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Estatuto constitucional das relações contratuais

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Agenda 26/11/2016 às 15:50

Propõe-se o estudo dos novos princípios contratuais: autonomia privada, boa-fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual, que formam o estatuto constitucional das relações contratuais.

 

  1. Introdução

 

 

Quatro são os novos princípios contratuais (para alguns novos paradigmas contratuais, novas diretrizes contratuais ou nova teoria contratual): Autonomia Privada; Boa Fé Objetiva; Função Social do Contrato; Justiça Contratual, que formam o estatuto constitucional das relações contratuais.

 

Explica-se: como é sabido, a excessiva rigidez orientadora das relações obrigacionais tem sido paulatinamente substituída por novos paradigmas voltados à construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana, mesmo que isso importe na flexibilização, reavaliação ou revisitação dos parâmetros obrigacionais até então adotados.

 

Nisso há uma forte aproximação principiológica do CDC e do CC2002, todavia, no CDC, a principiologia é aplicada de forma mais incisiva e com maior rigor, eis que visa reequilibrar a relação jurídica de consumo, defendendo o consumidor (princípio da proteção integral do consumidor), ante o fato de ser este a parte vulnerável da relação e ante a situação de assimetria própria da relação jurídica de consumo. Por isso é direito básico do consumidor a segurança[1] (Art. 6º I CDC), a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações (art. 6º II CDC), a informação[2] (art. 6º III CDC) e a proteção contra publicidade, métodos comerciais, práticas e cláusulas desleais ou abusivas (art. 6º IV CDC). Em outras palavras, a assimetria da relação jurídica, bem como a essencialidade do bem ou serviço perseguido serão fatores que fortalecerão a aplicação dessa principiologia. Lado outro, nos contratos civis paritários e livremente negociados entre as partes, menor será o dirigismo contratual (art. 421, parágrafo único, CC e art. 3º VIII da Lei da Liberdade Econômica).

 

 

Ressalte-se que os princípios da liberdade contratual, da força obrigatória (pactua sunt servanda) e da relatividade contratual ainda persistem, só que agora somados a essa nova principiologia lastreada na CF88. Não se trata de revisar as categorias tradicionais, mas de acolher uma racionalidade nova. Em outras palavras, vivencia-se uma hipercomplexidade, uma amálgama entre os princípios clássicos e contemporâneos, como modelos que convivem simultaneamente, interagindo em uma linha de ponderação de interesses.

 

Assim, os princípios abaixo analisados, notadamente a boa fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual, permitem a aplicação dos princípios constitucionais nas relações privadas, notadamente a dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade material. A despatrimonialização e a repersonalização do direito privado, representada pela célebre opção do “ser” em detrimento do “ter”, permitem o influxo da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade material nas relações contratuais, através dos princípios da boa fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual. Enfim, consagram um direito privado constitucionalizado.

 

Sabemos que o CC2002 traz três diretrizes gerais: socialidade, eticidade, operabilidade. A primeira é fonte da função social do contrato. A segunda é fonte da boa fé objetiva. A operabilidade nada mais é do que a aplicação justa e eficiente do direito ao caso concreto, realizando o direito na sua concretude.

 

Analisemos então cada um dos novos princípios contratuais, aplicáveis, na verdade, ao direito civil como um todo e direito do consumidor. Aplicável ainda ao direito do trabalho[3], direito administrativo[4], e também no direito processual civil (art. 5º NCPC) e direito processual penal (art. 3º CPP c/c art. 5º NCPC)[5].  

 

 

 

2. Autonomia Privada

 

Difere da autonomia da vontade. Autonomia da vontade tem conotação subjetiva, psicológica, dizendo respeito à possibilidade reconhecida ao titular de celebrar, ou não, negócios jurídicos. Já a autonomia privada marca o poder da vontade, sendo concernente ao poder dos particulares de regular, pelo exercício da própria vontade, o conteúdo e disciplina dos negócios que resolverem entabular. Com base na autonomia da vontade, o vínculo contratual era concebido como resultado da simples fusão entre manifestações de vontade. Em sede de autonomia privada, admite-se a vontade como suporte fático, porém acrescida de regulamentação legal, a fim de que realize interesses dignos de tutela, daí o importante papel da lei (através de normas supletivas ou imperativas) e do juiz (na aplicação das cláusulas gerais).

 

Seu fundamento é o princípio da liberdade. Mas uma liberdade qualificada, não meramente formal. Em outras palavras, o exercício da autonomia privada deve ser efetivo, e não meramente formal. A autonomia privada é forjada na liberdade do ser humano de edificar a sua própria vida, exercendo o seu consentimento em suas escolhas existenciais e no desenvolvimento das relações patrimoniais. O contrato é instrumento de realização da pessoa humana no âmbito patrimonial. Por isso que nos contratos de consumo, há uma maior proteção à parte vulnerável (o consumidor), exatamente em razão da mitigação de sua autonomia privada. Na mesma trilha, o CC2002 também traz proteção ao aderente, quando regula os contratos civis de adesão, e protege ainda outros contratantes, dependendo do contrato.

 

A autonomia privada não é absoluta (afinal, tudo que é juridicamente garantido, é juridicamente limitado), encontrando limites em normas de ordem pública, como aquelas que regulam a boa fé objetiva, a função social do contrato e a justiça contratual, adiante analisadas. Há quem defenda que esses princípios não limitam a autonomia privada, ao contrário, a reforçam, fortalecem e a justificam constitucionalmente. Em outras palavras, esses princípios valorizam e legitimam a autonomia privada, equilibrando aquilo que a realidade tratou de desigualar, afinal o poder da vontade de uns é maior que o de outros.

 

Por fim, ressalte-se que há duas espécies de autonomia privada: a patrimonial e a existencial. A proteção à autonomia nas questões existenciais é muito mais intensa, já que as decisões neste campo situam-se numa esfera que deve ser protegida de intervenções externas. Diversamente da autonomia contratual, as liberdades existenciais não são meros instrumentos para a promoção de objetivos coletivos, por mais valiosos que o sejam, afinal, cabe ao ordenamento tutelar a esfera de autonomia privada do cidadão na sua dimensão mais relevante: o poder da pessoa humana de se autogovernar, enfim, de fazer escolhas existenciais e viver de acordo com elas, desde que não lese direitos de terceiros.[6] As situações jurídicas subjetivas existenciais não têm propriamente função social, porque são função social. Assim, percebemos a incidência de uma tutela qualitativamente diversa nas situações subjetivas existenciais e patrimoniais. Nestas, a vontade sofre limitações diante da principiologia constitucional, para garantir um tratamento materialmente igualitário às pessoas e o atendimento dos fins sociais da relação contratual. Já nas situações existenciais, a vontade tem trânsito garantido, mas a sua relevância ou não no caso concreto depende da ponderação entre a autonomia e os demais direitos da personalidade envolvidos, eis que o conteúdo mínimo da dignidade é irrenunciável.

