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O dever de proteção ao portador de microcefalia à luz dos direitos humanos e o benefício de legislação especial

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Agenda 22/12/2016 às 13:30

Existe responsabilidade civil aquiliana do Estado pela não inobservância do dever de agir para evitar evento danoso que atinge a saúde e a vida de inúmeras famílias brasileiras.

1.Introdução

O trabalho analisa a viabilidade jurídica da concessão de pensão vitalícia indenizatória, aos portadores de microcefalia decorrente de contaminação pelo vírus Zika, nos moldes da percebida pelas vítimas do medicamento Talidomida, com fundamento nas regras universais informadoras dos direitos humanos que, de modo geral, estabelecem o direito à dignidade como princípio essencial. Compara referida pensão com o benefício de prestação continuada, sinalizando para a possibilidade de acumulação de ambos. Examina a responsabilidade civil aquiliana do Estado e o consequente dever de ressarcir o dano motivado pela má prestação do serviço público, pontuando a discussão sobre a garantia de amparo e proteção aos portadores da referida má formação congênita. Apresenta a hipótese de ineficácia da Administração Pública em combater o mosquito Aedes Aegypti, como responsável pela propagação do vírus referido, porque desidiosa mesmo depois de observada a ocorrência do aumento expressivo de casos da enfermidade, tomando medidas paliativas diante de tão grave problema de saúde pública. Conclui que, no caso analisado, estão presentes os pressupostos e requisitos da responsabilidade civil aquiliana do Estado, pela não inobservância do dever de agir, quando estava obrigado a fazê-lo, para evitar o evento danoso que atinge inúmeras famílias brasileiras e, consequentemente, pelo seu dever em ressarcir os prejuízos causados.        


2.Alcance e substrato das normas universais principiológicas em Direitos Humanos afeta à Seguridade Social 

Ao longo de sua trajetória histórica – dinâmica e gradual – o complexo de normas que constituem os direitos humanos vem se propagando por inúmeros aspectos da vida, e em constante evolução, necessariamente, dada sua natureza cultural. Desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, agrupam-se, em seu arcabouço, prerrogativas consideradas básicas e indispensáveis à uma existência humana digna. Despontando como vetor de reconstrução de referencial ético plurinacional, a partir da Segunda Grande Guerra, as normas ditas de primeira geração – ou dimensão – reúnem direitos civis e políticos ligados ao conceito de cidadania, este, atualmente polido pelo ideal da dignidade humana, conforme Elisabete A. Porto (PORTO, 2014): “Com efeito, atualmente a síntese de cidadania vincula-a estreitamente às garantias inerentes aos direitos humanos, com ampla abrangência e cujo escopo é assegurar uma efetiva vida humana digna”.

Posteriormente, as regras expandiram-se no âmbito dos direitos econômicos, sociais e culturais, de segunda geração – trabalho; educação; saúde –, progredindo até alcançar direitos transindividuais, destinados à proteção da coletividade humana, de terceira geração – solidariedade; fraternidade –, e os de quarta geração, orientados às garantias das gerações futuras – vida saudável e em harmonia com a natureza; biotecnologia; e outras.

Estes direitos, definidos por Martin Carnoy (1978, p.11) como “regras para estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana”, foram adotados por via de acordos ou tratados internacionais em inúmeras nações – Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948); Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos (1981); Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (1981); Carta Árabe de Direitos Humanos (1994); Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), entre outros.

Inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), documento produzido sobre bases, tradições e costumes ocidentais, alguns desses instrumentos internacionais apresentam pormenores muitas vezes considerados controversos, inteligíveis apenas quando – e se – analisados sob a ótica dos limites temporais e a perspectiva de suas respectivas nascentes culturais. Todos, entretanto, referem-se à vida e à dignidade humanas como direitos essenciais e invioláveis, devendo ser protegidos e respeitados. Pondere-se, por cautela, que o conceito de dignidade humana, diante de seu caráter cultural, é afetado particularmente, entre os diversos grupos sociais.

As regras universais informadoras dos direitos humanos, dotadas nestes instrumentos, não possuem, em sua maioria, poder vinculante e não integram o campo das normas positivadas, eis que inseridas em simples Resoluções, Declarações ou Atos genéricos. Estes documentos, entretanto, possuem inegável relevância como testemunhos básicos do sistema de proteção internacional dos direitos a que se referem, podendo-se asseverar que integram o chamado quase-direito – soft law – com força normativa limitada, mas bastante pujante, considerando estar fundeada na incontestável robustez dos princípios, com firmeza consolidante, conforme a clássica lição de Celso A. B. de Mello (apud Barroso, 2010, p. 157):

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente para definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais.

É nessa perspectiva que a Seguridade Social se insere como prerrogativa humana indispensável, insculpida no contexto dos direitos humanos de segunda geração, por tratar de garantias sociais baseadas no princípio da igualdade. Alguns autores rechaçam esse emolduramento, considerando-o impróprio, como Fábio Zambitte Ibrahim (2010, p. 483): “para os que admitem a divisão entre gerações ou dimensões, a Seguridade Social, com seu espectro mais amplo de ações, com viés claramente solidarista, somente poderia ser enquadrada como direito de 3ª geração”. Controvérsias à parte, fato é que reconhecida como essencial, a Seguridade Social está inserida nos artigos 22 e 25 da DUDH, que consagram à pessoa humana, na qualidade de membro de uma sociedade, este direito inalienável:

Artigo 22°: Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país.

