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Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin.

O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira

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Agenda 20/12/2015 às 10:12

4. ATIVISMO JUDICIAL E DEMOCRACIA – O CASO DO ABORTO DO FETO ANENCÉFALO

Intensos são os desafios enfrentados pela democracia diante das múltiplas transformações sofridas pela sociedade, sempre exigindo do Estado posturas efetivamente justas e coerentes com as proposições constitucionais.

O caso do aborto há décadas tem desafiado o Poder Judiciário dos estados com discussões que gravitam em torno de pelo menos duas bandeiras: a primeira, defendida pelos grupos pro-life, os quais defendem a proteção da vida do feto, uma vez que esse ente, ainda que disforme, seria um ser humano em potencial, com todas as suas prerrogativas legais, sociais e espirituais, merecedor de respeito e dignidade. Já a segunda corrente refere- se ao discurso pro-choice e centra- se na defesa do livre arbítrio feminino frente à autonomia sexual e ao direito de procriação, não comportando intervenção do Estado por se tratar de matéria relativa à privacidade da mulher.

Evidentemente, trata- se de um tema bastante delicado para a manutenção do sentido de justiça, pois são envolvidos argumentos não apenas jurídicos, mas também filosóficos, religiosos, econômicos, científicos, culturais e de toda ordem, desafiando a interpretação de um direito que deverá permanecer atento e sensível às particularidades e demandas de ambos os segmentos.

Quanto ao direito brasileiro são admitidos os abortos de caráter terapêutico necessário para salvar a vida da mãe, e sentimental, ético ou humanístico se a gravidez resulta de estupro. Todavia, constituem crime todas as demais modalidades (arts. 124 ao 126 do diploma penal pátrio). Tormentosa questão se refere ao aborto de fetos anencefálicos – compreendidos como os que não possuem encéfalo nem medula espinhal.

Do ponto de vista de Dworkin, não se trata exatamente de se definir se o feto seria pessoa na acepção jurídica do termo e teria direitos em razão disso - prevalece a sacralidade da vida27, razão pela qual esta deve ser mantida a salvo de posturas violentas ou inconsequentes, ainda que o conceito de sacralidade permita interpretações diferentes.

De fato, a santidade da vida é uma noção controversa, por exemplo, quando um feto for deformado, como no caso da anencefalia, será o aborto, ou o nascimento, que servirá melhor ao valor intrínseco da vida? Quando o nascimento da criança arruinar os planos de vida da mãe, pode-se levantar a mesma questão.

Uma verdadeira percepção da dignidade deve apelar para a liberdade e não para a coerção penal, a fim de impor um ponto de vista de alguma maioria sobre os demais indivíduos em questões tão cruciais como a vida e a morte.28 A questão, portanto, não é quem tem direitos, ou como interesses diferentes devem ser balanceados e protegidos. A democracia tem o dever de assegurar que as pessoas tenham o direito de viver suas vidas em acordo com suas próprias convicções sobre questões religiosas essenciais.29

Neste contexto, em 1991 foi deferido pioneiramente um aborto anencefálico no Brasil30, sendo que, hodiernamente, mais de duas mil autorizações nesse sentido foram concedidas pelo Poder Judiciário. A “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental” (ADPF Nº. 54), em trâmite no Supremo Tribunal Federal também trata da matéria, estando em debate se os casos previstos no Código Penal Brasileiro relativamente ao aborto violam preceitos fundamentais da Constituição da República, como a dignidade da pessoa humana, princípio da legalidade, da liberdade e autonomia da vontade, e o direito à saúde.

Como resposta a esse procedimento, mesmo tendo sido em sentido contrário o parecer do Procurador Geral da República, em 1º de julho de 2004 foi reconhecido liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal31 o direito ao aborto terapêutico em casos de fetos anencefálicos, Atualmente, aguarda-se decisão definitiva concernente ao mérito dessa demanda de interesse nacional.

Vislumbrando alternativas para compor tamanha equação com imprescindível segurança e justiça, a doutrina dworkiniana propõe a aplicação de processos de interpretação construtiva fulcrados na integridade, na moral e na democracia. No caso do aborto, ora suscitada, o Supremo Tribunal Federal não se quedou inerte diante da lacuna legal no tocante às hipóteses de aborto, considerou todos os princípios relevantes e proferiu uma decisão no sentido de garantir o direito de uma minoria – no caso, das gestantes cujos fetos não têm chance de vida viável fora do útero, agindo, portanto, como um verdadeiro “Juiz de Hércules”, num movimento ativista efetivamente concretizador dos ideais de equidade e justiça previstos na Constituição Federal brasileira.


5. CONCLUSÃO

Este trabalho buscou fazer uma breve análise acerca do movimento denominado ativismo judicial à luz da doutrina de Ronald Dworkin, tendo como pano de fundo a realidade jurídica brasileira e por ilustração a questão do aborto.

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Procurou-se demonstrar como a doutrina dworkiniana preconiza um novo modelo de teoria do direito capaz de habilitar o Judiciário a superar o inquietante passivismo mórbido instalado no Legislativo e no Executivo e que abala irreparavelmente as tênues estruturas sociais.

