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Estatuto constitucional das relações contratuais

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26/11/2016 às 15:50
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[1] Discute-se a existência de dano moral na hipótese em que o consumidor adquire garrafa de refrigerante com corpo estranho em seu conteúdo, sem, contudo, ingerí-lo. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor à risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o qual expõe o consumidor à risco concreto de dano à sua saúde e segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor, previsto no art. 8º do CDC. (STJ. REsp 1424304/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 19/05/2014)

[2] As normas de proteção e defesa do consumidor têm índole de “ordem pública e interesse social”. São, portanto, indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão ex ante e no atacado. O ponto de partida do CDC é a afirmação do Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, mecanismo que visa a garantir igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo, o que não quer dizer compactuar com exageros que, sem utilidade real, obstem o progresso tecnológico, a circulação dos bens de consumo e a própria lucratividade dos negócios. O direito à informação, abrigado expressamente pelo art. 5°, XIV, da Constituição Federal, é uma das formas de expressão concreta do Princípio da Transparência, sendo também corolário do Princípio da Boa-fé Objetiva e do Princípio da Confiança, todos abraçados pelo CDC. No âmbito da proteção à vida e saúde do consumidor, o direito à informação é manifestação autônoma da obrigação de segurança. Entre os direitos básicos do consumidor, previstos no CDC, inclui-se exatamente a “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (art. 6°, III). Informação adequada, nos termos do art. 6°, III, do CDC, é aquela que se apresenta simultaneamente completa, gratuita e útil, vedada, neste último caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo uso de informações soltas, redundantes ou destituídas de qualquer serventia para o consumidor. Nas práticas comerciais, instrumento que por excelência viabiliza a circulação de bens de consumo, “a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores” (art. 31 do CDC). A informação deve ser correta (= verdadeira), clara (= de fácil entendimento), precisa (= não prolixa ou escassa), ostensiva (= de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa. A obrigação de informação é desdobrada pelo art. 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informação-conteúdo (= características intrínsecas do produto e serviço), b) informação-utilização (= como se usa o produto ou serviço), c) informação-preço (= custo, formas e condições de pagamento), e d) informação-advertência (= riscos do produto ou serviço). A obrigação de informação exige comportamento positivo, pois o CDC rejeita tanto a regra do caveat emptor como a subinformação, o que transmuda o silêncio total ou parcial do fornecedor em patologia repreensível, relevante apenas em desfavor do profissional, inclusive como oferta e publicidade enganosa por omissão.[...] No campo da saúde e da segurança do consumidor (e com maior razão quanto a alimentos e medicamentos), em que as normas de proteção devem ser interpretadas com maior rigor, por conta dos bens jurídicos em questão, seria um despropósito falar em dever de informar baseado no homo medius ou na generalidade dos consumidores, o que levaria a informação a não atingir quem mais dela precisa, pois os que padecem de enfermidades ou de necessidades especiais são freqüentemente a minoria no amplo universo dos consumidores. Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a "pasteurização" das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna. Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador. O fornecedor tem o dever de informar que o produto ou serviço pode causar malefícios a um grupo de pessoas, embora não seja prejudicial à generalidade da população, pois o que o ordenamento pretende resguardar não é somente a vida de muitos, mas também a vida de poucos. (STJ. REsp 586.316/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJe 19/03/2009)

[3] Violam a função social interna do contrato de trabalho, pois ofensivo à dignidade da pessoa humana, a cláusula de não engravidar e a prática de revistas íntimas: Como expressão do poder diretivo reconhecido ao empregador e ainda com o propósito de compatibilizar os comandos constitucionais de proteção à propriedade e à honra e dignidade do trabalhador, a jurisprudência majoritária tem admitido a possibilidade de o empregador promover, consideradas as características e peculiaridades da atividade comercial explorada, a revista visual de objetos pessoais de seus empregados, ao final do expediente, desde que não ocorram excessos e exposições vexatórias que comprometem a honra e a imagem desses trabalhadores. Nesse cenário, ao realizar revistas íntimas que consistiam em determinar a exposição do sutiã, da calcinha e da meia de suas empregadas, para verificar a eventual ocorrência de furtos dessas peças no interior do estabelecimento, atua o empregador à margem dos parâmetros razoáveis, invadindo esfera indevassável de intimidade e incidindo em abuso que deve ser reparado – Código Civil, artigos 186 e 927 (TST - RR 1069/2006-071-09-00.2 - Publ. em 14-8-2009).

[4][4] O direito administrativo também possui tais princípios (com características que lhe são próprias), embora com outras fontes (pois o direito administrativo possui principiologia própria). Vejamos. A boa fé objetiva encontra fonte no princípio da moralidade (mas também na solidariedade social e segurança jurídica). A função social encontra fonte no principio da supremacia do interesse público (mas também na solidariedade social). A justiça contratual encontra fonte no princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato (mas também na igualdade material). A autonomia privada também está presente no contrato administrativo, sempre por parte do contratado (princípio da liberdade), pois a Administração não possui tal autonomia, pois o administrador só pode fazer aquilo que a lei permite (princípio da legalidade estrita). Aplicação da boa fé objetiva no âmbito administrativo: A jurisprudência que cuida da devolução de valores percebidos indevidamente por servidores públicos evoluiu para considerar não apenas o caráter alimentar da verba, mas também a boa-fé objetiva envolvida in casu. O elemento que evidencia a boa-fé objetiva no caso é a legítima confiança ou justificada expectativa, que o beneficiário adquire, de que valores recebidos são legais e de que integraram em definitivo o seu patrimônio [...] quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos, ante a boa-fé do servidor público (STJ. REsp 1384418/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/06/2013, DJe 30/08/2013)

