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Pode a Lei Complementar estadual dispor a respeito de inquérito policial?

A ADI 2886 e o princípio federativo

Agenda 11/08/2014 às 16:16

O julgamento da ADI 2886 envolve a questão das competências dos entes federativos e a natureza jurídica do inquérito policial.

A federação é uma forma de Estado que comporta, num mesmo território, mais de uma esfera de poder. Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais (2003, p. 159) caracterizam-na muito bem:

Pode-se caracterizar a experiência federativa a partir da criação de um Estado único, a partir da União, cuja base jurídica é uma Constituição - de regra escrita e rígida, não havendo direito de secessão, ou seja, o vínculo associativo é indissolúvel. Ainda, a soberania pertence e é desempenhada pelo Estado Federal - a União, apesar de uma distribuição de competências feita por via constitucional com poderes próprios a cada um dos entes federados, que dispõem, ainda, de rendas próprias de cada esfera para poder fazer face aos encargos de que são titulares. O poder político é partilhado entre os poderes federal e estaduais - e, se for o caso, as demais unidades federativas, tais como os municípios - e uma repartição bicameral no legislativo federal, onde é necessária a participação dos componentes da estrutura federal para a definição de seus comportamentos. Deve-se ressaltar, ainda, que a cidadania é atribuída pelo Estado Federal - pela União.

Da obra de Karl Loewenstein (1979, p. 374-375) é possível extrair a seguinte lição:

Junto a la constitución escrita y el establecimiento de la forma «republicana» de gobierno, esto es, no monárquica, en Estados con un extenso territorio, el federalismo es la aportación americana más importante a la teoría y a la práctica del Estado moderno. Uniones de Estados de tipo federal habían existido anteriormente: en la antigua Grecia, las ligas o sinoikias délica, anfictiónica, helénica y aquea; la «alianza eterna» (ewige Bund) de los cantones suizos desde el siglo XIV y XV, la Unión de Ultrecht (1569) entre las siete provincias norteñas de los Países Bajos. Pero ninguma de estas formaciones constituyeron un auténtico Estado federal, en parte por la ausencia de órganos comunes con jurisdicción directa sobre los ciudadanos de los Estados asociados y en parte por la preponderancia de uno de los miembros. Otras asociaciones estatales, como el Sacro Imperio Romano de la nación alemana, fueron, bien asociaciones basadas en relaciones de vasallaje o feudales, bien, en el mejor de los casos, de naturaleza semiconfederal. Tras el período transitorio de los Articles of Confederation, los trece Estados americanos formaron con la Constitución federal de 1787 y, por la primera vez en la historia, un Estado federal completamente estructurado.

A federação objetiva um vínculo de eternidade e não uma simples relação passageira. Nos Estados Unidos, os Estados independentes abdicaram da soberania para formar o ente federal. No Brasil ocorreu o inverso. Aqui, a federação surgiu por meio de segregação. O Estado unitário, que era o Império, descentralizou-se em unidades federadas autônomas. As antigas províncias foram transformadas em ordens jurídicas parciais, por força do art. 2º da Carta de 1891. O federalismo por segregação é também denominado federalismo centrífugo.

Insculpido no art. 1º da Lex Mater, o princípio federativo põe em pauta a questão da competência para legislar acerca de temas que vêm dispostos nos artigos 22 e 24 da Constituição Federal brasileira. O primeiro dispositivo trata da competência legislativa privativa da União e o segundo, da competência legislativa concorrente da União, Estados e DF.

Pode-se dizer que competências federativas são parcelas de poder que o Estado confere aos entes políticos para que estes possam tomar as decisões no sentido de regular suas atividades, dentro daquilo que a própria Constituição previamente já define. Leo van Holthe (2007, p. 237) leciona:

(...) O Brasil adotou o modelo de repartição vertical de competências federativas pelo qual as competências não são atribuídas a cadaente da Fedração de maneira exclusiva (repartição horizontal decompetências). Pelo contrário, na CF/88, diversas matérias foram atribuídas simultaneamente a mais de uma entidade federativa (ex: a conservação do patrimônio público e a proteção do meio ambientesão competências comuns da União, Estados, DF e Municípios - art. 23), demonstrando mais a faceta do federalismo cooperativo, pelo qual as entidades devem se auxiliar mutuamente, a fim fde garantir que as tarefas estatais sejam cumpridas de maneira eficiente.