 

 

 

3. Boa fé Objetiva

 

Ao contrário da boa fé subjetiva (consciência de estar atuando conforme o direito) a boa fé objetiva constitui cláusula ética, proba e moral (diretriz geral da eticidade), um padrão de conduta pautada na lealdade, confiança e legítima expectativa, presente em toda e qualquer obrigação, independente da vontade de seus partícipes. O fundamento de tal princípio é a solidariedade social e segurança jurídica. É por isso que se diz que a obrigação hoje é complexa (em razão da boa fé objetiva) e um processo que se desenvolve rumo ao adimplemento (direcionado à consecução dos seus fins, através de uma relação solidária e cooperativa entre as partes, pautada que é pelos princípios da boa fé objetiva e função social do contrato), tendo três fases: pré-negocial, negocial e pós-negocial. A boa fé objetiva pode ser traduzida no binômio: lealdade e confiança. As partes devem atuar de forma proba, ética e leal, respeitando as legítimas expectativas geradas pela relação negocial. A boa fé objetiva compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade, retidão e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança e expectativa da outra parte. A conduta esperada é a conduta devida, de acordo com parâmetros sociais. Possui três funções (visão tridimensional da boa fé objetiva): interpretativa; limitativa ou de controle; integradora ou integrativa.

 

A primeira função (interpretativa – art. 113 do CC e art. 4º III CDC) significa que o interprete utilizará como critério de interpretação dos negócios jurídicos a ética da situação. Referido princípio atua como orientador do sentido da declaração de vontade, bem como no processo de fixação do conteúdo, assumindo assim feição interpretativa-integrativa. Não se trata tão somente de analisar como atuaria no negócio interpretado, o homem de sensibilidade e cuidado mediano/normal. Não se pretende tão somente investigar a vontade negocial de cada uma das partes isoladamente considerada, mas antes a vontade que todas as partes teriam consensualmente. Em outras palavras, trata-se da reconstrução de um consenso negocial hipotético, com apelo à boa fé, encarando as partes como pessoas sérias e honestas próprias de seu meio e nível sociocultural e profissional (art. 113 § 1º V CC). Daí que no tocante às relações de consumo, deve-se analisar a concepção coletiva de consumidor, mas sem olvidar daqueles grupos de consumidores hipervulneráveis: crianças e adolescentes, idosos, deficientes, analfabetos, doentes, etc.

 

A segunda função (limitativa ou de controle – art. 187 do CC e art. 51 IV do CDC) diz respeito ao abuso do direito (seja obrigacional, contratual, real, familiar, etc). Assim, comete abuso do direito aquele que ao exercê-lo excede manifestamente (uso ilegítimo, anormal, desproporcional, desarrazoado) os limites impostos pela boa fé objetiva (lealdade e confiança), bons costumes[7] ou pelos fins sociais e econômicos (função sócio-econômica). O abuso de direito é espécie de ato ilícito, independente de culpa, pois adota-se o critério objetivo-finalístico[8]. Sua inobservância pode levar à nulidade (art. 166 II e VI CC), quando o abuso se der na gênese do negócio, ou sua ineficácia (2035 pu CC) quando o abuso se der supervenientemente.

 

A doutrina costuma apontar como espécies do abuso do direito[9]: venire contra factum proprium[10][11] (proibição do comportamento contraditório[12], vedando que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior, geradora de uma justa expectativa na outra parte); supressio[13] (situação do direito que, não tendo, em certas circunstâncias, sido exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por violar a confiança gerada na outra parte, sendo, portanto, uma espécie de proibição do comportamento contraditório, caracterizada pelo fato que a conduta inicial consiste em um comportamento omissivo); surrectio (se a supressio é a perda de determinada faculdade jurídica em razão de um prolongado comportamento omissivo de seu titular, a surrectio é o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício prolongado por outrem de um determinado direito, ou seja, é o outro lado da supressio, o que surge dela, em favor da outra parte); tu quoque[14] (também espécie de proibição do comportamento contraditório, invocação de uma situação ou comportamento que a própria parte outrora violou ou deixou de adotar; nada mais é do que a proibição de se valer da própria torpeza); duty to mitigate the loss[15][16] (dever de mitigar o próprio prejuízo); substancial performance[17][18] (inadimplemento mínimo - quando há um adimplemento substancial da obrigação, inviabilizando a resolução, mas não impedindo a cobrança do crédito, servindo, ainda, como limite da exceção do contrato não cumprido[19]). Em outras palavras, veda-se o desleal exercício do direito (inadimplemento mínimo), desleal não exercício do direito (venire, supressio e surrectio) e a desleal constituição do direito (tu quoque), além do dever de mitigar o próprio prejuízo.

 

Na terceira função (integrativa ou integradora – art. 422 do CC e art. 4º III CDC), a boa fé objetiva tem o condão de criar deveres anexos (ou deveres de conduta: proteção, informação e cooperação), anexando-se a toda e qualquer relação obrigacional como um padrão de comportamento, independentemente da vontade das partes. O não cumprimento desses deveres anexos gera uma espécie de inadimplemento, chamada de violação positiva do contrato, independente de culpa[20][21]. O dever de proteção[22] se traduz no comportamento tendente a salvaguardar o parceiro negociante de toda e qualquer lesão (ou ameaça de lesão) a direitos juridicamente relevantes, que derivem (que tenham sua causa) no negócio pactuado. O dever de informação[23] obriga o negociante a conceder ao outro amplo conhecimento acerca dos fatos relacionados ao objeto do negócio, para que todas as decisões possam ser fruto de uma vontade livre e real - livre consentimento informado ou consentimento genuíno. O dever de cooperação[24] pressupõe que as partes não pratiquem atos capazes de frustrar as finalidades materializadas no negócio, praticando sim atos que conduzam, permitam e facilitem o adimplemento, da forma menos gravosa ao devedor e da forma mais eficiente ao credor. Traduz a ideia de que os contratantes não são adversários, mas sim parceiros, devendo ambos cooperarem para a realização do fim contratual. Ressalte-se que os deveres anexos estão presentes tanto na fase pré-negocial[25][26]  como na fase pós-negocial[27], configuradores de uma responsabilidade extracontratual.