[5] Exemplos de aplicação da boa fé objetiva no processo civil e penal são muitos: aquele que deu causa à nulidade relativa não pode invocá-la (tu quoque); dever de manter atualizado o endereço, sob pena das intimações reputarem perfeitas se endereçadas ao anterior endereço (dever de cooperação e informação); incabível a chamada nulidade guardada, de bolso ou algibeira (dever de lealdade ou fair play processual): Sem que haja prejuízo processual, não há nulidade na intimação realizada em nome de advogado que recebeu poderes apenas como estagiário. Deficiência na intimação não pode ser guardada como nulidade de algibeira, a ser utilizada quando interessar à parte supostamente prejudicada. (STJ. REsp 756.885/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 255); incabível a alegação tardia de nulidade quando podia e devia ter feito anteriormente (dever de mitigar o próprio prejuízo):  princípio da boa-fé objetiva ecoa por todo o ordenamento jurídico, não se esgotando no campo do Direito Privado, no qual, originariamente, deita raízes. Dentre os seus subprincípios, destaca-se o duty to mitigate the loss. Na espécie, a serôdia insurgência, somente após a realização de diversos atos processuais, como o interrogatório, alegações finais e sentença, evidencia a consolidação da situação, sedimentando a tácita aceitação da ausência de oitiva da testemunha. Não deveria a parte insistir em marcha processual que crê írrita, sob pena de investir tempo e recursos de modo infrutífero. (STJ. HC 171.753/GO, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 16/04/2013); a impossibilidade de se indicar a penhora bem impenhorável e depois pretender sua liberação em razão da impenhorabilidade (venire): Os bens protegidos pela cláusula de impenhorabilidade (art. 649, V, do CPC) podem constituir alvo de constrição judicial, haja vista ser lícito ao devedor renunciar à proteção legal positivada na norma supracitada, contanto que contemple patrimônio disponível e tenha sido indicado à penhora por livre decisão do executado, ressalvados os bens inalienáveis e os bens de família. Precedentes do STJ. No caso, não há nulidade no procedimento expropriatório, porquanto, além de o bem penhorado ("colheitadeira") compor o acervo ativo disponível do recorrente/executado, este o ofertou deliberadamente nos autos da execução, de ordem a evidenciar contradição de comportamento da parte ("venire contra factum proprium"), postura incompatível com a lealdade e boa-fé processual.(STJ.  REsp 1365418/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 16/04/2013). A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório). Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais. (STJ. REsp 1782227/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 29/08/2019); a impossibilidade de pleitear a relativização da coisa julgada, em ação filiatória, em comportamento contraditório: O  Supremo  Tribunal  Federal,  ao apreciar o RE 363.889/DF, com repercussão  geral  reconhecida, permitiu, em caráter excepcional, a relativização  da  coisa  julgada  formada  em  ação de investigação julgada  improcedente  por ausência de provas, quando não tenha sido oportunizada  a  realização  de  exame  pericial  acerca  da  origem biológica  do  investigando por circunstâncias alheias à vontade das partes.  Hipótese distinta do caso concreto em que a ação de investigação de paternidade foi julgada procedente com base na prova testemunhal, e,  especialmente,  diante  da  reiterada  recusa  dos  herdeiros do investigado em proceder ao exame genético, que, chamados à coleta do material por sete vezes, deixaram de atender a qualquer deles.  Configura  conduta manifestamente contrária à boa-fé objetiva, a ser  observada  também em sede processual, a reiterada negativa, por parte  da  recorrente,  de  produzir  a  prova  que traria certeza à controvérsia estabelecida nos autos da anterior ação de investigação de  paternidade  para,  transitada  em  julgado  a decisão que lhe é desfavorável,  ajuizar ação negatória de paternidade agora visando à realização  do  exame de DNA que se negara a realizar anteriormente.  Intolerável  o comportamento contraditório da parte, beirando os limites           da          litigância          de          má-fé. (STJ. REsp 1562239/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 16/05/2017); e a possibilidade de indenização civil por comportamento manifestamente abusivo em sede de processo judicial (assédio processual): Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais. O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça. (STJ. REsp 1817845/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2019, DJe 17/10/2019).

[6] Por isso a liberdade de pensamento abrange o direito de ter e divulgar ideias absurdas. Por isso a liberdade de associação abrange o direito de fundar entidades com finalidades fúteis, desde que não criminosas. Por isso a liberdade de religião tutela tanto o direito de professar o credo católico como o de frequentar cultos satânicos.

[7] Enunciado 413 do CJF: Os bons costumes previstos no art. 187 do CC possuem natureza subjetiva, destinada ao controle da moralidade social de determinada época, e objetiva, para permitir a sindicância da violação dos negócios jurídicos em questões não abrangidas pela função social e pela boa-fé objetiva.

[8] Enunciado 37 do CJF: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

[9] Enunciado 412 do CJF: As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva.

[10] Enunciado 362 do CJF: A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil.