Com efeito, conclui-se que o ativismo é um inegável vetor da democracia e de consolidação dos direitos fundamentais gestados, nesta hipótese, pelos próprios julgadores, atentos ao “Princípio da Integridade” e à “Leitura Moral da Constituição”.

Para tanto, os magistrados, numa permanente interpretação construtiva da lei ou de qualquer outro padrão de norma, devem criar o Direito a ser aplicado em um certo caso concreto, notadamente quando se tratar dos casos complexos que não são previstos por uma determinada regra específica da esteira jurídica nacional.

Desta feita, imprescindível se torna que o julgador rompa com a teoria positivista do direito e passe a utilizar, em sua interpretação, os valores e princípios explícitos e implícitos na Constituição, e em todo o sistema normativo pátrio.

Uma vez motivadas as decisões, sobretudo nos mencionados princípios ou em outros padrões jurídicos que escapem ao casulo da lei, não há que se falar de usurpação dos poderes do Legislativo pelo Judiciário.


REFERÊNCIAS

1 “O legislador sofre de gigantismo no Estado Contemporâneo. É chamado a interferir em tudo, usando a lei como instrumento para solução de problemas. Os diplomas legais se multiplicam, em profusão. Como tudo o que é feito para atender a pressão dos acontecimentos e em grande quantidade, o resultado, sob o aspecto qualitativo, nem sempre é o melhor. O acúmulo e a labilidade das normas corrói a certeza do ordenamento, que lembra um autêntico “manicômio jurídico” (BECKER, 1972, p.3-10).

2 BARROSO, 2009, p.52-54.

3 Importante é a obra de Konrad Hesse.” La fuerza normativa de la Constituición”. In: Escritos de derecho constitucional, 1983.

4 Neste particular, consideramos relevante a leitura de J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira. Fundamentos da Constituição, 1991.

5 “Certamente que o Judiciário presta o serviço de resolver conflito entre as pessoas, mas também presta outro serviço, que consiste em controlar que, nestas realizações normativas entre Estado e pessoas, o primeiro respeite as regras constitucionais, particularmente quanto aos limites impostos pelo respeito à dignidade da pessoa humana” ( ZAFFARONI, 1995, p.37).

6 BARROSO, 2010, p.58

7 “Nosso sistema constitucional baseia- se em uma teoria moral específica, a saber, a de que os homens têm direitos morais contra o Estado. As cláusulas difíceis da Bill of Rights, como as cláusulas do processo legal justo e da igual proteção, devem ser entendida como um apelo a conceitos morais, e não como uma formulação de concepções específicas. Portanto, um tribunal que assume o ônus de aplicar plenamente tais cláusulas como lei deve ser um tribunal ativista, no sentido de que ele deve estar preparado para para formular questões de moralidade política e dar-lhes uma resposta” (DWORKIN, 2010, p. 231).

8 “O programa do ativismo judicial sustenta que os tribunais devem aceitar a orientação das chamadas cláusulas constitucionais vagas no sentido que descrevi, a despeito das razões concorrentes do tipo que mencionei. Devem desenvolver princípios de legalidade, igualdade e assim por diante, revê-los de tempos em tempos à luz do que parece ser a visão moral recente da Suprema Corte, e julgar os atos do Congresso, dos Estados e do Presidente de acordo com isso” (DWORKIN, 2010, p. 215-216).

9 Criticando o positivismo de Austin, assim se posiciona Dworkin: “ Fazemos distinção importante entre o direito e até mesmo as ordens de caráter geral de um gângster. Sentimos que os rigores da lei – e suas sanções – são diferentes na medida em que são obrigatórios de uma maneira que as ordens de um fora-da-lei não são. A análise de Austin não oferece espaço para que para que se faça tal distinção, porque define uma obrigação como uma sujeição à ameaça da força e, desse modo, fundamenta a autoridade do direito inteiramente na capacidade e na vontade do soberano de causar danos aos que desobedecem” (DWORKIN, 2010, p.30).

10 “Nossa prática política reconhece dois tipos diferentes de argumentos que buscam justificar uma visão política. Os argumentos de política tentam demonstrar que a comunidade estaria melhor, como um todo, se um programa particular fosse seguido. São, nesse sentido especial, argumentos baseados no objetivo. Os argumentos de princípio afirmam, pelo contrário, que programas particulares devem ser levados a cabo ou abandonados por causa de seu impacto sobre pessoas específicas, mesmo que a comunidade como um todo fique frequentemente pior. Os argumentos de princípio são baseados em direitos” (DWORKIN, 2001, p.IX).

11 Em síntese, “Riggs v. Palmer” se refere a um julgamento consumado em 1889, em Nova Iorque. Deliberou ali o Tribunal acerca do homicídio praticado por Elmer E. Palmer contra seu avô Francis Palmer, para que este não alterasse o seu testamento, permanecendo o assassino como beneficiário principal. Ao final, Elmer teve sua herança negada, além de sofrer a correspondente condenação na esfera penal.

