Introdução
Em 30 de junho de 2016, foi sancionada a Lei nº 13.303,[1] que estabelece o estatuto jurídico das empresas públicas, sociedades de economia mista e de suas subsidiárias (estatais). Apelidada no Senado Federal como Lei de Responsabilidade das Estatais,[2] mas conhecida como Lei das Estatais, recebeu grande atenção da mídia ao estabelecer critérios para nomeação dos dirigentes das estatais.
A Lei ainda trata de outro tema de grande relevância: a regulamentação das licitações e contratações das estatais. Dezoito anos após a Emenda Constitucional nº 19, que estabeleceu a necessidade de um estatuto,[3] a Lei nº 13.303 definiu a regras, resolvendo grandes impasses quanto a esses procedimentos.
Da necessidade de nova regulamentação
Antes de adentrarmos nas novas regras trazidas pela Lei, é essencial fazer uma breve análise sobre o cenário em que tramitou o projeto.
Com a operação da polícia federal, denominada Lava-jato, identificou-se uma série de condutas criminosas que culminaram no desvio de quantias vultosas nas contratações da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras).
Durante o início da operação, foi suscitado o fato de que o Decreto da Petrobrás[4] que teria permitido a ocorrência desses crimes e fraudes. Doutrinadores com maior conhecimento do tema, sempre pontuaram que os incidentes ocorridos na Petrobrás, poderiam ter acontecido em qualquer órgão ou entidade que observasse a Lei Geral de Licitações.[5] Os episódios delatados tem pouco relação com as facilidades do regulamento próprio de licitação, mas tem muita relação com a ausência de uma matriz de responsabilidade e marco legal de negócios de estatais.
O que parece ter ocorrido, foi um conluio entre os licitantes e os operadores da licitação e entre contratados e políticos. Essa situação, nenhuma Lei para regular licitação pode conter, havendo necessidade de reflexão madura; compreender que leis não são mazelas para todos os problemas. Se leis fossem soluções, o Brasil tem mais de 5.000.000 de normas editadas desde a Constituição Federal de 1988.
O caminho para a contenção de desvios de condutas graves é a mudança de cultura, a competência de gestão e a consistência de marcos reguladores, associados a transparência de processos.
Tal tese resta evidente ao se analisar a Lei nº 13.303/2016. Houve a incorporação de vários regramentos previstos no Decreto da Petrobrás e não há uma disposição sequer que poderia evitar a ocorrência das situações apuradas pela Lava-jato.
Nesse sentido, os órgãos de controle já identificaram: o que garante moralidade à gestão não são leis e procedimentos burocráticos, mas sim uma mudança na conscientização, que é o que se propõe com as regras de integridade e compliance, temas de destaque na atualidade.
Das inovações normativas
A Lei das Estatais, ao regulamentar os procedimentos licitatórios trouxe apenas pequenas inovações, quando comparadas com as atuais normas existentes para a Administração Pública Direta.[6]
Inclusive, a maior parte dos dispositivos consiste em nada mais do que melhoras de interpretação, em conformidade com a doutrina e jurisprudência sobre o tema.
Por um lado, não trará grandes desafios na sua aplicação aos gestores que aplicavam a Lei nº 8.666/1993.[7] Por outro, deixa de inovar justamente para as empresas que precisam de metodologias mais céleres e eficientes para competir com o mercado privado, por exemplo.
1. Da incorporação do RDC
Entre as principais alterações trazidas pela Lei das Estatais estão as inclusão das novidades do Regime Diferenciado de Contratação (RDC).[8]
Desse modo, aplicam-se as estatais:
- os modos de disputa aberto, fechado e misto (art. 52)[9];
- a inversão de fases como regra (art. 51)[10];
- os critérios de julgamento “maior retorno econômico”, “melhor conteúdo artístico” e “melhor destinação de bens alienados” (art. 54)[11];
- a polêmica “contratação integrada” (art. 42, VI)[12];
- a pré-qualificação permanente de fornecedores e produtos (art. 64)[13]
Tal medida vai de encontro a tese de que a utilização das regras do RDC seriam específicas para situações particularidades, tendo em vista que na Lei das Estatais, sua utilização se dará de modo irrestrito.
Apesar dos grandes avanços que o RDC tem representado, a norma ao incorporá-lo deixou de abordar as fraquezas que já vem sendo identificadas pela doutrina.