[11] Hipótese de venire contra factum proprium está na súmula 370 do STJ: caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado. Na jurisprudência: Promessa de compra e venda. consentimento da mulher. atos posteriores. " venire contra factum proprium ". Boa-fé. [...] a mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. (STJ. REsp 95.539/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 03/09/1996, DJ 14/10/1996, p. 39015). Outra hipótese está na súmula 302 do STJ: É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado. E na jurisprudência: Havendo previsão contratual de cobertura de determinada patologia, é abusiva a restrição aos meios necessários ao sucesso do tratamento. Quem garante os fins deve dar os meios, sob pena de ofensa à boa fé objetiva e à vedação do comportamento contratual contraditório (STJ. AgRg no AREsp 341956/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4-T, DJe 7.10.2014). Outra hipótese é o pai que registra o filho sabendo não ser seu, depois pretende a desconstituição do registro filial: A "adoção à brasileira", ainda que fundamentada na "piedade", e muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado não consubstancia negócio jurídico sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente no término do relacionamento com a genitora (STJ. REsp 1613641/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/05/2017, DJe 29/05/2017)

[12] Também chamada de proibição da incoerência e doutrina dos atos próprios, com expressão previsão no art. 113 § 1º I CC.

[13] Hipótese de supressio/surrectio está no art. 330 do CC. Na jurisprudência: Discussão relativa à [...]  pretensão do representante comercial de receber diferenças de comissão [...] o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título da diferença, que sempre foram dispensados, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual pela recorrida. (STJ. REsp 1323404/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 05/09/2013). Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária, a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual.[...] A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa. (STJ. REsp 1202514/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 30/06/2011) Trata-se de ação de cobrança de multa prevista em contrato de promessa de compra e venda de combustíveis e produtos derivados sob a alegação de que o posto de gasolina não adquiriu a quantidade mínima prevista. [...] Segundo o instituto da suppressio, o não exercício de direito por seu titular, no curso da relação contratual, gera para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação, presente  a possível deslealdade no seu exercício posterior. Hipótese em que a recorrente permitiu, por quase toda a vigência do contrato, que a aquisição de produtos pelo posto de gasolina ocorresse em patamar inferior ao pactuado, apresentando-se desleal a exigência, ao fim da relação contratual, do valor correspondente ao que não foi adquirido, com incidência de multa. (STJ. REsp 1374830/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 03/08/2015) CONDOMÍNIO. Área comum. [...] Área destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o statu quo. Aplicação do princípio da boa-fé (suppressio). (STJ. REsp 214.680/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/1999, DJ 16/11/1999, p. 214). Não tem se admitido sua aplicação em sede alimentar: Controvérsia acerca da possibilidade ou não de, com fundamento na teoria do abuso do direito e na surrectio, perpetuar obrigação alimentar assumida por longo período a título de mera liberalidade pelo alimentante já exonerado da dívida. Não há falar em ilicitude na conduta do recorrente por inexistência de previsibilidade de pagamento eterno dos alimentos, especialmente porque ausente relação obrigacional. [...] Na hipótese, inviável a manutenção do dever alimentar em virtude do decurso do prazo fixado em acordo homologado em juízo e pela existência de coisa julgada refutando a dívida. (STJ. REsp 1789667/RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 22/08/2019).

[14] Hipótese de tu quoque está nos arts. 129, 150 e 180 do CC, art. 476 do CC (exceção do contrato não cumprido), ou na hipótese daquele que está em mora e vem pleitear a resolução por incumprimento da outra parte, ou daquele que já está em mora quando ocorrem circunstâncias supervenientes e vem a pleitear a revisão/resolução do contrato por onerosidade excessiva. O mesmo se diga da impossibilidade de se alegar a anulabilidade por aquele que lhe deu causa. Assim também na sumula 385/STJ: Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento. Na jurisprudência: a assinatura de próprio punho do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória. [...] Caso concreto, porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé (STJ. REsp 1192678/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 26/11/2012). A regra de nulidade integral da fiança prestada pelo cônjuge sem outorga do outro cônjuge não incide no caso de informação inverídica por este de estado de solteira, assinando, no caso, a fiadora, mulher casada, com omissão do nome do marido. A boa-fé objetiva que preside os negócios jurídicos (CC/2002, art. 113) e a vedação de interpretação que prestigie a malícia nas declarações de vontade na prática de atos jurídicos (CC/2002, art.180) vem em detrimento de quem preste fiança com inserção de dados inverídicos no documento. [...] Inocorrência de ofensa à Súmula 332/STJ, validade da fiança, no tocante à fiadora, a comprometer-lhe a meação, sem atingir, contudo, a meação do marido.(STJ. REsp 1328235/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/06/2013, DJe 28/06/2013).

[15] Enunciado 169 do CJF: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.

[16] Hipótese de dever de mitigar o próprio prejuízo: Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor.  Infringência aos deveres  de cooperação e lealdade. [...] O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária (exclusão de um ano de ressarcimento). (STJ. REsp 758.518/PR, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2010, REPDJe 01/07/2010, DJe 28/06/2010). Assim também a súmula 309 do STJ (O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo) e o art. 537 § 1º NCPC.

[17] Enunciado 361 do CJF: O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475. Enunciado 586 do CJF: Para a caracterização do adimplemento substancial, levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos. Ou seja, entende-se que a análise do adimplemento substancial não abrange somente a quantidade de prestação cumprida, mas também aspectos qualitativos da prestação. Importa verificar se a parte adimplida da obrigação, ainda que incompleta ou imperfeita, mostrou-se capaz de satisfazer quase que essencialmente o interesse do credor. Para isso, o intérprete deve levar em conta, ainda, a boa fé daquele que invoca o adimplemento substancial.

