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O direito do transexual e a bioética

Agenda 08/11/2003 às 00:00

A inclusão do estudo do transexualismo na bioética se deve principalmente ao fato do assunto abranger a dignidade da pessoa humana, os princípios da bioética, a licitude e a eticidade da intervenção cirúrgica e a multidisciplinaridade.

Apesar do assunto estar sendo debatido há quase um século discute-se ainda o direito a autonomia acerca da disposição do próprio corpo, o qual é fisicamente considerado são. No tocante a este aspecto indaga-se: poderá o médico realizar a ablação, a retirada de partes do corpo humano que não apresentam nenhuma doença aparente? Cabe a quem a decisão? Quais os critérios psicológicos, médicos e jurídicos a serem obedecidos?

O princípio da beneficência é alegado no momento em que se demonstra que a cirurgia é realizada objetivando o bem geral, a saúde do indivíduo. Se a cirurgia não cura, ao menos ameniza o problema do transexual (princípio da não-maleficência) que poderá ampliar seus contatos sociais.

Os princípios da justiça e da igualdade são amplamente discutidos sob dois aspectos. Primeiro, a terapêutica cirúrgica deve ser realizada porque indivíduos acometidos de hermafroditismo e pseudo-hermafroditismo realizam esta intervenção sem grandes discussões éticas, objetivando a harmonia do corpo com a mente. Ressaltam alguns que a destinação de recursos da saúde para este tipo de cirurgia deve ser abolida por não ser justo para com aqueles atingidos por problemas mais "sérios e graves". Desconhecem estes indivíduos que não deve haver discriminação na realização das cirurgias em transexuais, visto que faz parte de um tratamento de saúde.

No tocante a licitude e eticidade da cirurgia, cabe lembrar que o Conselho Federal de Medicina autoriza a sua realização desde 1997. Ademais, não existem dispositivos legais no ordenamento jurídico brasileiro que proíbam a sua realização, visto que o objetivo da mesma é a inserção social e profissional do transexual, contribuindo para a melhora da sua saúde.

A matéria é de interesse multidisciplinar porque abarca reflexões em diversas áreas. Alguns exemplos podem ser citados a título exemplificativo. A cirurgia é realizada com sucesso graças ao desenvolvimento alcançado pela cirurgia plástica, contudo os profissionais mais habilitados a diagnosticar a transexualidade e o grau de masculinidade ou feminilidade em um indivíduo são os psiquiatras e psicólogos. Uma terapia hormonal é também indicada por um endocrinologista habituado a estes casos. Um assistente social poderá verificar o meio em que se situa este indivíduo, contribuindo para um melhor relacionamento familiar e social. Os profissionais do direito são os que labutam pelo reconhecimento do direito a adequação dos documentos.

As pessoas ligadas às reflexões filosóficas e teológicas indagam: houve um erro da natureza? O que é ser homem? Se Deus quis que a pessoa viesse ao mundo como homem poderia ela transformar-se em mulher? Os profissionais que auxiliam nesta terapêutica também não estariam contrariando a vontade divina ou da natureza? O sexo é um componente do corpo ou da alma?

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Vale reconhecer que este indivíduo não deseja simplesmente mudar de sexo. Seu anseio é ser reconhecido como pertencente ao sexo oposto ao da sua genitália de nascença, por ser o mais adequado a sua saúde global. Esta adequação lhe é imposta de modo irresistível, escapando ao seu livre-arbítrio. Portanto, não devemos considerar o sexo apenas como um conjunto de caracteres físicos, genéticos; devemos a estes agregar os caracteres psicológicos.

O direito à saúde é tutelado pela Constituição Federal brasileira e implica no direito à busca do melhor e mais adequado tratamento para o problema. No caso em tela, significa reivindicar o bem estar geral, psíquico, físico e social o qual contribuirá para o desenvolvimento da sua personalidade, superando a angústia experimentada com a imposição de uma genitália repulsiva, dissociada da sua verdadeira identificação.

A cirurgia de adequação de sexo é de natureza terapêutica, devendo, portanto receber do Direito, da Enfermagem, da Medicina, da Psicologia etc, sua contribuição para a diminuição do sofrimento dos transexuais. Estes desejam ver seu direito à saúde e à cidadania respeitados, visto que merecem viver com dignidade exercendo seus direitos e cumprindo seus deveres sem constrangimentos.

Vivemos em uma democracia onde os direitos das minorias devem ser considerados. Não podemos nos apegar a conceitos ultrapassados, bem como em tabus infundados. Devemos facilitar e contribuir para uma convivência harmônica entre as pessoas, sejam elas diferentes ou não.

Sobre a autora
Tereza Rodrigues Vieira

Pós-Doutorado em Direito pela Université de Montreal, Canadá. Mestrado (direito à mudança de nome) e Doutorado em Direito pela PUC-SP e Université Paris. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP, São Paulo. Especialista em Sexualidade Humana pela Sbrash Docente do Mestrado em Direito Processual e Cidadania na UNIPAR. Membro da Comissão Estatuto da Diversidade Sexual da OAB-Federal Advogada em São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Tereza Rodrigues. O direito do transexual e a bioética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 129, 8 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4354. Acesso em: 28 dez. 2024.

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