Por exemplo, ao estabelecer o modo de disputa aberto, fechado ou misto, cria um grau de discricionariedade ao agente público que pode ser questionado caso a caso perante o judiciário e os órgãos de controle, exigindo robustas justificativas para garantir a celeridade do procedimento. Como se tem percebido, as justificativas ficam sujeitos a opiniões de “engenheiros de obras prontas”, ou seja a entendimento divergente depois de longo tempo dos fatos ocorridos.
2. Das hipóteses de contratação direta
Outro ponto que merece destaque, refere-se a questão da contratação direta. Tanto as hipóteses de dispensa de licitação, quanto as hipóteses de inexigibilidade são, de modo geral, redações mais claras das regras previstas na Lei nº 8.666/1993.[14]
A perceptível redução do número de hipóteses de dispensa se adequa ao entendimento doutrinário, ao excluir aquelas inaplicáveis às estatais, como por exemplo, aquelas relativas às forças armadas.
Na inexigibilidade, destaca-se a supressão da singularidade como condição para contratação do notório especialista. Na Lei nº 8.666/1993,[15] para a contratação de especialista exigia-se que tanto a notoriedade deste, quanto a singularidade do objeto. Para as estatais, a partir de agora, basta que o serviço se enquadre entre algum daqueles trazidos no inciso II do art. 30.[16]
De igual relevância, foi a “atualização” dos preços para a hipótese de dispensa de licitação nas contratações de “pequenos” valores. Seguindo a linha dos projetos em trâmite no Congresso Nacional,[17] os valores que na Lei nº 8.666/1993 cingiam-se em quinze mil reais, para obras e serviços de engenharia, e oito mil reais nos demais casos, foi majorado para cem mil e cinquenta mil, respectivamente.
Tal medida não só traz os valores da Lei Geral de Licitações,[18] que não eram atualizados deste 1998,[19] para os dias atuais, mas também permite maior flexibilidade para as estatais.
3. Dos prazos contratuais
Os prazos contratuais, na Lei Geral de Licitações, sempre foram alvos de debates e críticas. A limitação dos contratos ao exercício financeiro, apesar de compatível com as leis orçamentárias, não se constituem a praxe da Administração Pública.
As hipóteses de prorrogação de contratos até 60 meses também são, de certo modo, restritas, dificultando projetos, em médio prazo, na Administração Pública.
A Lei das Estatais, desse modo, trouxe paradigma diverso a vigência dos contratos, limitando-os à cinco anos, permitido prazo superior caso:
a) os projetos estejam contemplados no plano de negócios e investimentos da empresa pública ou da sociedade de economia mista;
b) a pactuação por prazo superior a cinco anos seja prática rotineira de mercado e a imposição de prazo menor inviabilize ou onere excessivamente a realização do negócio.
Das críticas
Apesar de trazer grandes avanços, a Lei das Estatais apresenta alguns pontos que merecem aperfeiçoamento.
Na construção de seus dispositivos afetos às modalidades de licitação, a Lei permite a utilização do modo de disputa aberto, fechado ou misto, nos moldes do RDC, mas determina o uso do pregão como modalidade preferencial.
Ora, utilizar o pregão não é compatível com os modos de disputa do RDC, o que traz ao dispositivo uma inviabilidade lógica na sua utilização.
Ainda que existam doutrinadores que apontem semelhança entre o modo de disputa aberto e o pregão, existem diferenças substanciais entre definir modalidade e conceituar apenas regimes de execução de procedimentos. Da normatização das atividades comerciais
Do mesmo modo, considera-se uma omissão grave da Lei, deixar de regulamentar os procedimentos afetos ao desempenho de atividades comerciais, em competição com a iniciativa privada.
Ora, quando a estatal pratica atos de contratação em atividades em que há competição com o privado, seguir os procedimentos burocráticos da licitação lhe traria desvantagens. Considere, por exemplo, em um ambiente concorrencial publicar o projeto básico detalhando o segredo do futuro objeto. Por outro lado, nem tudo que se compra afeta uma atividade concorrencial.
É por isso que os órgãos de controle, atentos a demandas dessas empresas, já firmaram entendimento de que não se aplicaria a Lei nº 8.666/1993 a essas hipóteses.
Ao não dispor sobre o tema, a Lei das Estatais deixa em aberto um tema de grande relevância, que vai continuar gerando insegurança para as estatais.
Conclusão
Como se verificou, a modernização da legislação de licitações e contratos das estatais representa um marco no cenário nacional.