[18] Hipótese de adimplemento substancial: É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. (STJ. REsp 1051270/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 05/09/2011). A jurisprudência não admite sua aplicação em matéria de alimentos: a Teoria do Adimplemento Substancial, de aplicação estrita no âmbito do direito contratual, somente nas hipóteses em que a parcela inadimplida revela-se de escassa importância, não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares, revelando-se inadequada para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar. O pagamento parcial da obrigação alimentar não afasta a possibilidade da prisão civil. Precedentes. O sistema jurídico tem mecanismos por meio dos quais o devedor pode justificar o eventual inadimplemento parcial da obrigação (CPC/2015, art. 528) e, outrossim, pleitear a revisão do valor da prestação alimentar (L. 5.478/1968, art. 15; CC/2002, art. 1.699). (STJ. HC 439.973/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 16/08/2018, DJe 04/09/2018)

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[19] Se a falha na execução do contrato é de pequena monta, irrelevante, fica desautorizado o acolhimento da exceção do contrato não cumprido (STJ. REsp 648.780/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 20/03/2014, DJe 07/05/2014)

[20] Enunciado 24 do CJF: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.

[21] No tocante à violação positiva do contrato: O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio [...] A violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. (STJ. REsp 595.631/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2004, DJ 02/08/2004, p. 391).

[22] Exemplo do dever anexo de proteção é a sumula 130 do STJ: a empresa responde, perante o cliente, pela reparação do dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento.

[23] Exemplo de dever anexo de informação: Assim a súmula 359 do STJ: Cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição. Na jurisprudência: Rodapé ou lateral de página não são locais adequados para alertar o consumidor, e, tais quais letras diminutas, são incompatíveis com os princípios da transparência e da boa-fé objetiva, tanto mais se a advertência disser respeito à informação central na peça publicitária e a que se deu realce no corpo principal do anúncio, expediente astucioso que caracterizará publicidade enganosa por omissão, nos termos do art. 37, §§ 1º e 3º, do CDC, por subtração sagaz, mas nem por isso menos danosa e condenável, de dado essencial do produto ou serviço. Pretender que o consumidor se transforme em leitor malabarista (apto a ler, como se fosse natural e usual, a margem ou borda vertical de página) e ouvinte ou telespectador superdotado (capaz de apreender e entender, nas transmissões de rádio ou televisão, em fração de segundos, advertências ininteligíveis e em passo desembestado, ou, ainda, amontoado de letrinhas ao pé de página de publicação ou quadro televisivo) afronta não só o texto inequívoco e o espírito do CDC, como agride o próprio senso comum, sem falar que converte o dever de informar em dever de informar-se, ressuscitando, ilegitimamente e contra legem, a arcaica e renegada máxima do caveat emptor (= o consumidor que se cuide). (STJ. AgRg no AgRg no REsp 1261824/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 09/05/2013). Em situações de simetria contratual e informacional, há quem defenda não só o dever de informar mas também o ônus de se informar. Fala-se em ônus para se ressaltar que, embora não se constitua propriamente em dever juridicamente coercitivo, a postura diligente do credor apresenta-se como pressuposto para o legítimo exercício do seu direito à informação. Com efeito, dificilmente poder-se-ia concluir que age conforme à boa-fé objetiva o credor que deixa de buscar – ou, ao menos, de solicitar – as informações às quais razoavelmente poderia ter acesso sem esforço desmesurado.

[24] Exemplo de dever anexo de cooperação é o dever da seguradora de plano de saúde realizar prévio exame médico, se não o faz, assume o risco de sua omissão, sendo seu o ônus de comprovar a má fé do segurado. Assim a súmula 609 do STJ: a recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado. Em razão do dever de cooperação, compete ao fornecedor, nos contratos de duração, encaminhar em tempo oportuno o boleto bancário ao consumidor, se assim ficou contratado, para que este efetue o pagamento. Como também decorre da cooperação, o dever de devolver aquilo que foi recebido indevidamente.

[25] Enunciado 170 do CJF: A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.

[26] Aplicação da boa fé objetiva na fase pré-negocial: Rompimento injustificado e arbitrário das tratativas, vulnerando a legítima expectativa da outra parte: A responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material. As instâncias de origem, soberanas na análise das circunstâncias fáticas da causa, reconheceram que houve o consentimento prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. (STJ. REsp 1051065/AM, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 27/02/2013).  Ou então a súmula 130 do STJ: a empresa responde, perante o cliente, pela reparação do dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento. A empresa que fornece estacionamento aos veículos de seus clientes responde pelos danos, furtos, roubos e latrocínios ocorridos no seu interior, mesmo que o estacionamento seja gratuito, uma vez que, em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores, o estabelecimento assume o dever de segurança dos bens e dos próprios clientes.

[27] Aplicação da boa fé objetiva na fase pós-negocial: conduta ofensiva à fruição do resultado útil da relação já concluída, como o dever de sigilo e de não concorrência decorrente de determinadas relações contratuais findas (ex. art. 1147 CC).Também a súmula 548/STJ: Incumbe ao credor a exclusão do registro da dívida em nome do devedor no cadastro de inadimplentes no prazo de cinco dias úteis, a partir do integral e efetivo pagamento do débito. Na jurisprudência: O fiel adimplemento da obrigação decorrente da relação de débito e crédito, é o ponto culminante da conduta esperada reciprocamente pelas partes, persistindo, contudo,  os efeitos pós contratuais, não obstante extinto o negócio pelo adimplemento. A responsabilidade pós negocial, no sentido lato, vem sempre anelada ao princípio da boa-fé objetiva - veda-se cobrar dívida já paga. (STJ. REsp 1068271/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 15/06/2012). A rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva - violadora dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual - confere à parte prejudicada o direito à indenização por danos materiais e morais. (STJ. REsp 1255315/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/09/2011, DJe 27/09/2011). Da mesma forma o dever dos fornecedores de realizarem o recall (art. 10 § 1º CDC).