 

Por fim, é a boa fé objetiva (mas também a função social) que consagra a teoria das relações contratuais de fato[28] ou conduta socialmente típica (ou relação paracontratual), derivadas do contato social. Explica-se: Esta nova categoria dogmática tem como um dos seus principais alicerces a idéia de que, na contemporânea civilização de massas, segundo as concepções do tráfico jurídico, existem condutas geradoras de vínculos obrigacionais, fora da emissão de declarações de vontade que se dirijam à produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de fato. Quer dizer, a utilização de bens ou serviços massificados ocasiona algumas vezes comportamentos que, pelo seu significado social típico, produzem as conseqüências jurídicas de uma caracterizada atuação negociatória, mas que dela se distinguem. Decorre da doutrina exposta que as relações contratuais se realizam através de duas formas típicas: uma delas é o negócio jurídico, designadamente o contrato – no qual a aparência de vontade e as expectativas criadas podem ceder, diante da falta de consciência da declaração ou incapacidade do declarante; a outra reporta-se às relações contratuais fáticas – onde a irrelevância do erro na declaração e das incapacidades (basta a capacidade de reconhecer o significado social típico) se justifica por exigências de segurança, de celeridade e demais condicionalismos do tráfico jurídico.

 

Fenômeno muito comum nos contratos eletrônicos, em razão da despersonalização do contrato, onde lateralmente à autonomia privada, posta-se a aparência (criada pelo ofertante) e a confiança (despertada pela aceitação), reforçando a segurança jurídica como expectativa de cumprimento.

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Como dito, no tocante às relações contratuais de fato, sua base de sustentação é a boa fé objetiva. O princípio da boa-fé é condição para a própria formação das relações contratuais de fato (derivada de contato social). É a boa-fé que preenche o espaço vazio deixado pela ausência de vinculação volitiva dos contratos fáticos, alheios à existência de negócio jurídico fundante. A função primordial da aplicação do princípio da boa-fé na seara dos contratos é a de compatibilizar a lógica dedutiva do ordenamento jurídico às exigências éticas e aos padrões de conduta assumidos pela sociedade hodierna.

 

Soma-se isso à necessária objetivação do contrato. Não é a manifestação de vontade que define a natureza contratual de uma relação jurídica, mas sim as condições do tráfego social, chanceladas pelos comportamentos objetivamente considerados segundo valores do ordenamento jurídico que configuram o contrato como tal.

 

Lado outro, há de se apartar e desvincular os conceitos de contrato e relação jurídica. A complexidade das vinculações mantidas na sociedade dos dias atuais demanda uma releitura do instituto contratual, na medida em que a sua definição pautada no “negócio jurídico bilateral”, dependente de, “no mínimo, duas declarações de vontade, visando a criar, modificar e extinguir obrigações”, não explica muitas das relações estabelecidas no dia a dia[29], o que  demonstra a imperiosidade do desprendimento entre os conceitos de contrato e negócio jurídico.

 

Isso quer dizer, em uma palavra, que determinadas condutas humanas, porque relevantes à sociedade e porque vinculantes a outros sujeitos, carregam em si carga axiológica (reconhecida pelo próprio ordenamento) suficiente a constituir vínculos de natureza contratual. O conceito basilar da relação contratual, segundo o qual esta seria definida como acordo de vontades como expressão máxima da autonomia privada, é, agora, posto à prova. Já se admite a celebração de contrato, ou melhor, a vinculação de natureza contratual entre sujeitos pela simples realização de condutas típicas, mesmo que haja expressa negativa na pretensão de atrelamento com características de contrato[30]. E tal se deve, fundamentalmente, a justificativas de duas ordens: primeiro, porque a própria racionalidade fluída das relações cotidianas exige uma reformulação das relações contratuais (como exemplo típico têm-se os contratos derivados do tráfego de massa), e, em segundo lugar, porque o Direito passa a considerar (e a proteger) o cidadão, antes indiferenciado, na condição de sujeito qualificado e concreto, carente de necessidades, inserido em cotidianos complexos, de relações mais intricadas ainda. É preciso reconhecer, na atualidade, a existência de relações contratuais que não se enquadram na tradicional definição de contrato trazida pelo ordenamento, demonstrando-se de que forma o contato social pode fazer surgir contratos alheios à chancela (até então indispensável) da autonomia privada. E essa é uma incumbência da teoria das relações contratuais fáticas: a corrente doutrinária que concebe a possibilidade de se formarem relações contratuais mesmo sem a expressão da manifestação de vontade dos contratantes, e, indo mais além, até mesmo de existirem contratos em detrimento da inequívoca vontade contrária de celebração pelos indivíduos.

 

A explicação para tal concepção está nas condutas socialmente típicas, ou seja, comportamentos que, de per si, seriam suficientes a ensejar uma vinculação de natureza obrigacional, deixando-se a expressão da vontade em um segundo plano ou, até mesmo, totalmente desconsiderada. Essa nova conjuntura contratual é derivada, fundamentalmente, da efemeridade e do dinamismo de que está dotada a maioria das relações sociais do dia a dia (especialmente as de ordem contratual), cujos vínculos essenciais já não podem mais ser explicados pela mera consideração de se haver (ou não) expressão da vontade autônoma entre os indivíduos, agora contratantes.

 

Assim, os contratos passariam a ter origem em dois fundamentos basilares: i) os negócios jurídicos bilaterais, embasados na expressão da vontade e na máxima da autonomia privada; e ii) as condutas socialmente típicas, deflagradas por dois ou mais centros de interesses. É verdade que o contato social não se refere a qualquer vínculo interprivado mantido por sujeitos determinados no cotidiano. Para que um contrato fático surja neste contexto, é preciso que haja uma potencialidade negocial, vinculada à concatenação dos centros de interesses dos partícipes da relação jurídicas, imersos em um ambiente de condições voltadas ao comércio jurídico ou à prestação de serviços. Trata-se, portanto, de um “contato social qualificado”.

 

Percebe-se que as peculiaridades do cont(r)ato, neste contexto, estão intimamente relacionadas à lógica da vinculação em potencial. É preciso que haja a confluência de condutas em um campo propício à consolidação de um contrato propriamente dito, mesmo que não haja vontade direcionada a tal propósito. A intensidade do contato, dentro desse âmbito específico de potencialidade negocial, traz uma gama de interesses latentes e pode fazer com que as condutas dos centros de interesses se coordenem e sejam típicas, de maneira a desempenharem concatenadas, uma função social, configurando, assim, contrato sem negócio jurídico.

 

Conclui-se que os contratos sem negócio jurídico são, em síntese, a essência máxima das relações de contato social. Delas derivam vínculos eminentemente contratuais, nos quais é desarraigada a noção tradicional de imprescindibilidade do aspecto volitivo, entendido este, aqui, como a intencionalidade dos contratantes expressa e direcionada propriamente à conclusão do liame contratual. Enquanto a vontade seria elemento inerente à própria natureza do negócio jurídico, há de se reconhecer a existência de contratos sem negócio jurídico fundante, ou seja, relações contratuais em que não se vislumbra a existência de manifestação de vontade que não aquela relacionada à própria prática da conduta socialmente típica.

