Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A impenhorabilidade do bem de família dado em garantia hipotecária em contratos de terceiros

Agenda 07/07/2016 às 11:11

Aplica-se a impenhorabilidade do bem de família frente à oferta dele como garantia real hipotecária em contratos de terceiros? Entende-se que o benefício da proteção ao bem de família é uma norma de ordem pública, logo, é irrenunciável.

O bem de família está regulamentado pelo nossa legislação pátria pela Lei 8.009/90 e pelo Código Civil de 2002. Todas essas normas partem do intento de preservar totalmente o domicílio da família, garantindo-lhe um teto digno. Tal proteção é fundamental inclusive para a sua segurança, evitando, consequentemente, sua desestruturação. Assim, tais dispositivos têm sempre em mira a proteção da família brasileira com sustentáculo calcado na dignidade da pessoa humana.

Sendo assim, a citada Lei 8.009/90 tratou de expor em seu primeiro dispositivo de forma clara e objetiva a impenhorabilidade de tal bem, trazendo inclusive um rol exemplificativo de situações em que se impõe tal regramento, vejamos:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Entretanto, quando se trata de garantia hipotecária em contratos de terceiros, o tema tem criado controvérsias e discussões entre juristas e causídicos pelos foros e tribunais do país, alguns defendendo força do pacta sunt servanda, e lhaneza das declarações de vontade, ou seja colocando as liberdade de contração como supedâneo para a inaplicabilidade da proteção do bem de família, e outros, adotando um ponto de vista constitucional, utilizando-se de uma interpretação mais extensiva da lei 8009/90, os quais defendem que se opera perfeitamente a impenhorabilidade do bem de família, por força inclusive de garantias consagradas pela Carta da República.

Assim, a altercação inquietante que motiva convicções tão distintas repousa em alguns pontos específicos, se a expressa oferta do garantidor caracteriza ou não renúncia à tal proteção do bem de família e se a penhora é oponível incondicionalmente.

Existem os adeptos à corrente que se escuda nos princípios gerais dos contratos, invocando a boa-fé, e o próprio prestigio ao ato jurídico, ou seja a intenção do devedor, no sentido de outorgar em garantia o seu imóvel.

Para os sectários de tal entendimento não há o que se falar em cabimento de impenhorabilidade, quando livremente ofertado o imóvel, ainda que tal bem possua todos os requisitos do bem de família, considerando, pois, que a vedação da oferta ou mesmo a limitação desta, caracterizaria um óbice ao que delineia o direito de propriedade que lhe confere poder para usar, gozar e dispor livremente do imóvel, como prevê o art. 1.228. do CC.

Evocam ainda o artigo 3º, V, da Lei nº 8.009/90, onde se lê que a impenhorabilidade não é oponível “na execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.

Assim, concluem que após a entrega do bem como garantia real, ainda que em contratos de terceiros, a alegação posterior de impenhorabilidade do bem de família seria má-fé contratual, acrescentando que não pode o indivíduo se aproveitar da própria torpeza, e invocar a proteção do bem.

Entretanto, data vênia, mas tal entendimento não se mostra o mais acertado, a vista que quando se trata do instituto jurídico do bem de família tem que se ter em mente que o seu objetivo é proteger a habitação da família, família esta que a teor do art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988 é elevada à condição de base da sociedade e merecedora de proteção especial do próprio Estado.

Nesta lógica, o bem de família é na verdade um Direito, não se confundindo com a residência sobre o qual incide.

Segundo as lições de Álvaro Villaça Azevedo (apud GONÇALVES, 2011 p.581):

“o bem de família é um meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde ela se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade”.

A instituição do bem de família, nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira (2004, p.557-8):

“é uma forma da afetação de bens a um destino especial que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio”.

Assim, o Direito e mesmo a essência do instituto ora em debate repousa na instituição familiar e no seu seio, divorciado da figura do imóvel propriamente dito, avistado como o teto e quatro paredes.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Aliás, é esta instituição familiar, e não propriamente o imóvel que é amparada pelo direito universal de moradia, que versa a Constituição Federal e mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por conseguinte, a impenhorabilidade do bem de família, busca exatamente tutelar o intocável direito à moradia. Assim, tal proteção ao bem de família se revela claramente uma norma de ordem pública, ultrapassando qualquer barreira contratual e/ou de consentimento, sendo sequer renunciável, já que tal direito quando ponderado sob a perspectiva de moradia se equipara de forma congênere aos direitos fundamentais assegurados pela norma constitucional e mesmo por dispositivos supralegais.