[28] Vale-se aqui de primoroso estudo de SIRENA, Hugo Cremonez. Do contrato ao contato: um estudo sobre as relações contratuais de fato. In http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/29873/R%20-%20D%20-%20HUGO%20CREMONEZ%20SIRENA.pdf?sequence=1.

[29] Se, verdadeiramente, os contratos fossem estritamente pautados na vinculação volitiva entre sujeitos, como explicar a validade do fato de um menor, absolutamente incapaz, tomar o uso de um transporte coletivo para se locomover até a sua residência? Ou como reconhecer a expressão de vontade do consumidor que recebe, em sua casa, serviços públicos de energia elétrica, água e esgoto mesmo sem jamais ter formalizado, efetivamente, qualquer tipo de negociação com o Poder Público? Ou, ainda, como validar relações contratuais mantidas por sociedades de fato, ainda não regular e juridicamente constituídas, impossibilitadas, portanto, de expressar a sua vontade institucional? Todas essas são hipóteses de relações contratuais de fato. Outra hipótese de relação contratual de fato se dá nas hipóteses de relações trabalhistas em que o trabalhador é menor de 14 anos (vedação constitucional). Embora nula a relação pela incapacidade do trabalhador, possui este direitos trabalhistas e previdenciários, à luz da doutrina das relações contratuais fáticas: Agravo de instrumento. 2. Trabalhador rural ou rurícola menor de quatorze anos. Contagem de tempo de serviço. Art. 11, VII, da Lei nº. 8213. Possibilidade. Precedentes. 3. Alegação de violação aos arts. 5º, XXXVI; e 97, da CF/88. Improcedente. Impossibilidade de declaração de efeitos retroativos para o caso de declaração de nulidade de contratos trabalhistas. Tratamento similar na doutrina do direito comparado: México, Alemanha, França e Itália. Norma de garantia do trabalhador que não se interpreta em seu detrimento. Acórdão do STJ em conformidade com a jurisprudência desta Corte. 4. Precedentes citados: AgRAI 105.794, 2ª T., Rel. Aldir Passarinho, DJ 02.04.86; e RE 104.654, 2ª T., Rel. Francisco Rezek, DJ 25.04.86 5. Agravo de instrumento a que se nega provimento.(STF. AI 529694, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/02/2005, DJ 11-03-2005 PP-00043 EMENT VOL-02183-09 PP-01827 RTJ VOL-00193-01 PP-00417 RDECTRAB v. 12, n. 129, 2005, p. 176-190)

[30] Exemplo clássico que pode muito bem ilustrar essa situação é o dos estacionamentos gratuitos oferecidos por determinados centros comerciais: ainda que haja a expressa menção de que o estabelecimento não se responsabiliza pelo veículo, o entendimento majoritário é oposto. A negativa de vontade do ofertante do estacionamento não o desvincula de uma relação contratual de fato na qual passa a ser responsável pelo veículo. Nesse sentido é a Súmula 130, do STJ, segundo a qual “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículos ocorridos em seu estacionamento.” Assim a jurisprudência: Responsabilidade Civil. Estacionamento. Supermercado. Furto de veículo.  [...] Incidência da Súmula 130. Desnecessidade da caracterização do depósito, pois se trata de relação contratual de fato. (STJ. REsp 120.719/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 22/10/1997, DJ 12/04/1999, p. 156).

[31] Enunciado 431 do CJF: A violação do art. 421 conduz à invalidade ou à ineficácia do contrato ou de cláusulas contratuais.

[32] Conforme enunciado 360 do CJF: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.

