita prova de sua importação regular;

A não observância do correto trâmite de importação, aliado à falta de documentos probantes da internação regular das mercadorias no País, impõe a aplicação da pena de perdimento destas, por expressa determinação legal, diante da configuração do ilícito.

A pena de perdimento da mercadoria objetiva, além de reprimir ilícitos fiscais, a proteção de bens jurídicos caros no Direito Brasileiro.

2.2 Do entendimento dos Tribunais.

As normas que regulam a aplicação da pena de perdimento são cristalinas, devendo a interpretação ser feita de forma literal, haja vista que o transporte irregular de mercadorias importadas sem a devida documentação legal sujeita o transportador à pena de multa e à retenção do veículo, nos termos do disposto no art. 75 e § 1º, da Lei nº 10.833/2003.

No entanto, em vários casos, a jurisprudência, a pretexto de aplicar o principio da proporcionalidade, afasta a aplicação desses dispositivos legais, ressaltando que o valor do veiculo apreendido é bem superior ao valor das mercadorias irregularmente importadas, sendo incabível a reprimenda imposta em lei.

Nesse sentido, colaciona-se:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. APREENSÃO DE VEÍCULO.TRANSPORTE DE MERCADORIAS SUJEITAS À PENA DE PERDIMENTO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

1. Para o cabimento da pena de perdimento, em respeito ao princípio da proporcionalidade e não havendo reiteração da conduta ilícita, deve haver correspondência entre o valor do veículo objeto da sanção e o das mercadorias nele transportadas. Precedentes.

2. "Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida." (Súmula do STJ, Enunciado nº 83).

3. Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp 1125398/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/08/2010, DJe 15/09/2010)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. APREENSÃO DE MERCADORIAS. PERDIMENTO DE VEÍCULO. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 458 E 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. OFENSA AO ARTIGO 617, V, DO REGULAMENTO ADUANEIRO. INOVAÇÃO RECURSAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. SÚMULA N. 83/STJ. INOBSERVÂNCIA DO ART. 97 DA CF NÃO EVIDENCIADA.

1. Caso em que a agravante assevera que a decisão agravada, ao deixar de aplicaros arts. 104, V, do Decreto-Lei n. 37/66 e 617, V, do Regulamento Aduaneiro, teria inobservado o art. 97 da CF (reserva de plenário).

2. A suposta violação do art. 617, V, do Regulamento Aduaneiro, não foi deduzida nas razões do recurso especial, objeto deste agravo de instrumento, configurando, portanto, inovação recursal em sede de agravo regimental.

3. Na espécie, a decisão atacada não declarou inconstitucional qualquer dispositivo legal, mas, tão somente, manteve a decisão que inadmitiu a subida do recurso especial em virtude do acórdão regional ter consignado que "a pena de perdimento de bens, no tocante aos veículos apreendidos, não respeitou ao princípio da proporcionalidade", estando esse entendimento de acordo com a jurisprudência do STJ sobre a matéria, o que atrai, por conseguinte, o óbice estampado na Súmula n. 83/STJ.

4. A jurisprudência desta Corte é uníssona no sentido de que, embora seja possível a aplicação da pena de perdimento de veículo no caso de transporte de bens irregularmente importados, nos termos do Decreto-lei n. 37/66, deve-se observar, no caso concreto, a proporcionalidade entre o valor das mercadorias importadas e o do veículo apreendido.

5. Agravo regimental não provido.

(AgRg no Ag 1233752/GO, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe 28/05/2010)

Consoante será analisado no tópico precedente, o principio da proporcionalidade, com a devida vênia, não tem aplicação nesses casos, eis que esta afastando a aplicabilidade de disposição normativa plenamente válida.

2.3 O papel dos princípios constitucionais.Positivismo e Pós-positivismo.

Nos casos analisados, embora exista um arcabouço normativo propugnando a solução jurídica para o caso concreto, os julgadores utilizam-se do mencionado princípio da proporcionalidade para afastar as consequências previstas nos dispositivos legais plenamente válidos.

Tal conduta acaba por aproximá-los do que os positivistas propugnavam, ao utilizar-se de textura aberta dos princípios para solucionar os hard cases.

O positivismo, como sabido, ao reconhecer a impossibilidade do ordenamento positivo alcançar todas as situações da vida, confere ao juiz a tarefa de julgar com base em razões de discricionariedade e em interpretação autêntica das normas escritas. Essa corrente de pensamento entende que o preenchimento das lacunas do direito será possível através do decisionismo conferido ao julgador. Atribui-se, pois, ao julgador,a tarefa de legislador, porquanto autorizado a decidir sem base científica e com fundamento em razões de ordem política.