 

A perspectiva contemporânea desses contratos fáticos, contudo, trouxe à tona um papel de protagonismo assumido pelo princípio da boa fé. Como elemento intimamente ligado à figura do contrato, este princípio parece ter ganhado ainda mais destaque quando diante de relações contratuais desvinculadas da expressão volitiva dos contratantes. Chega-se a se reconhecer que é possível vislumbrar a boa-fé como pressuposto de existência das relações contratuais fáticas.

 

            Veja-se, portanto, que as relações contratuais derivadas de contato social transcendem os limites das relações pré-contratuais, estendendo-se aos vínculos socialmente relevantes e dotando de natureza contratual todos os liames que apresentam, como características fundamentais, a coordenação de centros de interesses, envoltos em uma condição de potencialidade negocial.

 

Já em relação à particularização das condutas sociais típicas ao ponto de formarem legítimas vinculações contratuais, o que se conclui é que as relações derivadas do contato social atingem o status contratual se imerso em um conjunto de fatores determinados, dentre os quais se destacam: i) a relevância social da relação; ii) a intensidade do contato; iii) a incidência protagonista do princípio da boa-fé; iv) a potencialidade negocial; v) e a coordenação típica de centros de interesses.

 

Não é o contato social em si que qualifica a contratualidade do vínculo estabelecida entre os sujeitos relacionados. Para além disso, o contato social só ganha ares contratuais se imerso em uma gama de fatores particularmente considerados, objetivamente determinados – contato social qualificado: a intensidade do contato, combinada com a relevância social do liame, imerso em um contexto de coordenação típica de centros de interesses, adjetivado pela incidência principiológica da boa-fé e da função social do (agora) contrato.

 

A potencialidade negocial também se apresenta como fator diferencial à qualificação do contrato fático. A tipicidade da conduta social faz com que as relações de contato social transmutem-se em legítimos contratos (fáticos). A partir daí, todos os efeitos contratuais configurados pelo ordenamento jurídico passam a incidir, também, sobre essa figura.

 

Destoa-se do superado mito da autonomia privada, para dotar de objetividade os contornos das relações contratuais. É preciso distinguir o conceito de contrato e negócio jurídico, a partir da incidência do conceito de volição em cada uma dessas figuras, isto é, enquanto para o negócio jurídico a vontade é elemento intrínseco à sua formação estrutural, no contrato fático a sua ausência não reflete prejuízos significativos.

 

Podem ser elencados, portanto, três elementos capazes de suscitar uma relação contratual, sem negócio jurídico fundante, a partir do contato social qualificado: i) a existência de dois ou mais centros de interesses; ii) a coordenação das condutas entre os centros de interesses que deflagram uma mínima unidade de efeitos; iii) o cumprimento da função social da atividade desenvolvida, que lhe dá legitimidade. Nesse particular, cabe ao princípio da boa-fé direcionar a coordenação das condutas dos partícipes da relação, fixando um vínculo de natureza contratual. 

 

Uma vez preenchidos esses requisitos, há a legítima passagem dos indivíduos de uma convivência genérica, para situações de contato interprivado estreito, fundamentalmente contratual. Enfim, observa-se uma reformulação do conceito de contrato que seja adequada à realidade social contemporânea. O que se observa é um elastecimento do rol das fontes obrigacionais, para fazer constar o contato social como legítimo criador de relações contratuais de fato.

 

 

 

4. Função Social do Contrato

 

Fala-se da função social (diretriz geral da socialidade) não só do contrato, mas também da propriedade, da família, da empresa, etc. O fundamento de tal princípio é a solidariedade social. Fala-se em função social de todo e qualquer negócio jurídico. Fala-se, portanto, na concepção social do contrato (funcionalização do contrato), afastando-se da ideia puramente individualista de outrora. Ante a diretriz geral da socialidade, passou-se a se enxergar o direito com uma visão social (ou visão funcional) – o direito como instrumento para a construção de uma sociedade livre, justa, igual e solidária. Toda sociedade tem um fim a realizar: a justiça, a paz, a ordem, a solidariedade e a harmonia da coletividade – enfim, o bem comum. E o direito é o instrumento de organização social para atingir essa finalidade. Em outras palavras, todo direito subjetivo está condicionado ao fim que a sociedade se propôs. Todo direito subjetivo deve ser exercido conforme sua finalidade social. Por isso se fala em direito-função. Assim, o titular de um direito, ao se valer dele para satisfazer seus interesses próprios, não deve sacrificar o interesse coletivo, devendo, portanto, conciliar o interesse individual à sua função social. Ou seja, o ordenamento jurídico só concederá legitimidade à persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais. Não se admitirá um direito ou seu exercício de forma anti-social. Resguardam-se os interesses individuais, desde que não haja ofensa ao interesse coletivo.

 

Assim, a função social implica no exercício de qualquer direito de acordo com os ditames constitucionais (sobretudo a justiça, a segurança e a dignidade), visando impedir, sobretudo, a violação a interesses metaindividuais e a dignidade da pessoa humana.

 

Uma observação é importante. Realmente o direito é instrumento para se alcançar uma sociedade mais justa, livre, igual e solidária. O direito deve ser instrumento de salvaguarda do bem comum e da dignidade da pessoa humana. O direito não pode ser exercido para malferir interesses individuais ou coletivos. Todavia, parte da doutrina aponta que o princípio da socialidade signifique o predomínio do social sobre o individual. Tal premissa, a meu ver, está incorreta. Para abandonar o individualismo do CC1916 não se precisa adotar o coletivismo. Em seu nome, não se pode invalidar, extinguir, minimizar ou desproteger todo e qualquer direito ou interesse individual. A plena realização do bem comum requer uma comunhão entre a plenitude da pessoa e da coletividade. Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916; ou dá preferência aos valores coletivos, promovendo a socialização dos contratos; ou, então, assume uma posição intermediária, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a adotada pelo legislador do Código Civil de 2002.

 

Em uma palavra. Não há predomínio do social sobre o individual. O que há é o reconhecimento de ambos os interesses (individuais e sociais). Qual deve prevalecer? Só o caso concreto dirá (diretriz da operabilidade/concretude), à luz da principiologia constitucional: dignidade da pessoa humana, igualdade material, solidariedade e justiça social, liberdade e autonomia, segurança jurídica e proteção da confiança, sem olvidar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, dentre outros.

 

Passemos a analisar especificamente a função social do contrato (art. 421 do CC – aplicável ao CDC por força do seu art. 7º), ressaltando que sua inobservância pode levar à nulidade (art. 166 II e VI CC) quando a violação à função social se der na gênese do negócio, ou sua ineficácia[31] (2035 pu CC) quando a ofensa à função social se der supervenientemente, na sua repercussão, ou melhor dizendo, na sua finalidade perante o corpo social em seu contexto histórico e cultural. Ademais, a violação da função social do contrato gera ato ilícito objetivo – abuso do direito (art. 187 CC).