[33] Exemplos não faltam de aplicação da função social do contrato no âmbito interno. São os casos de contratos de limitação voluntária permanente e geral dos direitos da personalidade, ou então a cláusula de não engravidar, revistas íntimas em empregados, ofensivas à dignidade da pessoa humana. Conforme enunciado 11 do CJF: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral. Assim também o enunciado 23 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presente [...]  interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. Outra hipótese é a frustração do fim do contrato, onde desaparece seu móvel, sua causa-fim, por eventos extraordinários, alheios às partes, superando o risco assumido pela parte afetada. Ocorre somente em contratos de cumprimento diferido (prazo suspensivo ou trato sucessivo). O que se verifica é a impossibilidade absoluta de alcançar a finalidade buscada, embora seja possível executar a prestação (se as prestações se tornam excessivamente onerosas, aplicável a teoria da onerosidade excessiva; se afetado é o cumprimento da prestação devida, impedindo seu cumprimento, o caso será de caso fortuito ou força maior). Assim o Enunciado 166 do CJF: A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil. Como exemplo é a Súmula 597 do STJ (de acordo com o art. 12 V c da Lei 9656/98), que em matéria de carência de plano de saúde, visa impedir a frustração do fim contratual, devendo o valor da vida humana sobrepujar ao relevo comercial,  eis que o fim maior do contrato de assistência médica é o de amparar a vida e a saúde: a cláusula contratual de plano de saúde que prevê carência para utilização dos serviços de assistência médica nas situações de emergência ou de urgência é considerada abusiva se ultrapassado o prazo máximo de 24 horas contado da data da contratação. Outra hipótese de aplicação da função social interna do contrato está na impossibilidade de condutas contratuais discriminatórias, abusivas e antissociais, ou que coloquem o contratante em situação de exagerada desvantagem (a chamada justiça interna do contrato). Assim a vedação da renúncia antecipada ou exagerada limitação a direitos inerentes à natureza do contrato (art. 424 do CC e art. 51 I IV § 1º II CDC) bem como a vedação da cláusula de decaimento (art. 53 do CDC e Súmula 543 do STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento). Nos planos de saúde a função social interna também se aplicará no caso de aumentos abusivos e discriminatórios em razão da idade. Assim o STJ: Nos contratos de seguro de saúde, de trato sucessivo, os valores cobrados a título de prêmio ou mensalidade guardam relação de proporcionalidade com o grau de probabilidade de ocorrência do evento risco coberto. Maior o risco, maior o valor do prêmio. É de natural constatação que quanto mais avançada a idade da pessoa, independentemente de estar ou não ela enquadrada legalmente como idosa, maior é a probabilidade de contrair problema que afete sua saúde. Há uma relação direta entre incremento de faixa etária e aumento de risco de a pessoa vir a necessitar de serviços de assistência médica. Atento a tal circunstância, veio o legislador a editar a Lei Federal nº 9.656/98, rompendo o silêncio que até então mantinha acerca do tema, preservando a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro de saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo, algumas restrições e limites a tais reajustes. Não se deve ignorar que o Estatuto do Idoso, em seu art. 15, § 3º, veda "a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade". Entretanto, a incidência de tal preceito não autoriza uma interpretação literal que determine, abstratamente, que se repute abusivo todo e qualquer reajuste baseado em mudança de faixa etária do idoso. Somente o reajuste desarrazoado, injustificado, que, em concreto, vise de forma perceptível a dificultar ou impedir a permanência do segurado idoso no plano de saúde implica na vedada discriminação, violadora da garantia da isonomia. Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em razão da mudança de faixa etária, desde que atendidas certas condições, quais sejam: a) previsão no instrumento negocial; b) respeito aos limites e demais requisitos estabelecidos na Lei Federal nº 9.656/98; e c) observância ao princípio da boa-fé objetiva, que veda índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o segurado. Sempre que o consumidor segurado perceber abuso no aumento de mensalidade de seu seguro de saúde, em razão de mudança de faixa etária, poderá questionar a validade de tal medida, cabendo ao Judiciário o exame da exorbitância, caso a caso. (STJ. REsp 866840/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 07/06/2011, DJe 17/08/2011). Da mesma forma o enunciado 543 do CJF, aplicável aos contratos cativos de longa duração: Constitui abuso de direito a modificação acentuada das condições do seguro de vida e de saúde pela seguradora quando da renovação do contrato. Por fim, a função social interna também tem relação com o princípio da conservação dos contratos, verificado no art. 51 § 2º CDC. Conforme enunciado 22 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas. Daí a possibilidade de adaptações contratuais visando evitar a ruína de um dos contratantes - exceção da ruína. Pela exceção da ruína, o vínculo contratual original pode sofrer ação liberatória e adaptadora às novas circunstâncias da realidade, com a finalidade de manter a relação jurídica sem a quebra do sistema, sendo imprescindível a cooperação mútua para modificar o contrato do modo menos danoso às partes: esta Corte Superior entende que não há direito adquirido a modelo de plano de saúde ou de custeio, podendo o estipulante e a operadora redesenharem o sistema para evitar o seu colapso (exceção da ruína), contanto que não haja onerosidade excessiva ao consumidor ou discriminação de idoso.(STJ. AgInt no AgInt no RCD no REsp 1664358/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 03/12/2019). Inversamente, não sendo possível aferir qual das partes primeiramente descumpriu o contrato e, sendo evidente que a relação obrigacional já não mais atende ao interesse de qualquer dos contratantes, com base na função social do contrato, que não tolera o aprisionamento das partes a uma relação contratual que não cumpre mais sua função social e/ou econômica - princípio da não perpetuação do contrato sem fim social, há de se admitir a legitimidade de qualquer contratante pleitear a resolução do contrato, atenuando-se o rigor do art. 475 do CC: Diante da indefinição quanto à parte que primeiro teria inadimplido o contrato, bem como tendo em vista os riscos decorrentes da perpetuação do vínculo contratual, afigura-se perfeitamente razoável mitigar parcialmente os efeitos do art. 475 do CC/02, rescindindo o contrato e deixando eventuais prejuízos para serem compensados mediante indenização. O pleno exercício da liberdade de contratar pressupõe um acordo que cumpra determinada função econômica e social, sem a qual não se pode falar em legítima manifestação de vontade. Assim, não se pode impor a uma das partes a obrigação de se manter subordinada ao contrato se este não estiver cumprindo nenhuma função social e/ou econômica. Embora o comportamento exigido dos contratantes deva pautar-se pela boa-fé contratual, tal diretriz não obriga as partes a manterem-se vinculadas contratualmente ad aeternum, mas indica que as controvérsias nas quais o direito ao rompimento contratual tenha sido exercido de forma desmotivada, imoderada ou anormal, resolvem-se, se for o caso, em perdas e danos. (STJ. REsp 1250596/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/11/2011, DJe 16/11/2011)

[34] Conforme o Enunciado 21 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.