LenioStreck critica essa abertura judicial viabilizada pelo positivismo nos seguintes termos:

Já as posturas subjetivistas, especialmente, redundaram em umfortalecimento do protagonismo judicial, fragilizando sobremodo o papel da doutrina.Em terraebrasilis essa problemática é facilmente notada no impressionantecrescimento de uma cultura jurídica cuja função é reproduzir as decisõestribunalícias. É o império dos enunciados assertóricos que se sobrepõe à reflexãodoutrinária. Assim, os reflexos de uma aposta no protagonismo judicial nãodemorariam a ser sentidos: a doutrina se contenta com “migalhas significativas” ou“restos dos sentidos previamente produzidos pelos tribunais”. Com isso, a velhajurisprudência dos conceitos acaba chegando ao direito contemporâneo a partir dolugar que era o seu destinatário: as decisões judiciais, ou seja, são elas, agora, queproduzem a conceitualização.

[...]

para superar o positivismoé preciso superar também aquilo que o sustenta: o primado epistemológico dosujeito (da subjetividade assujeitadora) e o solipsismo teórico da filosofia daconsciência.

[...]

É tarefa contínua, pois, que se continue a mostrar como persistemequívocos nas construções epistêmicas atuais e como tais equívocos se dão emvirtude do uso aleatório das posições dos vários autores que compõem o chamadopós-positivismo. Com efeito, isso fica evidente no conceito de princípio. O caráternormativo dos princípios – que é reivindicado no horizonte das teorias póspositivistas– não pode ser encarado como um álibi para a discricionariedade, pois,desse modo, estaríamos voltando para o grande problema não resolvido pelopositivismo.

E conclui:

Observemos: é por isso que o Estado Democrático de Direito nãoadmite discricionariedade (nem) para o legislador, porque ele está vinculado àConstituição (lembremos sempre a ruptura paradigmática que representou oconstitucionalismo compromissório e social). [...] A partir da feitura da lei, a decisão judicial passa a ser racionalizada na lei, que querdizer “sob o comando da Constituição” e não “sob o comando das injunçõespessoais-morais-políticas do juiz ou dos tribunais”.

Consequentemente, nos casos assim denominados de “difíceis”, nãoé mais possível “delegar” para o juiz a sua resolução. Isto porque não podemos maisaceitar que, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda se postule que a luzpara determinação do direito in concreto provenha do protagonista da sentença. Isso significa que, para além da cisão estrutural entre casos simples e casos difíceis,não pode haver decisão judicial que não seja fundamentada e justificada em umtodo coerente de princípios que repercutam a história institucional do direito. Dessemodo, tem-se por superada a discricionariedade a partir do dever fundamental deresposta correta que recai sobre o juiz no contexto do paradigma do EstadoDemocrático de Direito.

Em contraposição ao positivismo jurídico, e ao amplo leque de voluntarismo aberto ao julgador, surgiu o movimento constitucionalista da segunda metade do século XX, representado por Ronald Dworkin, o qual dirige severas críticas ao decisionismo dos positivistas, argumentando que é possível preencher lacunas com base em direito pré-existente, quais sejam os princípios.

Os princípios, então, embora gerais e abstratos, permitiriam ao intérprete encontrar “uma única resposta correta” por meio da adoção de postura que densificasse tais postulados a partir do seu “sentido vivencial”, de expressão valorativa de uma dada comunidade e como conteúdo moral dos direitos fundamentais.

Dworkin ataca o problema do decisionismo propugnando a responsabilidade política de cada juiz/intérprete/aplicador, obrigando-o a obedecer à integridade do direito, evitando que as decisões se baseiem em raciocínios ad hoc (teleológicos, morais ou de política). Essa blindagem contra discricionarismos é uma defesa candente da democracia, uma vez que não tem sentido, no contexto de um Estado Democrático, que os juízes tenham discricionariedade para decidir os casos difíceis.

Como se vê, existe por parte da doutrina pós-positivista uma severa crítica a atitude solipsista dos juízes que, ao pretenderem resolver casos difíceis, para os quais o sistema aparentemente não prevê nenhuma solução, utilizarem-se de argumentos políticos e convicções pessoais, pois isso implicaria afastar os postulados do Estado democrático de Direito, elevando sobremaneira o poder atribuído ao Judiciário, em flagrante prejuízo as demais funções de Estado.

O que se vê cotidianamente, é que os juízes tem-se utilizado da fluidez conceitual dos princípios para aplicá-los indiscriminadamente, muitas vezes para mitigar os efeitos de outros comandos legais plenamente válidos, simplesmente para reforçar uma tese ou convicção pessoal. Ora, a existência de normas legais pressupõe atividade legislativa plenamente válida, e por isso, existe legitimidade na vigência desses comandos legais. Permitir que o juiz ao seu alvedrio substitua as normas legais plenamente válidas por outras por ele criadas a partir de sua visão política abala fortemente o sistema Democrático Direito em que vivemos.