12 “A ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude, beneficiar- se com seus próprios ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniquidade ou adquirir bem em decorrência de seu próprio crime” (DWORKIN, 2010, p. 37).

13 DWORKIN, 2010, p. 38.

14 A diferença entre os princípios e regras jurídicas é de natureza logica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distingue- se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis á maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN, 2010, p. 39).

15 DWORKIN, 2003, p. 271.

16 Comentando o princípio da integridade, afirma Lênio Streck: “ Quando mais de uma solução se apresentar a partir dessa ‘conduta interpretativa’, o juiz deverá optar pela interpretação que, do ponto de vista da moral política, melhor reflita a estrutura das instituições e decisões da comunidade, ou seja, a que melhor represente o direito histórico e o direito vigente, sendo que esta seria, assim, a resposta correta para o caso concreto” (STRECK, 2008, p. 335).

17 “Diferentes juízes vão estabelecer esse limiar de maneira diversa. Mas quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira história política de sua comunidade irá às vezes restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo.” (DWORKIN, 2003, p. 305).

18 No intuito de minimizar tal problema, recentemente o Conselho Nacional de Justiça – órgão de controle do Poder Judiciário no Brasil – editou a Resolução 75/2009, a qual regulamentou os concursos de ingresso nas carreiras da magistratura e incluiu matérias como Sociologia do Direito, Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito e da Política e Psicologia Judiciária como obrigatórias.

19 “Os membros de uma determinada sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, do sistema de princípios que estas decisões endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos, e que ele tem deveres que decorrem desse sistema, ainda que estes nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados.” (DWORKIN, 2003, p. 254,255).

20 “Devemos levar em conta ao julgar, quanto os cidadãos individualmente perdem de poder político sempre que uma questão sobre direitos individuais é tirada do Legislativo e entregue aos tribunais. Alguns perdem mais do que outros apenas porque têm mais a perder. Devemos também lembrar que alguns indivíduos ganham em poder político com essa transferência de atribuição institucional. Pois os indivíduos têm poderes na concepção de Estado de Direito centrada nos direitos, que não têm na concepção centrada na legislação. Eles têm o direito de exigir, como indivíduos, um julgamento específico acerca de seus direitos. Se seus direitos forem reconhecidos por um tribunal, esses direitos serão exercidos, a despeito de nenhum Parlamento ter tido tempo ou vontade de impô-los.“ (DWORKIN, 2001, p. 31).

21 Trata- se de uma filosofia que traduz o ideal de uma comunidade democrática incorporado por Dworkin, quando preconiza que “uma sociedade na qual a maioria despreza as necessidades e pretensões de alguma minoria, é legítima e injusta” (DWORKIN, 2006, p.25).

22 Sobre este assunto, recomendamos a leitura do item 5 do capítulo I da obra Levando os Direitos a Sério (DWORKIN, 2010, p 50 - 63).

23 “Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura desta prática, a coerência de princípio que a integridade requer” (DWORKIN, 2003, p.274).

24 HABERMAS, 1997, p. 276-277.

25 DWORKIN, 2003 - cit. 22, p. 442.

26 DWORKIN, 2003, p. 442-450.

27 “O verdadeiro argumento é muito diferente: divergimos tão profundamente porque todos levamos muito a sério um valor que nos une como seres humanos – a santidade ou inviolabilidade de cada etapa de toda e qualquer vida humana” (DWORKIN, 2009, p. 341).

28 “A liberdade é exigência fundamental e absoluta do amor- próprio: ninguém concede importância intrínseca e objetiva à própria vida a menos que insista em conduzi-la sem intermediação alguma e não ser conduzido por outros, por mais os ame ou respeite”( DWORKIN, 2009, p.342).

29 “Insistimos na liberdade porque prezamos a dignidade e colocamos em seu centro o direito à consciência, de modo que um governo que nega esse direito é totalitário, por mais livres que nos deixe para fazer escolhas menos importantes” (DWORKIN, 2009, p. 342-343).

30OLIVEIRA, A. A. S. de; MONTENEGRO, S.; GARRAFA, V. Supremo Tribunal Federal do Brasil e o aborto anencefálico.

31 Sobre um possível excesso por parte do Supremo Tribunal Federal no Brasil, assinala CANOTILHO, em matéria publicada no site do jornal Valor Econômico: "O STF faz coisas que nenhum tribunal constitucional faz" e complementa que "Mas a minha posição é a de que não são os juízes que fazem a revolução. Nunca o fizeram. Só que eles podem pressionar os outros poderes políticos dessa forma. E eu creio que é essa a posição do STF." (disponível em http://www.valor.com.br/arquivo/791745/stf-tem-ativismo-sem-paralelo-diz-jurista).

Sobre o autor
Fernanda Soares Ferreira Coelho

Bacharel em 2004 pela Universidade de São Paulo, Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito, Mestra em Ciência Jurídico-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Procuradora Federal desde 2006.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Fernanda Soares Ferreira. Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin.: O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4554, 20 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45321. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho de pós-graduação apresentado à disciplina Metodologia do Direito do curso de Ciências Jurídicas ao Abrigo do Protocolo entre a FDUP e o IPCP da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

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