[35] Como exemplo de função social do contrato no âmbito externo teríamos os contratos ofensivos ao meio ambiente, com publicidade abusiva ou enganosa aos consumidores, abuso de poder econômico ou concorrência desleal (eliminação da concorrência, aumento arbitrário dos lucros ou dominação de mercado), ou ainda capaz de frustrar a competitividade própria do esporte violando assim o direito do torcedor, eis que ofensivo aos interesses metaindividuais. Conforme enunciado 23 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais... Ainda externamente temos a figura do terceiro ofendido, como o bystander (art. 17 do CDC); possibilidade da vítima acionar, nos limites da responsabilidade securitária, a seguradora em litisconsórcio com o autor do dano, conforme a Súmula 529 e 537 do STJ (No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano; Em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice) e conforme jurisprudência (em ação de reparação de danos, a seguradora possui legitimidade para figurar no polo passivo da demanda em litisconsórcio com o segurado, apontado causador do dano - STJ. REsp 1076138/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 05/06/2012) além da possibilidade de pleitear, nos limites da responsabilidade securitária, o cumprimento de sentença contra a seguradora denunciada à lide pelo segurado (art. 128 pu NCPC – execução per saltum); a possibilidade de extensão da solidariedade para além do art. 265 do CC, à luz da função social externa, como nos casos de imputação de garantia ao adquirente, por parte dos integrantes anteriores da cadeia dominial, pelos vícios redibitórios e evicção, eis que as relações jurídicas anteriores produzem consequências objetivas nas relações posteriores; o entendimento da Súmula 308 do STJ (a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel) e o entendimento de que contrato de financiamento para compra de veículos realizado pelo banco da montadora implica responsabilidade solidária pelos vícios e defeitos do automóvel (responsabilidade solidária da instituição financeira vinculada à concessionária do veículo ["banco da montadora"], pois parte integrante da cadeia de consumo. - STJ. REsp 1379839/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 15/12/2014), numa consagração da teoria das redes contratuais, que também decorre da função social externa. Também externamente, temos a figura do terceiro ofensor, que sabe (ou deveria saber) acerca do contrato primevo firmado por outras pessoas, e que com sua atuação interfere de forma ilícita, ilegítima, desleal ou abusiva em contrato alheio, podendo levar à sua ruptura ou inadimplemento. É o caso de atravessadores e aliciadores de pessoas obrigadas a prestar serviços a outrem (debauchage), havendo ou não cláusula de exclusividade ou de não concorrência (sendo certo que quando houver ficará ainda mais nítida a figura do terceiro ofensor): o CC prevê expressamente tal figura no art. 608, que trata da prestação de serviços; outra hipótese está expressamente contemplada na Lei Pelé (art. 28 § 2º Lei 9615/98), quando responde solidariamente pela cláusula indenizatória desportiva o atleta e a nova entidade desportiva, no caso de transferência do atleta para outra entidade desportiva durante a vigência do contrato de trabalho desportivo; outro exemplo famoso é o caso Zeca Pagodinho/Brahma x Schin, pois o cantor firmou contrato de exclusividade com a Schin para campanha publicitária de cerveja (garoto propaganda) e ainda durante a vigência do contrato debandou para outra marca de cerveja, se tornando garoto propaganda da Brahma: ação de reparação de danos em que se pleiteia indenização por prejuízos materiais e morais decorrentes da contratação do protagonista de campanha publicitária da agência autora pela agência concorrente, para promover produto de empresa concorrente. [...] Concorrência desleal caracterizada. Aplicação dos ditames derivados do princípio da boa-fé objetiva ao comportamento do terceiro ofensor. (STJ. REsp 1316149/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 27/06/2014). Ressalte-se que essa demanda, julgada pelo STJ, se deu entre as agências de publicidade. No TJSP, a Schin obteve sucesso indenizatório contra o cantor (Danos morais e materiais -Contrato de utilização da imagem e voz de cantor em campanha publicitária de cerveja - Quebra do contrato, com o debande do artista para empresa concorrente - Violação do contrato, com efetivação de danos materiais e morais. TJSP. Relator(a): Pedro Ablas; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 09/04/2008; Data de registro: 06/06/2008; Outros números: 7155293900) e contra a empresa Brahma (Empresa-autora que foi prejudicada pelo aliciamento do principal artista de sua campanha publicitária por parte da empresa-ré [...] Requerida que cooptou o cantor, na vigência do contrato existente entre este e a autora - Veiculação de posterior campanha publicitária pela ré com clara referência ao produto fabricado pela autora – Não observância do princípio da função social do contrato previsto no art. 421 do Código Civil - Concorrência desleal caracterizada [...] Danos materiais devidos [...] Ato ilícito da requerida que gerou patente dano moral e à imagem da requerente (TJSP. Relator(a): J.L. Mônaco da Silva; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 12/06/2013; Data de registro: 25/06/2013; Outros números: 994070311205) O mesmo entendimento pode ser aplicado ao endossatário que desconta cheque, pós-datado pelo emitente (em relação negocial com o endossante), antes da data fixada, desde que o endossatário tenha conhecimento (ou devesse ter) acerca da pós-datação. O mesmo entendimento pode ser aplicado para fundamentar indenização a ser paga pelo amante, em solidariedade com a esposa ou companheira traidora, em caso de ato ilícito praticado por ambos (como o caso de uma traição pública e ultrajante ou então na ocultação dolosa da verdadeira paternidade do filho registrado) em prejuízo do marido ou companheiro enganado, salvo se o amante estivesse de boa fé, desconhecendo a relação conjugal da sua parceira ou desconhecendo ser pai biológico do filho registrado por outrem.