Logo, a renúncia ao bem de família não deve ser permitida nem reconhecida, sob pena de tal ato ser claramente atentatório contra princípios basilares do ordenamento jurídico.

Seria permitir, por vias transversas, a execução de forma mais onerosa ao devedor, mais que isso, seria conceder a qualquer pessoa o direito de burlar princípios de ordem pública.

Neste sentido é o entendimento jurisprudencial:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. PRELIMINAR. ART. 535, II, DO CPC. OMISSAO. INEXISTÊNCIA. ART. 512. DO CPC. SUPRESSAO DE INSTÂNCIA. AUSÊNCIA. IMÓVEL RESIDENCIAL. BEM DE FAMÍLIA. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. CONHECIMENTO A QUALQUER TEMPO E GRAU DE JURISDIÇAO. IMÓVEL DOADO AOS FILHOS DO EXECUTADO EM USUFRUTO DA EX-CÔNJUGE. FRAUDE À EXECUÇAO AFASTADA. 1. Não foi omisso o acórdão recorrido quanto à alegada supressão de instância, pois a Corte local entendeu que a tese da impenhorabilidade do bem de família é matéria de ordem pública, suscitável a qualquer tempo e grau de jurisdição. Violação do art. 535. do CPC afastada. 2. A impenhorabilidade do bem de família é matéria de ordem pública que não pode, nem mesmo, ser objeto de renúncia por parte do devedor executado, já que o interesse tutelado pelo ordenamento jurídico não é do devedor, mas da entidade familiar, que detém, com a Carta Política de 1988, estatura constitucional. Precedentes. Ausência de contrariedade ao art. 512. do CPC.3. O fato de o recorrido já não residir no imóvel não afasta sua impenhorabilidade absoluta, já que foi transferido, no caso, para seus filhos com usufruto de sua ex-esposa. Como a lei objetiva tutelar a entidade familiar e não a pessoa do devedor, não importa que no imóvel já não mais resida o executado.4. Se o imóvel é absolutamente impenhorável e jamais poderia ser constrito pela execução fiscal, conclui-se que a doação do bem aos filhos do executado com usufruto pela ex-esposa não pode ser considerado fraude à execução, pois não há a possibilidade dessa vir a ser frustrada em face da aludida alienação.5. Recurso especial não provido.

(REsp 1059805/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, DJe de 2.10.2008) (grifamos).

RECURSO ESPECIAL - EMBARGOS DE TERCEIRO - DESCONSTITUIÇAO DA PENHORA DO IMÓVEL NO QUAL RESIDEM OS EMBARGANTES - LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM - MEMBROS INTEGRANTES DA ENTIDADE FAMILIAR - NOMEAÇAO À PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA - INEXISTÊNCIA DE RENÚNCIA AO BENEFÍCIO PREVISTO NA LEI Nº8.00999/90 - MEDIDA CAUTELAR - EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL - JULGAMENTO DESTE - PERDA DE OBJETO - PREJUDICIALIDADE - EXTINÇAO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO. 1. - Os filhos da executada e de seu cônjuge têm legitimidade para a apresentação de embargos de terceiro, a fim de desconstituir penhora incidente sobre o imóvel no qual residem, pertencente a seus genitores, porquanto integrantes da entidade familiar a que visa proteger a Lei nº 8.009/90, existindo interesse em assegurar a habitação da família diante da omissão dos titulares do bem de família. Precedentes (REsp nºs 345.933/RJ e 151.238/SP). 2. - Esta Corte de Uniformização já decidiu no sentido de que a indicação do bem de família à penhora não implica renúncia ao benefício garantido pela Lei nº 8.009/90. Precedentes (REsp nºs 526.460/RS, 684.587/TO, 208.963/PR e 759.745/SP). 3. - Recurso conhecido e provido para julgar procedentes os embargos de terceiro, afastando a constrição incidente sobre o imóvel, invertendo-se o ônus da sucumbência, mantido o valor fixado na r. sentença. (...)

(REsp 511.023/PA, Relator Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, DJ de 12.9.2005) (grifamos).

Assim, clara está a impossibilidade de renúncia à proteção do bem de família, ainda que a oferta tenha sido expressa pelo garantidor.

Por outro lado, ainda que se considerasse válida e eficaz a renúncia ao direito de impenhorabilidade do bem de família pelo garantidor de contrato de terceiros, existe um outro ponto essencial à ser observado para o manejo da execução da penhora.

Trata-se do benefício auferido pela entidade familiar, com o contrato assegurado por via da hipoteca, situação que deve ser analisada criteriosamente de acordo com o caso concreto.