Apesar de trazer grandes avanços, peca por seguir o procedimento burocrático da Administração Direta e não regulamentar temas relevantes.
Os avanços ficam, em sua grande maioria, por conta do RDC e questões pontuais acerca da contratação direta e vigência de contratos.
Apesar disso, já representa um grande avanço para as estatais, mas que não dispensa a necessidade de um aprimoramento normativo, não só quando se debate a transparência da gestão pública, o combate a corrupção mas também ao se buscar procedimentos mais rápidos, eficientes de modo a se aprimorar a atuação das estatais.
[1] BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
[2] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 555, de 2015 – Lei de Responsabilidade das Estatais. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/122838. Consulta em 30/06/2016.
[3] BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Art. 173. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: [...] III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.
[4] BRASIL. Decreto nº 2.745, de 24 de agosto de 1998. Aprova o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRÁS previsto no art . 67 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997.
[5] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
[6] Incluindo a Lei Geral de Licitações ( Lei nº 8.666/1993), Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/2011).
[7] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
[8] BRASIL. Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011. Institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC; altera a Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, a legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a legislação da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero); cria a Secretaria de Aviação Civil, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de Controlador de Tráfego Aéreo; autoriza a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários; altera as Leis nos 11.182, de 27 de setembro de 2005, 5.862, de 12 de dezembro de 1972, 8.399, de 7 de janeiro de 1992, 11.526, de 4 de outubro de 2007, 11.458, de 19 de março de 2007, e 12.350, de 20 de dezembro de 2010, e a Medida Provisória no 2.185-35, de 24 de agosto de 2001; e revoga dispositivos da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998.
[9] BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Art. 52. Poderão ser adotados os modos de disputa aberto ou fechado, ou, quando o objeto da licitação puder ser parcelado, a combinação de ambos, observado o disposto no inciso III do art. 32 desta Lei.
[10] BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Art. 51. As licitações de que trata esta Lei observarão a seguinte sequência de fases: I - preparação; II - divulgação; III - apresentação de lances ou propostas, conforme o modo de disputa adotado; IV - julgamento; V - verificação de efetividade dos lances ou propostas; VI - negociação; VII - habilitação; VIII - interposição de recursos; IX - adjudicação do objeto; X - homologação do resultado ou revogação do procedimento.
[11] BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Art. 54. Poderão ser utilizados os seguintes critérios de julgamento: I - menor preço; II - maior desconto; III - melhor combinação de técnica e preço; IV - melhor técnica; V - melhor conteúdo artístico; VI - maior oferta de preço; VII - maior retorno econômico; VIII - melhor destinação de bens alienados.
[12] BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Art. 42. Na licitação e na contratação de obras e serviços por empresas públicas e sociedades de economia mista, serão observadas as seguintes definições: [...]VI - contratação integrada: contratação que envolve a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto, de acordo com o estabelecido nos §§ 1o, 2o e 3o deste artigo.
[13] BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Art. 64. Considera-se pré-qualificação permanente o procedimento anterior à licitação destinado a identificar: I - fornecedores que reúnam condições de habilitação exigidas para o fornecimento de bem ou a execução de serviço ou obra nos prazos, locais e condições previamente estabelecidos; II - bens que atendam às exigências técnicas e de qualidade da administração pública.
[14] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
[15] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
[16] Art. 30. A contratação direta será feita quando houver inviabilidade de competição, em especial na hipótese de: [...] II - contratação dos seguintes serviços técnicos especializados, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação: a) estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos; b) pareceres, perícias e avaliações em geral; c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; g) restauração de obras de arte e bens de valor histórico.
[17] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013. Institui normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115926> Acesso em: 09 fev. 2016. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013. Institui normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Disponível m: <http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getTexto.asp?t=143724&c=PDF&tp=1> Acesso em: 09 fev. 2016. EMENDA Nº 66 - CI (Substitutivo ao PLS 559, de 2013). http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getTexto.asp?t=184307&c=PDF&tp=1 , acesso em 23/02/2016.
[18] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
[19] BRASIL. Lei nº 6.648, de 27 de maio de 1998. Altera dispositivos das Leis no 3.890-A, de 25 de abril de 1961, no 8.666, de 21 de junho de 1993, no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no 9.074, de 7 de julho de 1995, no 9.427, de 26 de dezembro de 1996, e autoriza o Poder Executivo a promover a reestruturação da Centrais Elétricas Brasileiras - ELETROBRÁS e de suas subsidiárias e dá outras providências.