 

O contrato deve ser concluído em benefício dos contratantes, todavia, sem conflito com o interesse social e coletivo. O contrato possui um interesse individual, mas induvidosamente também possui um interesse social. Novamente devemos fazer a observação citada acima. O CC2002 assumiu uma posição intermediária, combinando o individual com o social, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. O contrato não é instrumento dos interesses dos contratantes isoladamente considerados, eis que também é instrumento de realização das finalidades traçadas pelo ordenamento jurídico. O contrato permanece possuindo seus interesses individuais, agora somados a valores sociais. O contrato não é um fim em si mesmo, mas meio, instrumento de finalidades sociais e morais, e não apenas econômicas e individuais. O contrato não pode ser visto de forma abstrata, no sentido de servir somente à utilidade econômica das partes, pois deve ser visto de forma causal, cumpridor de uma função social. Ademais, não há razão alguma para se sustentar que o contrato deva atender tão somente aos interesses das partes que o estipulam, pois o contrato possui um conteúdo e um valor social – aquilo que uma sociedade justa, livre, igual e solidária espera desse negócio jurídico, ou seja, que venha a atender além do interesse individual, o bem comum. O contrato só se legitima se destinado a realizar, além dos interesses próprios de seus partícipes, também os interesses comuns da sociedade a qual pertencem. Todavia, o contrato possui um valor social, que não se sobrepõe aos interesses individuais. Não há predomínio do social sobre o individual. Há o reconhecimento de ambos os interesses (individuais e sociais). Em caso de conflito, qual deve prevalecer? Só o caso concreto dirá (diretriz da operabilidade/concretude), à luz da principiologia constitucional, citada acima: dignidade da pessoa humana, igualdade material, solidariedade e justiça social, liberdade e autonomia, segurança jurídica e proteção da confiança, sem olvidar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, somados à livre iniciativa e livre concorrência, valores sociais do trabalho e da família, proteção do meio ambiente e do consumidor, dentre outros.

 

A função social não coíbe a liberdade contratual, mas a legitima. Afinal, o contrato não tem o único fim de circulação de riquezas, mas também é instrumento de exigências maiores do ordenamento jurídico, como a justiça, a segurança, a livre iniciativa, o bem comum e a dignidade da pessoa humana. O contrato não é um átomo, mas um fato social que operacionaliza a realização de valores globais.

 

A função social possui uma eficácia interna (contratantes) e outra externa (terceiros). Como dito, o contrato é um fato social cujas consequências necessariamente alcançarão outras pessoas a princípio desvinculadas da relação jurídica. Assim, os contratantes têm o dever de proteção perante terceiros e à sociedade. Bem como os terceiros têm o dever de proteção perante os contratantes. Há uma via de mão dupla. Se o contrato não pode prejudicar terceiros, terceiros também não podem prejudicar o contrato.

 

Internamente[32][33] a função social do contrato visa tutelar a utilidade social que ostenta o contrato, não merecendo tutela quando o interesse perseguido não ostentar as exigências comunitárias de acordo com os parâmetros constitucionais. Visa ainda atender a não frustração dos interesses das partes contratantes, devendo o contrato ser mantido até a realização do fim almejado por seus partícipes (princípio da conservação do contrato), mas também sendo possível se pleitear a resolução do contrato que não mais atenda aos interesses de qualquer das partes e à sua função social e/ou econômica (princípio da não perpetuação do contrato sem fim social). Visa também assegurar contratos substancialmente equilibrados em que se atribua a cada um dos contratantes o reconhecimento de igual dignidade social. Enfim, busca a justiça interna do contrato, vedando condutas que ofendam preceitos de ordem pública, que sejam discriminatórias, abusivas ou antissociais, ou que coloquem um dos contratantes em situação de exagerada desvantagem. Garante-se, assim, que as contratações sejam justas e socialmente úteis, enquanto palco de prestígio de escolhas valorativas do sistema. Ainda internamente, não pode o contrato ofender a dignidade da pessoa humana, impedindo, assim, a coisificação da pessoa.

 

 

Externamente[34][35], temos que o contrato não pode ofender a interesses metaindividuais, também não pode prejudicar terceiros, tampouco ser ofendido por terceiros não contratantes.

 

Trata-se daquilo que se denominou chamar de tutela externa do crédito ou do contrato (eficácia transubjetiva do contrato), enfim, consagra-se uma releitura do princípio da relatividade do contrato.

 

Afinal, o contrato pode muitas das vezes ofender interesse metaindividuais ou os interesses e direitos de terceiros (terceiro ofendido).

 

Pode inclusive o contrato ser ofendido por terceiro (terceiro ofensor). Nesse caso, a função social externa não implica tornar as prestações de dar, fazer ou não fazer, exigíveis em face de terceiros (o que a relatividade impede), mas impõe a terceiros o respeito (dever jurídico coletivo de abstenção) à realização de obrigações anteriormente assumidas entre os contratantes (oponibilidade do contrato erga omnes), desde que esses terceiros tenham conhecimento (ou devessem ter) da existência do contrato. A atuação ilegítima de terceiros que induza o negócio jurídico ao inadimplemento caracteriza ato ilícito gerador de responsabilidade extracontratual. Todavia, ressalte-se que a oferta de condições contratuais mais vantajosas é própria da livre concorrência (art. 170 IV CF), como acontece na venda de produtos e na prestação de serviços (telefonia, bancos, seguros, planos de saúde, etc), não se podendo condenar a prática da melhor oferta (desde que lícita), sob pena de engessar a economia e desestabilizar o mercado. Todavia, se visar simplesmente esvaziar o contrato primevo sem qualquer justificativa legítima, ou então se valer de expedientes abusivos, ilegítimos e desleais, teremos a figura do terceiro ofensor e da concorrência desleal (art. 173 § 4º CF). Em outras palavras, é indispensável o cuidado com a distinção entre as situações de grave interferência ilícita nas relações negociais, suscetível de conduzir ao colapso o ambiente de confiança entre os parceiros, e uma situação de interferência contratual benigna e introduzida por meios lícitos, em que a oferta de condições contratuais mais vantajosas é própria da concorrência.

 

Enfim, a função social no aspecto interno visa impedir a violação da dignidade da pessoa humana, assegurar a justiça interna do contrato, afastando cláusulas discriminatórias, abusivas e antissociais, ou que coloquem um dos contratantes em situação de exagerada desvantagem, além de fomentar a conservação contratual, a não frustração dos fins contratuais, evitando, ainda, o aprisionamento dos contratantes a uma relação contratual que não atende aos interesses de qualquer das partes, tutelando, assim, a utilidade social que ostenta o contrato.  Lado outro, a função social no aspecto externo visa a proteção de interesses metaindividuais decorrentes do contrato, bem como visa tutelar os efeitos do contrato perante terceiros que não são partes, evitando, ainda, a conduta ilícita e abusiva de terceiros que repercutam nos contratos.