Isto é, a admissão ou não da penhora sobre o bem hipotecado, depende do objetivo da garantia concedida, sendo que apenas será acolhida a garantida da hipoteca e admitida sua execução, se esta foi contraída em benefício da entidade familiar.

Insta aclarar aqui neste ponto que, não basta o benefício de um dos integrantes da entidade familiar, como por exemplo a pessoa do garantidor signatário; tal benefício deve reverter à toda a entidade familiar, já que a proteção do bem de família no ápice da sua essência, é um direito individual de cada um que estancia sobre o seu manto.

Logo, a garantia hipotecária prestada à terceiros, sem a comprovação do benefício da entidade familiar não é capaz de convergir à uma penhora do imóvel entregue em garantia.

Aliás este é o entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça, vejamos pelos arestos jurisprudências colacionados:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE BEM CONSIDERADO COMO DE FAMÍLIA. HIPOTECA CONSTITUÍDA PELO COMPANHEIRO DA EMBARGANTE COMO GARANTIA DE DÍVIDA DA PESSOA JURÍDICA DA QUAL COMPÕE O QUADRO SOCIETÁRIO. IMPENHORABILIDADE. NÃO INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 3º, V, DA LEI N. 8.009/90. ÔNUS DA PROVA DO EXEQUENTE. 1. Segundo o entendimento dominante da Segunda Seção, é impenhorável o bem de família dado em hipoteca como garantia de dívida contraída por terceiro. 2. A exceção à garantia do direito à habitação, corporificada na Lei 8.009/90, prevista no inciso V do art. 3º da Lei n. 8.009/90, incide quando o bem é dado em garantia de dívida da própria entidade familiar. 3. As razões articuladas no agravo não infirmam as conclusões expendidas na decisão agravada. 4. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

(Processo: AgRg no REsp 1292098 SP 2011/0255463-1 Relator(a): Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO Julgamento: 14/10/2014 Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA Publicação: DJe 20/10/2014. (grifei)

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DUPLICATAACEITA. CAUSA DEBENDI. REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7.IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DADO EM HIPOTECA PARAGARANTIR DÍVIDA DE TERCEIRO. NÃO APLICAÇÃO DA EXCEÇÃO PREVISTA NOART. 3º, INCISO V, DA LEI N. 8.009/90.1. A discussão acerca da causa debendi subjacente à emissão de duplicata mercantil encontra óbice na Súmula 7/STJ. Ademais, a jurisprudência da Casa vem afirmando, de forma reiterada, que, havendo aceite, de regra, o aceitante se vincula à duplicata, afastada a possibilidade de investigação quanto ao negócio causal.2. O caráter protetivo da Lei n. 8.009/90 impõe sejam as exceções nela estabelecidas interpretadas restritivamente. Nesse sentido, a exceção prevista no inciso V do artigo 3º da Lei 8.009/90 abarca somente a hipoteca constituída como garantia de dívida própria do casal ou da família, não alcançando aquela que tenha sido constituída em garantia de dívida de terceiro.3. Recurso especial parcialmente provido.

(Processo: REsp 997261 SC 2007/0243853-1 Relator(a):Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO Julgamento: 15/03/2012 Órgão Julgador:T4 - QUARTA TURMA Publicação: DJe 26/04/2012.(grifei).

Conclui-se no entanto, que a renúncia ao direito de impenhorabilidade do bem de família em garantia de contratos de terceiros, é inválida, ou melhor ineficaz, ainda que expressamente realizada, frente à frontal violação às garantias constitucionais que permeiam a dignidade da pessoa humana, sendo imperioso que a norma de ordem pública, sobreponha a vontade do garantidor.

Outrossim, ainda que considerada eficaz a renúncia à direito de impenhorabilidade do bem de família, esta somente poderá ser admitida se comprovado o benefício da entidade familiar no negócio jurídico que deu causa à oferta da garantia hipotecária.


Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

Lei nº 8009/90. Impenhorabilidade do bem de família. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8009.htm. Acesso em: 06/07/2016.

Lei nº 10.406/02. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 06/07/2016.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família Internacional – necessidade de unificação. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2007.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualização de Tânia Pereira da Silva. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 5.

Sobre o autor
Eusébio José Francisco Pereira

Advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, Pós graduando em Direito Processual Civil - (PUC MINAS), Sócio fundador do escritório jurídico PEREIRA & OLIVEIRA ADVOCACIA, com sede em Uberlândia-MG.http://www.pereiraeoliveira.adv.br

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!