CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A doutrina administrativista costuma classificar os bens públicos como de uso comum do povo, especiais ou dominicais. Grosso modo, os primeiros compreendem aqueles que permitem a livre utilização pela população, desde que em concorrência igualitária e harmoniosa, consoante a destinação do bem e as condições que não lhe causem sobrecarga. São exemplos clássicos dessa espécie de bem público as praias, praças, ruas e pontes.
Os segundos são aqueles que visam à realização de serviços administrativos e públicos em geral1. Assim, um edifício erguido com o fito de sediar uma secretaria de governo, um hospital ou uma escola, configura-se como bem público de uso especial.
A classificação dos bens públicos como dominicais apresenta-se residual, isto é, engloba todos aqueles que não sejam de uso comum do povo ou de uso especial, embora ainda haja domínio do Estado sobre os mesmos2. Assim, se o Estado do Rio Grande do Norte constrói um novo prédio para abrigar a Secretaria Estadual de Tributação, ficando a antiga sede fechada, sem uma destinação específica, tem-se, nesta, um bem dominical. Da mesma forma, classificam-se as terras devolutas sob o domínio público.
As forças armadas, compostas pelo exército, marinha e aeronáutica, por sua vez, são instituições permanentes e regulares que se destinam à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, só podendo ser dissolvidas pela criação de uma nova Assembleia Constituinte. Mostram-se, por isso, como um elemento fundamental à organização coercitiva a serviço do Direito, das instituições democráticas e da paz social3.
Calcando-se no que foi acima explicitado, tem-se que as áreas militares possuem uma destinação específica, qual seja, a concretização da segurança e da defesa nacionais. São, portanto, bens públicos de uso especial.
DESAFETAÇÃO DE ÁREAS MILITARES PARA FINS DE GERAÇÃO DE ENERGIA EÓLICA
Qualquer bem público de uso comum do povo ou especial é revestido do instituto da afetação, isto é, de sua destinação a uma finalidade específica. Uma estrada, por exemplo, é um bem de uso comum do povo destinado à circulação de veículos. Não é o fato de lhe ser livre a utilização que fará que um determinado grupo possa realizar um espetáculo teatral ou iniciar a construção de um ambulatório em meio a uma rodovia federal. Da mesma forma, um teatro público não detém estrutura e destinação aptas a servirem como um ambiente de treinamento dos fuzileiros do Exército brasileiro.
Entendido o sentido do instituto ora analisado, as terras da União afetas às Forças Armadas têm a destinação específica de servir à Defesa Nacional através do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, para que nelas ocorram o armazenamento de materiais, o transporte, a moradia, o treinamento, a produção de tecnologia, as simulações, e o que mais for necessário aos objetivos militares constitucionalmente previstos4.
Vislumbre-se, entretanto, que a caracterização de determinado bem público como afeto ou desafeto é flexível: não há ato de consolidação absoluta ou perene5, de modo que, para servir aos interesses exploratórios, basta que a União proceda à desafetação do imóvel destinado ao uso militar.
Como consequência ínsita à defesa nacional, as áreas militares se espalham não apenas por regiões fronteiriças, mas, também, por toda a extensão litoral brasileiro. Por outro lado, é precisamente nessa região em que o potencial eólico do país se revela, empiricamente6, mais acentuado. Na esteira da pesquisa de Marcelo Silva de Matos Melo7, o Brasil possui um enorme potencial para o aproveitamento da fonte eólica para fins de geração de energia elétrica através dos aerogeradores, mormente em função da boa qualidade dos seus ventos litorâneos.
Assim, diante do entendimento técnico de viabilidade do desenvolvimento de parques eólicos em áreas afetadas a finalidades militares, insta indagar quanto ao procedimento jurídico necessário à desafetação.
PROCEDIMENTO E PARTICIPAÇÃO DA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA (ANEEL)
O entendimento majoritário na doutrina administrativista é que a desafetação de um bem público pode se dar por ato expresso ou por consentimento tácito do Poder Público, ocorrendo-se a primeira através de lei ou ato administrativo8. A hipótese do consentimento tácito revela-se mais plausível para fatos da administração, por exemplo, uma mudança na sede de uma universidade, ficando o prédio anterior sem destinação.
Entretanto, a hipótese de se licitar uma concessão para exploração eólica em qualquer área militar a fim de explorá-la economicamente demanda cuidados mais específicos que os convencionalmente exigidos. Trata-se da alteração temporária da destinação de um bem público de uso especial que serve, direta ou indiretamente, à defesa e à garantia da segurança nacional, de tal forma que a desafetação não pode ser feita de modo clássico.
Já se viu que as áreas militares são destinadas à defesa da pátria e às garantias dos poderes constitucionais, termos que estão imiscuídos na manutenção da soberania nacional, isto é, nos fundamentos da República Federativa do Brasil9.