 

Ainda na função social externa, temos a consagração da teoria das redes contratuais[36], (que também decorre da boa fé objetiva), pois por força dessa teoria um contrato passa a ter efeitos sobre outro contrato com objeto e partes diversos. Essa teoria se dá quando há um vinculo finalístico e funcional entre dois ou mais contratos com fins e partes diversos, devendo, portanto, seus efeitos serem visualizados de forma conjunta. Em outras palavras, reconhece-se que dois ou mais contratos estruturalmente diferenciados podem estar unidos, formando um sistema destinado a cumprir uma função prático-social diversa daquela pertinentes aos contratos singulares individualmente considerados. Enfim, a pluralidade de relações jurídicas contratuais unidas em rede por uma mesma operação econômica, depreendem-se efeitos jurídicos interdependentes que são imputados aos contratantes integrantes da rede. Em síntese, contratos em rede são aqueles que, apesar de sua autonomia, reúnem-se por um nexo econômico funcional, em que as vicissitudes de um podem influir no outro, dentro da malha contratual na qual estão inseridos. Há quem defenda[37] que se deve partir do termo coligação contratual, para retratar o gênero das situações em que duas ou mais diferentes relações contratuais se encontram vinculadas, ligadas, promovendo alguma eficácia paracontratual, ou seja, alguma eficácia ao lado daquela que se desenvolve internamente ao contrato. Esta eficácia paracontratual, por sua vez, se justifica pelo reconhecimento duma operação econômica unificada que se sobrepõe àquela decorrente de cada um dos contratos que se encontram coligados. Em síntese, contratos coligados se caracteriza pela unidade de operação econômica e propósito comum, mediante uma pluralidade de relações contratuais interligada sob a perspectiva funcional e econômica. Sendo contratos coligados o gênero, suas espécies seriam: a) contratos coligados em sentido estrito (nexo decorrente da lei); b) contratos coligados por cláusula expressamente prevista pelos contratantes; c) contratos conexos (em que o nexo não decorre nem da lei nem de cláusula expressa), que se subdivide em c1) redes contratuais (nexo entre contratos que se destina à oferta de produtos ou serviços no mercado de consumo) e c2) contratos conexos em sentido estrito (nexo entre contratos destinados a outros segmentos do mercado). Quanto a extensão do vínculo, a coligação entre contratos se classifica em três espécies: i) vínculos de acessoriedade; ii) vínculos de dependência; iii) vínculos de coordenação. O vínculo de acessoriedade se dá quando determinado contrato serve para viabilizar ou incrementar o adequado adimplemento de um outro contrato que, na operação econômica supracontratual, mantem-se como principal. Também pode ocorrer um vínculo de dependência, quando a eficácia ou o propósito econômico de um determinado contrato depende de outro. Por fim, verifica-se o vínculo de coordenação. Nele há uma ordenação conjunta entre diferentes contratos, com ou sem um núcleo de poder contratual centralizado. Com efeito, a vinculação coordenada entre contratos por vezes se dá em moldes centrífugos, ao se expandir a partir de um centro comum, sem dele se separar e, noutras vezes, surgem em termos associativos, congregando esforços para o alcance de um objetivo comum que nenhum dos participantes alcançaria sozinho, sem que uma das partes exerça uma posição centralizadora. No tocante às redes contratuais, o fundamento para uma propagação eficacial, concernente à responsabilidade por danos causados ao consumidor, pode ser justificada a partir da solidariedade da cadeia de fornecimento prevista no CDC (arts. 7° parágrafo único, 25 § 1° e 34). A propagação eficacial em função da reparação de danos causados ao consumidor, atingindo integrantes da rede diversos daqueles que diretamente contrataram com o destinatário final, é justificada pela fixação geral da solidariedade passiva entre fornecedores. Todo aquele que participa da rede de fornecimento do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos danos causados ao consumidor. Nas contratações em rede também é possível sustentar uma contagiação de invalidades. Defeitos num contrato que conduzam a nulidade ou anulabilidade podem contagiar outros contratos a ele vinculados, o que se observa do teor do art. 51 do CDC que estabelece que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços, abrangendo, assim, toda a rede de fornecimento. Também se verifica nos contratos em rede situações de propagação de ineficácias. Cite-se, por exemplo, o poder de resolver vários contratos em rede em decorrência do inadimplemento em um deles. O exemplo é recorrente nas situações de resolução contratual por vícios do produto ou serviço em contratos de compra e venda ou prestação de serviços que se projetariam sobre o contrato de financiamento que viabilizou a aquisição.

 

É importante também apartar a boa fé objetiva da função social do contrato interna. Em alguns casos, embora presente internamente a boa fé objetiva, teremos um contrato internamente violador da função social, pela amplitude de seu conceito, mormente quando violador de valores sociais outros que não a lealdade e confiança. Muitas das vezes os contratantes atuam com boa fé objetiva, mas internamente o contrato não atenderá a função social, como o caso do contrato de restrição aos direitos da personalidade gravemente violador da dignidade da pessoa humana.

 

 Ambos decorrem do princípio da solidariedade social. A boa fé objetiva estabelece uma cláusula ética nos contratos (eticidade). A função social consagra valores sociais ao contrato (socialidade). A boa fé objetiva só possui eficácia interna, quando a função social possui também eficácia externa.

 

 Na verdade, perceberemos que a função social interna é instrumentalizada pela boa fé objetiva. Em outras palavras, a boa fé objetiva serve de instrumento de concretização do aspecto interno da função social. Conclui-se que a boa fé objetiva e a função social do contrato, embora com características próprias, andam juntas, implicando eticidade e socialidade aos contratos.

 

            É com base na função social - perspectiva funcional do contrato - que se pode trabalhar com a análise econômica do direito. Tal doutrina tem como pressuposto o aumento do grau de previsibilidade e eficiência das relações intersubjetivas, próprias do Direito, a partir da utilização de postulados econômicos para aplicação e interpretação de princípios e paradigmas jurídicos. Com efeito, a análise econômica do direito não pretende, por óbvio, submeter as normas jurídicas à economia, mesmo porque o Direito não existe para atender exclusivamente aos anseios econômicos. Por outro lado, visa à aproximação das normas jurídicas à realidade econômica, por meio do conhecimento de institutos econômicos e do funcionamento dos mercados. A interação das duas ciências é o seu fim, não a exclusão de uma pela outra. Assim, a regulamentação jurídica pode influenciar empreendimentos econômicos e promover o desenvolvimento e a mudança social[38].