A ADI 2886, julgada em 03/04/2014, envolve a seguinte situação: foi ajuizada ação direta, com pedido de medida cautelar, com o objetivo de se declarar a inconstitucionalidade dos incisos IV e V do art. 35 da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (LC 106/2003). Esses incisos dispõem caber ao Ministério Público:

IV – receber diretamente da polícia judiciária o inquérito policial, tratando-se de ação penal pública;

V – requisitar informações quando o inquérito policial não for encerrado em trinta dias, tratando-se de indiciado solto, mediante fiança ou sem ela.

O argumento do requerente para a declaração de inconstitucionalidade é o seguinte: violação ao art. 22, I da CF, que dispõe ser da competência privativa da União legislar sobre “direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”.

Eis que surge a questão: o inquérito policial situa-se no âmbito estritamente processual penal ou se trata de um procedimento? Apenas a União poderia legislar sobre esse tema ou a Lei Complementar estadual pode dispor sobre o inquérito?

Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 107) dá o conceito de inquérito policial:

Procedimento administrativo inquisitório e preparatório, presidido pela autoridade policial, o inquérito policial consiste em um conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa objetivando a identificação das fontes de prova e a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade da infração penal, a fim de possibilitar que o titular da ação penal possa ingressar em juízo.

Trata-se de um procedimento de natureza instrumental, porquanto se destina a esclarecer os fatos delituosos relatados na notícia de crime, fornecendo subsídios para o prosseguimento ou o arquivamento da persecução penal. De seu caráter instrumental sobressai sua dupla função: a) preservadora: a existência prévia de um inquérito policial inibe a instauração de um processo penal infundado, temerário, resguardando a liberdade do inocente e evitando custos desnecessários para o Estado; b) preparatória: fornece elementos de informação para que o titular da ação penal ingresse em juízo, além de acautelar meios de prova que poderiam desaparecer com o decurso do tempo.

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O processo é uma forma disciplinada em lei para que o Poder Judiciário venha a resolver os conflitos de interesses que a eles são submetidos, mediante exercício da jurisdição. Já o procedimento pode ser considerado uma sucessão ordenada de atos com o objetivo de atingir um provimento final, que é a aplicação das normas jurídicas postas a um caso concreto.

Ora, sendo o inquérito policial um procedimento, a norma constitucional a ser invocada não é o art. 22, I e sim o art. 24, XI, que dispõe ser da competência da União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual.

Assim, tratando-se de competência legislativa concorrente, tem a União o poder de ditar a norma geral (o Código de Processo Penal) e, aos Estados, fica reservada a possibilidade de suplementar aquela norma, no âmbito do interesse estadual. Os parágrafos do art. 24 da Constituição são os seguintes:

§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Isto posto, é preciso notar que o inciso V do art. 35 da LC 106/2003 RJ não padece de qualquer inconstitucionalidade, vez que cabe ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial, nos termos do art. 129, VII da CF. Poderá, portanto, o membro do MP requisitar informações ao delegado no caso de o inquérito não se encerrar dentro de trinta dias.

Ocorre que a ADI em questão foi julgada parcialmente procedente. Veja-se a Ementa:

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Incisos IV e V do art. 35 da Lei Complementar nº 106/2003, do Estado do Rio de Janeiro. Necessidade de adequação da norma impugnada aos limites da competência legislativa concorrente prevista no art. 24 da Constituição Federal. Ação julgada parcialmente procedente apenas para declarar a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 35 da Lei Complementar Estadual. A legislação que disciplina o inquérito policial não se inclui no âmbito estrito do processo penal, cuja competência é privativa da União (art. 22, I, CF), pois o inquérito é procedimento subsumido nos limites da competência legislativa concorrente, a teor do art. 24, XI, da Constituição Federal de 1988, tal como já decidido reiteradamente pelo Supremo Tribunal Federal. O procedimento do inquérito policial, conforme previsto pelo Código de Processo Penal, torna desnecessária a intermediação judicial quando ausente a necessidade de adoção de medidas constritivas de direitos dos investigados, razão por que projetos de reforma do CPP propõem a remessa direta dos autos ao Ministério Público. No entanto, apesar de o disposto no inc. IV do art. 35 da LC 106/2003 se coadunar com a exigência de maior coerência no ordenamento jurídico, a sua inconstitucionalidade formal não está afastada, pois insuscetível de superação com base em avaliações pertinentes à preferência do julgador sobre a correção da opção feita pelo legislador dentro do espaço que lhe é dado para livre conformação. Assim, o art. 35, IV, da Lei Complementar estadual nº 106/2003, é inconstitucional ante a existência de vício formal, pois extrapolada a competência suplementar delineada no art. 24, §1º, da Constituição Federal de 1988. Já em relação ao inciso V, do art. 35, da Lei complementar estadual nº 106/2003, inexiste infração à competência para que o estado-membro legisle, de forma suplementar à União, pois o texto apenas reproduz norma sobre o trâmite do inquérito policial já extraída da interpretação do art. 16 do Código de Processo Penal. Ademais, não há desrespeito ao art. 128, §5º, da Constituição Federal de 1988, porque, além de o dispositivo impugnado ter sido incluído em lei complementar estadual, o seu conteúdo não destoou do art. 129, VIII, da Constituição Federal de 1988, e do art. 26, IV, da Lei nº 8.625/93, que já haviam previsto que o Ministério Público pode requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade somente do inciso IV do art. 35 da Lei Complementar nº 106/2003, do Estado do Rio de Janeiro (ADI 2886 / RJ - RIO DE JANEIRO, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. JOAQUIM BARBOSA, Julgamento:  03/04/2014, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno).