[36] Exemplo de aplicação da teoria das redes contratuais: o entendimento da Súmula 308 do STJ (a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel) e o entendimento de que contrato de financiamento para compra de veículos realizado pelo banco da montadora implica responsabilidade solidária pelos vícios e defeitos do automóvel (responsabilidade solidária da instituição financeira vinculada à concessionária do veículo ["banco da montadora"], pois parte integrante da cadeia de consumo. - STJ. REsp 1379839/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 15/12/2014).

[37] Vale-se aqui de primoroso estudo de LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados. In: BRANDELLI, Leonardo. Estudos em homenagem à Professora Véra Maria Jacob de Fradera. Porto Alegre : Lejus, 2013.

[38] Assim na jurisprudência: A análise econômica da função social do contrato, realizada a partir da doutrina da análise econômica do direito, permite reconhecer o papel institucional e social que o direito contratual pode oferecer ao mercado, qual seja a segurança e previsibilidade nas operações econômicas e sociais capazes de proteger as expectativas dos agentes econômicos, por meio de instituições mais sólidas, que reforcem, ao contrário de minar, a estrutura do mercado.(STJ. REsp 1163283/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/04/2015, DJe 04/05/2015)

[39] O instituto da lesão é passível de reconhecimento também em contratos aleatórios, na hipótese em que, ao se valorarem os riscos, estes forem inexpressivos para uma das partes, em contraposição àqueles suportados pela outra, havendo exploração da situação de inferioridade de um contratante. (STJ. REsp 1155200/DF, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 02/03/2011)

[40] É possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contratos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione com a álea assumida no contrato (Enunciado 440 das Jornadas do CJF).

[41] A lesão do CC se aparta do estado de perigo do CC no sentido de que na lesão o contratante se submete ao negocio em função de uma necessidade econômica, enquanto no estado de perigo a premência possui cunho existencial.

[42] Enunciado 410 do CJF: A inexperiência a que se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral, podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa.

[43] Enunciado 150 do CJF: a lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento.

[44] Enunciado 149 do CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002. Enunciado 291 do CJF: Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço.

[45] Contratar é perigoso. O fator risco é inerente à base ideológica do sistema capitalista. Todo e qualquer contrato, mesmo aqueles comutativos, possuem certo grau de risco (nos contratos aleatórios, o risco é acentuado e da essência do negócio jurídico). Daí o acerto do Enunciado 366 do CJF: o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.

[46] Há quem defenda uma certa flexibilização da teoria da imprevisão no CC, pois o acontecimento deve ser imprevisível mas não precisa ser imprevisto. Imprevisível qualifica o fato, enquanto imprevisto descreve o estado de espírito do agente. A imprevisibilidade pode ser objetivada (observação feita de fora), independente da análise da situação psíquica das partes. Enfim, imprevisível equivale a dizer anômalo ou anormal.

[47] Enunciado 365 do CJF:A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.

[48] Enunciado 175 do CJF: A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às conseqüências que ele produz.

[49] Enunciado 176 do CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual. Enunciado 367 do CJF: Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e observado o contraditório.

[50] Assim o STJ: A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor - CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva. Em que pese sua relevante inovação, tal teoria, ao dispensar, em especial, o requisito de imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção. Não se admite a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo direito das obrigações regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor (STJ. REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/03/2015)

[51] Exemplo de tutela especial do superendividamento está no limite de percentual para crédito consignado em folha de pagamento de servidor público, empregado celetista ou aposentado/pensionista do INSS (35% conforme Lei 13172/2015). Assim também a jurisprudência: O entendimento firmado no âmbito da Segunda Seção é no sentido de ser possível a resilição do compromisso de compra e venda, por parte do promitente comprador, quando se lhe afigurar economicamente insuportável o adimplemento contratual. Nesse caso, o distrato rende ao promissário comprador o direito de restituição das parcelas pagas, mas não na sua totalidade, sendo devida a retenção de percentual razoável a título de indenização (STJ. AgRg no AREsp 730.520/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/08/2015, DJe 28/08/2015). Assim também a Súmula 543 do STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

[52] Vale-se aqui de primoroso estudo de PALHARES, Cinara. A tutela do consumidor excessivamente  endividado como forma de preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana. In http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-13122010-161854/pt-br.php.

[53] O reconhecimento de um dever de renegociar, entendido não como o dever de revisar o contrato extrajudicialmente ou de aceitar as condições sugeridas pelo contratante que sofre o desequilíbrio, mas sim como um dever de ingressar em renegociação, decorre boa-fé objetiva (dever de cooperação) e da função social interna dos contratos (princípio da conservação dos contratos). O dever de renegociar não é o dever de obter um certo resultado, mas sim um dever de comportamento. Desdobra-se em dois aspectos fundamentais: (a) para quem sofre o desequilíbrio, o dever de renegociar impõe informar prontamente o desequilíbrio contratual ao outro contratante, formulando um pleito de revisão do contrato; (b) para quem se beneficia do desequilíbrio, o dever de renegociar impõe analisar, com seriedade, o pleito eventualmente apresentado pelo outro contratante e respondê-lo, ainda que para negá-lo – o que, ao menos, indicará ao contratante que sofre a excessiva onerosidade qual o caminho a adotar.

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Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Estatuto constitucional das relações contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4896, 26 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53850. Acesso em: 19 abr. 2024.

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