A análise econômica do direito permite medir, sob certo aspecto, as externalidades do contrato (impactos econômicos) positivas e negativas, orientando o intérprete para o caminho que gere menos prejuízo à coletividade, ou mais eficiência social. A coletividade deixa de ser encarada apenas como a parte fraca do contrato e passa a ser vista como a totalidade das pessoas que efetivamente ou potencialmente integram um determinado mercado de bens e serviços, como no caso do crédito. Dessa forma, a análise econômica do direito aposta, por exemplo, no efetivo cumprimento dos contratos de financiamento, como pressuposto para o sucesso do sistema como um todo. A satisfação de cada um dos pactos celebrados entre financiadores e financiados, individualmente considerados, é requisito para que o sistema evolua e garanta o beneficiamento de outros tantos sujeitos, de toda coletividade interessada.

            Em uma perspectiva de análise econômica do direito, não se rejeita que existam interesses coletivos dignos de tutela nas relações contratuais. Contudo a coletividade é identificável na estrutura do mercado que está por trás do contrato que está sendo celebrado (em verdade, a própria Lei 12529/2011 [lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência] reconhece ser o mercado protegido por ela um interesse difuso ou coletivo digno de tutela). Nesse sentido, o todo em um contrato de financiamento é representado pela cadeia ou rede de mutuários (e potenciais mutuários), que dependem do cumprimento do contrato daquele indivíduo para alimentar o sistema financeiro, viabilizando novos financiamentos a quem precisa. Assim, se houver quebra na cadeia, com inadimplementos contratuais, quem sai perdendo é a coletividade (que ficará sem recursos e acabará pagando um juro maior). Como os mercados são imperfeitos, existem custos de transação (custos incorridos pelas partes para negociar e para fazer cumprir um contrato). É papel do direito diminuir esses custos de transação. O que se pode afirmar, inclusive, é que, pelo menos dentro de uma perspectiva econômica, quanto mais desenvolvidas as instituições, mais propício é o ambiente para seu natural desenvolvimento, pela diminuição dos custos de transação. Quanto mais sólidos os tribunais e as agências reguladoras e quanto mais íntegro e previsível o sistema jurídico de um país (garantindo a concorrência, a propriedade e os contratos empresariais), melhores são suas instituições.

            A interação entre direito e economia preconizada pela análise econômica do direito é tão interessante que estudiosos dessa interdisciplinaridade afirmam que os sistemas jurídicos repercutem de forma tão significativa nos fatores que determinam o desempenho econômico a ponto de a eficiência de reserva da economia diminuir e sofrer considerável distorção, diante da existência do risco jurídico. Informam os estudiosos que pesquisas já assinalaram que os países com sistemas jurídicos decorrentes da civil law (tradição de direito romano-germânico) possuem baixo desempenho econômico, pois são países que oferecem menor proteção jurídica aos investidores em razão do conteúdo das normas jurídicas (direito material) e da forma de cumprimento destas (direito processual), o que resulta em mercados de crédito e de capitais com menor desenvolvimento.

            Enfim, a análise econômica da função social do contrato permite reconhecer o papel institucional e social que o direito contratual pode oferecer ao mercado, qual seja a segurança e previsibilidade nas operações econômicas e sociais, capazes de proteger as expectativas dos agentes econômicos e a coletividade em geral. Conclui-se que por meio de instituições mais sólidas, que reforcem, ao contrário de minar, a estrutura do mercado, serão preservados os interesses coletivos e difusos presentes nas relações contratuais e que os riscos, as incertezas e os custos de transação serão diminuídos, facilitando-se o crédito, dinamizando a economia e, portanto, favorecendo a posição dos agentes econômicos, dos contratantes e da coletividade em geral.

 

 

5. Justiça Contratual

 

Para alguns também chamada de equilíbrio contratual. O fundamento de tal princípio é a igualdade material, enfim, a equidade no âmbito negocial. Não é vedado o lucro e a vantagem. O que não se permite é o lucro ou vantagem desarrazoada, abusiva e exagerada. Nem tudo que não é vedado é permitido, sob a ótica constitucional. A primazia não é da vontade, e sim da justiça contratual.

 

Todavia, o direito, em certa medida, não requer um equilíbrio absoluto nas relações contratuais. O que quer o direito é um certo grau de equivalência entre as prestações (equivalência mínima). Todavia, quanto maior for a assimetria entre as partes, menor será a tolerância pela falta de equivalência entre as prestações (como acontece nas relações de consumo, ante a vulnerabilidade do consumidor). Ou dito de outra forma, quanto menor for a assimetria, como nos contratos civis paritários e livremente negociados entre as partes, menor será a interferência estatal (art. 421, parágrafo único, CC e art. 3º VIII da Lei da Liberdade Econômica).

 

Dentro da justiça contratual, suas maiores e mais relevantes manifestações são os institutos da lesão[39] e onerosidade excessiva[40]. Basicamente em ambos os institutos temos a quebra da comutatividade, do sinalagma, enfim, do equilíbrio nas prestações (justiça contratual), seja em sua gênese (lesão), que configura a quebra do sinalagma genético, seja superveniente (onerosidade excessiva), que configura a quebra do sinalagma funcional.

 

Na lesão do CC[41] (lesão especial – art. 157) requer além do elemento objetivo (prestação manifestamente desproporcional), o elemento subjetivo (conhecimento de uma parte sobre a necessidade ou inexperiência da parte contrária[42][43]), levando à anulabilidade do contrato (mas cabível também a revisão por força do art. 157 § 2º CC e o princípio da conservação do contrato[44]). No CDC (lesão consumerista) basta o elemento objetivo (prestação manifestamente desproporcional), gerando a nulidade da cláusula (art. 51 IV § 1º III), salvo quando contamine todo o contrato, o que levará à sua total nulidade (51 § 2º CDC), todavia, isso não impede a revisão da cláusula abusiva (sobretudo quando referente a preço ou reajuste), por força do art. 6º V primeira parte, como direito do consumidor.  