Especificamente no caso analisado, as decisões judiciais pretendem afastar a aplicação do comando legal plenamente aplicável com base num suposto princípio da proporcionalidade, fazendo ilações e comparações entre o valor de mercado do veículo e o valor dos produtos internalizados ilicitamente em território nacional. O legislador não utilizou de nenhuma cláusula aberta ou indeterminação conceitual que abrisse espaço ao sopesamento ou equacionamento de valores. Ademais, não há qualquer antinomia entre regras ou princípios que autorize o recurso à ponderação. Nesse caso, é inegável que as decisões mencionadas caem no casuísmo, constituindo afronta aos postulados básicos do Estado democrático, hiperdimensionando a função do judiciário e a vulnerando a separação dos poderes.

A cominação da penalidade administrativa de perdimento de bens representa escolhas políticas do legislador, com funções pedagógicas, arrecadatórias, não podendo o juiz simplesmente substituir os motivos ensejadores da cominação legal à sua própria visão de mundo.

Os bens jurídicos protegidos pela norma, o patrimônio público (sonegação fiscal) e o mercado nacional (entrada de bens sem a equalização do preço promovida pelo efeito extrafiscal dos tributos externos), seriam colocados em segundo plano se o julgador pudesse utilizar-se de discricionarismo quando não há abertura normativa para tanto.

A adoção de presunções legais pela legislação aduaneira tem por base o Princípio da Praticabilidade do Direito, tratado com maestria pelo jurista Luiz Amaral[1]:

"(...) não é de causar espanto essa tendência do Direito pela aparência, pela ficção (p. ex. as presunções), de vez que colimando resguardar a conveniente convivência social, não poderia estar preso a prius (verdade absoluta, coisa em si) que não correspondessem à capacidade média de cognição dos homens. É, pois, condição de praticabilidade do Direito esse artificialismo jurídico.Aliás, a certeza imposta pelo Direito deriva do determinismo artificial deste próprio Direito.

É certo que a vida e o espírito postulam um direito justo, um direito em harmonia com o ideal de justiça, todavia a imperfeição do homem e do resto de suas obras, só lhe permite alcançar a justiça do possível ou a possível justiça.  Daí o coeficiente inevitável de injustiça, inerente a todo Direito; este é justo no ideal que incorpora, mas, às vezes, injusto na maneira imperfeita por que o realiza.  Seria obra vã e supérflua criar regra jurídica, visando a confirmação dos fenômenos naturais e espontâneos ou, ainda, buscar a verdade absoluta (que, em que ser desejável, é inalcançável). A lei natural (científica) traduz, por si, um determinismo real, enquanto que a lei jurídica impõe um determinismo necessariamente artificial.

No Direito a aparência (percepção da forma) tem vasta aplicação.  A ficção, tão comum no Direito, não é outra coisa senão a aparência do real.  Amaral Santos leciona a respeito: "a ficção é a aparência havida corno verdadeira, mesmo que não seja verdade."

É o Direito como sistema que requer tal artifício, é, por assim dizer, a adequação do sistema jurídico (obra humana) à incapacidade de cognição total do homem. A verdade absoluta é relevante, porém, quando inatingível, se satisfaz o Direito com o mero ficcionismo (as presunções p. ex.), tudo com vistas a não vulnerar o sistema e cumprir o desiderato da praticabilidade (possibilidade de fato) do Direito." (Grifou-se)

É interessante observar que quando a prática do descaminho objetiva a atividade comercial, não se pode considerar como prejuízo ao erário apenas o valor que deixou de ser recolhido à fiscalização tributária aduaneira. Tem de se ter em conta também que sobre aquela atividade comercial, a venda dos produtos irregularmente introduzidos, não estará incidindo os demais tributos que normalmente seriam recolhidos, tais como ICMS, COFINS, PIS, IRPJ, etc.

E mais, ao aplicar o entendimento que um veículo de considerável valor não pode ter o perdimento decretado, em virtude da “desproporção” em razão do valor das mercadorias é o mesmo que dizer que um veículo de pequeno valor poderá ser apreendido.  Implicaria, pois, em apenar apenas os infratores que possuíssem veículos de baixo valor, os quais, em regra, pertencem às pessoas de baixo poder aquisitivo. Tal conclusão, a pretexto de estar realizando o princípio da proporcionalidade, poderia vulnerar um outro principio constitucional, qual seja, o da isonomia, pois permitiria apenar apenas as pessoas que possuíssem veículos de pequeno valor.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Isabelle Ferreira Duarte Barros. A pena de perdimento de veículos e a aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade pelos tribunais pátrios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3925, 31 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27275. Acesso em: 22 dez. 2024.

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