A Constituição Federal assevera que, para qualquer assunto que se relacione à soberania do Estado brasileiro, deve ser ouvido o Conselho de Defesa Nacional (CDN), um órgão de consulta da Presidência da República, composto por, entre outras autoridades, os Presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados; os Ministros da Justiça, Estado de Defesa e Planejamento; e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica10.
Perceba-se, ainda, que é competência do CDN a proposição de critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional, devendo opinar sobre o efetivo uso destas, especialmente sobre as áreas relacionadas com a exploração dos recursos naturais. Não só: revela-se o referido conselho competente, ainda, para estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional11.
Note-se que todos os caminhos levam à decisão da desafetação de áreas militares à opinião do CDN. Não se trata de uma faculdade da União, mas sim de uma obrigação constitucionalmente vinculada.
Será necessário, portanto, que a ANEEL oficie a Presidência da República, para que esta consulte o CDN a respeito do tema.
Reunido este Conselho, a pluralidade de interesses findará por contribuir com o deslinde de uma querela que só pode ser determinada com a análise de um caso concreto. O que é melhor para o Estado? Que o domínio da área X permaneça sob a tutela das Forças Armadas ou que ele seja concedido à iniciativa privada, possibilitando uma exploração que é, indubitavelmente, de interesse nacional?
Há, de antemão, várias tendências na composição do CDN. Os comandantes militares provavelmente defenderão a manutenção da afetação da área ao uso especial de então. Os representantes dos poderes legislativo e executivo, entretanto, podem ser seduzidos por quaisquer escolhas, a depender das dimensões reais dos interesses concretos.
A ANEEL, como autarquia responsável pela regulação das atividades exploratórias, pode se fazer presente na reunião do CDN, o que muito contribuiria com o debate, dado o conhecimento técnico da Agência Reguladora12. De fato, se uma determinada área militar é ocupada com centenas de galpões inertes e, sob ela, há ventos e clima favorável, não faz sentido, a priori, que a mesma não seja posta como objeto de Licitação. Em todo caso, impõe-se a ponderação d os interesses em questão — desenvolvimento e defesa nacionais — para, ao final, escolher-se a solução lícita mais adequada.
Ressalte-se que a manifestação do CDN, seja ela qual for, não vincula a Presidência da República, afinal, mostra-se o Conselho como um órgão meramente consultivo. A aprovação daquele, entretanto, constitui inarredável premissa de validade à inclusão da área militar como objeto de Licitação, sob pena de flagrante inconstitucionalidade, devendo ser feita através de ato administrativo expresso, como um decreto, dadas as celeumas que cercam o imóvel em discussão.
A previsão da liberdade da Presidência da República quanto à sua decisão, mesmo que contrária à opinião do CDN, detém seu sentido, afinal, quem a ocupa se apresenta como chefe de Estado e Governo, função unipessoal e de responsabilidade exclusiva nas fixações das diretrizes do Poder Executivo13. Ademais, basta lembrar que o Presidente da República detém o poder de veto no processo legislativo, isto é, pode-se negar o seguimento de um projeto de lei elaborado pelo povo através de seus representantes, de tal forma que a discordância à opinião de um corpo consultivo, tal qual o é o CDN, não afronta a sistemática constitucional.
Dessa forma, seguindo-se tal procedimento e estando formalmente autorizada a inclusão da área militar ou da faixa de fronteira como objetos da Licitação promovida pela ANEEL, proporcionar-se-ia a validade do futuro contrato de concessão, tendo-se, como balizas jurídicas infraconstitucionais, as Leis Federais n.º 9.427/1996 e 12.783/2013.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do Domínio Público. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MELO, Marcelo Silva de Matos. Energia eólica: aspectos técnicos e econômicos (dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012, p. 53.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
Notas
1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 780.
2 No mesmo sentido, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006, p. 929. e FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.168.
3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 771-773.
4 Constituição Federal, Art. 142. e ss.
5 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 931. Acrescenta a doutrina que a desafetação é uma manifestação de vontade do Poder Público mediante a qual o bem do domínio público é subtraído desta dominialidade para ser incorporado ao domínio privado, do Estado ou do administrado (CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do Domínio Público. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 160-161).
6 V.g., Atlas do Potencial Eólico Brasileiro (2001).
7 In: Energia eólica: aspectos técnicos e econômicos (dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012, p. 53.
8 Nesse sentido: CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do Domínio Público. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 163; PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 547; MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 285; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 932. Para este autor em particular, a forma do ato é completamente irrelevante, devendo ser analisada somente a ocorrência em si da alteração da finalidade.
9 Constituição Federal, Art. 1º, I.
10 Constituição Federal, Art. 91.
11 Constituição Federal, Art. 91, §1º, III e IV.
12 Trata-se de uma faculdade do Presidente da República possibilitada pela Lei 8.183/91 (Lei do Conselho de Defesa Nacional), Art. 2º, §1º.
13 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 241-245.