 

Na onerosidade excessiva – baseada na cláusula rebus sic stantibus[45] em mitigação à cláusula pactua sunt servanda, o CDC também tratou de forma diferente do CC/2002. De igual, a sua aplicação: tal instituto somente é aplicável aos contratos de duração, ou seja, contratos de execução diferida no tempo, pela vontade das partes (ex. compromisso de compra e venda parcelada) e contrato de execução continuada, que são aqueles cuja própria natureza envolve o elemento temporal (ex. fornecimento de serviço de telefonia e planos de saúde). Todavia, o CDC adota a teoria da base objetiva (art. 6º V segunda parte). Ou seja, havendo fatos supervenientes que rompam/quebrem a base em que se firmou o negócio jurídico, gerando uma excessiva onerosidade a uma das partes, é cabível a revisão ou a resolução do contrato. Não precisa ser imprevisível, basta que seja não esperado pelo consumidor a destruição da relação de equivalência ou a impossibilidade de alcançar o fim do contrato. O CC2002 adotou a teoria da imprevisão (art. 478)[46]. Essa teoria tem como núcleo o que aqui se falou acerca da teoria da base objetiva (fatos supervenientes que rompam/quebrem a base em que se firmou o negócio jurídico, gerando uma excessiva onerosidade a uma das partes), somada à imprevisão dos fatos supervenientes que geram a onerosidade excessiva[47]. Em outras palavras, são requisitos da onerosidade excessiva no CC a eclosão de fato superveniente extraordinário, que gere onerosidade excessiva, sendo tal acontecimento imprevisível[48]. No CC2002 a onerosidade excessiva gera a resolução (mas também cabe revisão, por força do art. 479, 480 e 317 CC e o princípio da conservação do contrato[49]).

 

Justifica-se essa diferenciação de tratamento[50] (tanto da lesão quanto da onerosidade excessiva) no CC e no CDC pela simples razão de que no CDC a inferioridade (vulnerabilidade) do consumidor é presumida, de forma absoluta, sendo um código para desiguais, devendo ser tratado o consumidor como desigual para igualá-lo na relação jurídica de consumo, daí sua especial proteção. Ao contrário, o CC é um código para partes tendencialmente iguais (quase-iguais).

 

Para diferenciar a função social interna da justiça contratual, é preciso entender que a função social atende ao princípio da solidariedade social, enquanto a justiça contratual atende ao princípio da igualdade material, garantindo a proporcionalidade quantitativa entre os contratantes. Assim, a função social interna amplifica a justiça contratual, cuja finalidade é enfatizar que os contratantes não são apenas substancialmente iguais na economia do contrato, mas também iguais em direitos fundamentais, iguais em dignidade.

 

Na verdade, a função social interna é instrumentalizada pela justiça contratual, consagrando a justiça interna do contrato. Em outras palavras, a justiça contratual serve de instrumento de concretização do aspecto interno da função social. Conclui-se que a justiça contratual e a função social do contrato, embora com características próprias, andam juntas, implicando igualdade e solidariedade aos contratos.

 

            Com base no princípio da justiça contratual (mas também com base na boa fé objetiva e função social do contrato), como decorrências do princípio da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade material, é que se deve dar especial tutela ao devedor superendividado[51], numa espécie de limite do sacrifício ou exceção de ruína econômica-pessoal. Superendividamento[52] pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos) em um tempo razoável, com sua capacidade atual de rendas e patrimônio. Esta definição destaca que o superendividamento é um estado da pessoa física consumidora leiga (o não profissional ou o não empresário, pois estes podem falir), um devedor de crédito, que o contraiu de boa-fé (desprovida de dolo ou culpa grave), mas que agora se encontra em uma situação de impossibilidade (subjetiva) global (universal e não passageira) de pagar todas as suas dívidas atuais (já exigíveis) e futuras (que vão vencer) de consumo, com a sua renda e patrimônio (ativo) por um tempo razoável (a indicar que teria de fazer um esforço por longos anos, quase uma escravidão ou hipoteca do futuro para poder pagar suas dívidas), violando assim o núcleo da dignidade da pessoa humana (mínimo existencial), capaz de representar a morte civil do consumidor. Nesses casos de grave alteração das circunstâncias subjetivas relativas ao consumidor, há a necessidade de uma especial tutela do devedor superendividado.

 

            Para a especial tutela do devedor superendividado, devem estar presentes os seguintes pressupostos: vulnerabilidade do devedor; boa fé do devedor (ausência de dolo ou culpa grave pela alteração das condições pessoais ou pelo agravamento da sua situação financeira); situação de urgência social (força maior social – a alteração de sua condição pessoal decorreu de externalidades, de acidentes da vida, de fatos alheios à sua vontade, situação não causada deliberadamente pelo consumidor); risco de violação do núcleo dos direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana.

 

            Dessa especial tutela, impõe-se primariamente, o dever de renegociação do contrato, que encontra seu fundamento no dever de cooperação e na vedação ao exercício abusivo de posições jurídicas[53], ou não sendo possível ou sendo frustrada a renegociação, autoriza-se a intervenção do juiz para adequar a forma de execução do contrato em razão da alteração das circunstâncias ou até mesmo para resolver o contrato pela excessiva onerosidade.

 

             Enfim, o direito pátrio oferece três soluções ao superendividamento: a) imposição do dever de renegociação (art. 4º III CDC c/c art. 187, 421 e 422 do CC); b) adaptação do contrato em razão da alteração das circunstâncias (art. 6º V CDC c/c art. 480 do CC); c) resolução do contrato que se tornou excessivamente oneroso (art. 6º V CDC c/c art. 478 do CC). Perceba que essa revisão ou resolução se fundamenta em uma onerosidade excessiva subjetiva (e não em onerosidade excessiva objetiva como é a regra no sistema de direito privado), pois sua base de sustentação é uma extrema onerosidade para uma das partes contratantes, advindas de circunstâncias particulares e pessoais, desde que sejam suficientemente motivadas tanto eticamente quanto economicamente.

 

Ademais, nos casos em que a concessão abusiva ou predatória do crédito tenha gerado o superendividamento, impõe-se a responsabilização da instituição financeira (ou equivalente) pela má concessão do crédito - defeito do serviço de fornecimento de crédito, como nos casos de falha no dever de esclarecimento ou aconselhamento, publicidade abusiva, aproveitamento da inexperiência do devedor e inobservância da manutenção do mínimo existencial do devedor.

 

            Ressalte-se que a tutela especial do superendividado se dará não somente nas hipóteses de superendividamento passivo (aquele que excedeu a capacidade de pagamento por fatores externos: desemprego, morte e doença familiar, separação e divórcio, etc), mas também ao superendividado ativo inconsciente (quando o consumidor é levado a se endividar pelas pressões do mercado, impulsionado pelo excessivo apelo ao consumo, devido à sedução provocada intencionalmente pelo mercado [a chamada sedução de novas necessidades], ou então nos casos de oferta irresponsável de crédito ou nos casos em que o consumidor é vítima de desinformação tornando-o incapaz de prever a impossibilidade de cumprimento da obrigação assumida). Portanto, somente se afasta a tutela especial do superendividado nos casos de má fé, conduta maliciosa ou nos casos de imprudência e negligencia graves do consumidor (superendividado ativo consciente), responsável, por dolo ou culpa grave, pela alteração das condições pessoais ou pelo agravamento da sua situação financeira, enfim, aquele que deliberadamente ou por culpa grave é responsável pela alteração de sua condição pessoal financeira.

 

Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Estatuto constitucional das relações contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4896, 26 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53850. Acesso em: 22 nov. 2024.

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