Lima (2014, p. 148) faz crítica doutrinária que se coaduna com os projetos de reforma do CPP mencionados na ementa:

Pela leitura do art. 10, §1º, do CPP, percebe-se que, uma vez concluída a investigação policial, os autos do inquérito policial devem ser encaminhados primeiramente ao Poder Judiciário, e somente depois ao Ministério Público.

A despeito do teor referido dispositivo, por conta da adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, outorgando ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, não há como se admitir que ainda subsista essa necessidade de remessa inicial dos autos ao Poder Judiciário. Há que se entender que essa tramitação judicial do inquérito policial prevista nos arts. 10, §1º, e 23, do CPP, não foi recepcionada pela Constituição Federal.

Ora, tendo em conta ser o Ministério Público o dominus litis da ação penal pública, nos termos do art. 129, I da Carta Magna, e, portanto, o destinatário final das investigações levadas a cabo no curso do inquérito policial, considerando que o procedimento investigatório é destinado, precipuamente, a subsidiar a atuação persecutória do órgão ministerial, e diante da desnecessidade de controle judicial de atos que não afetam direitos e garantias fundamentais do indivíduo, deve-se concluir que os autos da investigação policial devem tramitar diretamente entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, sem necessidade de intermediação do Poder Judiciário, a não ser para o exame de medidas cautelares (v.g., prisão preventiva, interceptação telefônica, busca domiliciar, etc).

O STF, apesar de reconhecer esses novos rumos doutrinários ao mencionar as propostas de reforma do CPP na ementa, entende pela existência de vício formal, tendo declarado, então, por maioria de votos, a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 35 da Lei Orgânica do Ministério Público Estado do Rio de Janeiro.

Feitas essas considerações, pode-se concluir este texto respondendo a pergunta que o intitula: sim, a Lei Complementar estadual pode versar sobre inquérito policial, pois ele é um procedimento administrativo e a Constituição, em seu art. 24, XI autoriza os Estados a legislarem a respeito de procedimentos em matéria processual.


Referências bibliográficas

BADENI, Gregorio. Tratado de Derecho Constitucional Tomo I. 2ª ed. Buenos Aires: La Ley, 2006.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

HOLTHE, Leo van. Direito Constitucional. 3ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2007.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal Volume Único. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2014.

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1979.

MORAIS, José Luis Bolzan de; STRECK, Lenio Luiz. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. 4ª ed. Madrid: Alianza, 1982.

Sobre o autor
Thiago dos Santos Rocha

Thiago dos Santos Rocha é um advogado e autor de livros e artigos jurídicos, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. É especialista em Direito do Consumidor, em Direito Constitucional Aplicado e em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Em seus textos acadêmicos, promoveu o diálogo entre Direito e Game Studies, abordando temas como: videogames e epilepsia; advergames e publicidade infantil; gameterapia e planos de saúde; videogames e política nacional de educação ambiental; etc. Também publicou obras na área de Direito Médico, tendo escrito os livros "A violação do direito à saúde sob a perspectiva do erro médico: um diálogo constitucional-administrativo na seara do SUS" (Editora CRV) e "A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica: visão tridimensional e em diálogo de fontes do Schuld e Haftung" (Editora Lumen Juris).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Thiago Santos. Pode a Lei Complementar estadual dispor a respeito de inquérito policial?: A ADI 2886 e o princípio federativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4058, 11 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30818. Acesso em: 22 dez. 2024.

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