Artigo 25°: Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

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Em 1952, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou a Convenção nº 102 (ANFIP, 1995, p. 31), definindo o termo Seguridade Social e estabelecendo paradigmas mínimos a serem adotados nos países ratificantes (no Brasil, ratificado pelo Decreto Legislativo nº 269/2008), considerando, naturalmente, os vários aspectos que diferenciam as diversas nações signatárias. Assim, segundo aquele organismo, a Seguridade Social é a: 

Proteção que a sociedade proporciona a seus membros, mediante uma série de medidas públicas, contra as privações econômicas e sociais que, de outra maneira, derivariam do desaparecimento ou da forte redução de seus rendimentos em consequência de enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, enfermidade profissional, desemprego, invalidez, velhice e morte, bem como da proteção em forma de assistência médica e de apoio a famílias com filhos.

Tal qual ocorre com a expressão dignidade humana, o conceito de Seguridade Social dá margem a interpretações divergentes, conforme os dissentimentos socioculturais e político-econômicos locais. Entretanto, também neste caso, embora disparidades ocorram, de modo geral não há discordâncias muito significativas nas versões transnacionais, ao menos entre os países que efetivamente a internalizaram.

Entre nós, a melhor hermenêutica é dada por Wladimir Martinez (2013, p. 383), segundo quem a Seguridade Social significa o “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, quando os cidadãos não os podem obter pelos meios habituais”. Conforme se depreende desse conceito, a efetividade da proteção referida pressupõe a geração de intercâmbios entre entidades governamentais, setores da iniciativa privada e indivíduos que, por meio de políticas sociais, buscam prevenir e combater situações de desamparo, derivadas de riscos biológicos ou socioeconômicos convertidos em prejuízos financeiros que ameaçam a vida humana.

Prevista na Constituição Brasileira de 1988 de forma mais abrangente e flexibilizada, a Seguridade Social é definida, neste documento, como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, conceito pautado na definição da OIT (1952). Assim, está inserida no ordenamento brasileiro sob uma perspectiva tripartite, permeando o direito à saúde, à assistência social e à previdência social numa concepção inovadora e universal. Conforme G. Delgado, Luciana J. e Roberto P. Nogueira (2009, p. 19):

A definição da Seguridade Social como conceito organizador da proteção social brasileira foi uma das mais relevantes inovações do texto constitucional de 1988. A Constituição Federal (CF) ampliou a cobertura do sistema previdenciário e flexibilizou o acesso aos benefícios para os trabalhadores rurais, reconheceu a Assistência Social como política pública não contributiva que opera tanto serviços como benefícios monetários, e consolidou a universalização do atendimento à saúde por meio da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Desta forma, a Seguridade Social articulando as políticas de seguro social, assistência social, saúde e seguro-desemprego passa a estar fundada em um conjunto de políticas com vocação universal.

A saúde está descrita na Carta Magna como um direito de todos e um dever do Estado, devendo ser assegurada por meio de ações preventivas dos riscos de doença e seus agravamentos, e de acesso amplo e irrestrito aos tratamentos eficazes. A assistência social é norteada pelo princípio da gratuidade da prestação e a busca pela proteção de grupos sociais vulneráveis – idosos, crianças, famílias e deficientes que não possuem meios de subsistência – disponibilizando benefícios permanentes ou eventuais. A previdência social, por sua vez, busca assegurar a seus beneficiários – segurados e seus dependentes – meios indispensáveis à manutenção, dos quais necessitem em razão de perda temporária ou permanente da capacidade de gerar renda.

Neste contexto, confrontar a dignidade do homem, como princípio universal, com a seguridade social, direito a ele atrelado, e seus substratos – universalidade da cobertura, seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, caráter democrático de seus subsistemas, entre outros – revela, no arcabouço constitucional dessa prerrogativa, o objetivo e dever do Estado de assegurar cobertura para segmentos populacionais desprotegidos.


3.Benefício assistencial de Prestação Continuada (BCP) e Benefícios indenizatórios de legislação especial – principais distinções

3.1     Benefício de Prestação Continuada (BPC)

O Benefício de Prestação Continuada foi instituído em 1993, pela Loas, entretanto, em razão de entraves orçamentários e adequações administrativas, foi efetivamente implementado apenas em 1996. É assegurado aos idosos, a partir dos 65 anos de idade, e à pessoa com deficiência que não possam prover seu próprio sustento. Seu valor corresponde a um salário mínimo mensal, pago independentemente de prévia filiação, contribuição ou exercício de atividade laboral e mediante comprovação de renda familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo. De natureza universal, é um benefício personalíssimo e intransferível, podendo ser suspenso ou cessado caso as condições que o autorizaram modifiquem-se ou se superem.

Trata-se de benefício assistencial dirigido a um público historicamente preterido da proteção social e altamente vulnerável, seja pela idade avançada, seja pela deficiência, ambas devendo estar associadas ainda à condição de miserabilidade. Os requisitos para sua concessão diferem-se quanto à natureza. A limitação da idade é critério de natureza objetiva, estando atualmente definida, na legislação ordinária, como em 65 anos ou mais. Sua aplicabilidade é incontroversa. A renda mínima é critério ao qual vem se atribuindo natureza híbrida pois, conquanto a norma que o estabelece traga em seu bojo o valor monetário definido como suficiente para aferir a miserabilidade do pretendente ao benefício, o conceito conferido a este vernáculo guarda premente subjetividade e deve ser articulado com a definição de vulnerabilidade social. Assim, embora inflexível em âmbito administrativo, no Poder Judiciário este requisito é interpretado de maneira relativizada considerando-se, além do pressuposto de ordem objetiva, circunstâncias subjetivas do caso concreto, para conceder o benefício àqueles que, apesar da renda familiar extrapolar o limite legal estabelecido, estão em situação de miserabilidade. Tal premissa não é criação jurisprudencial, mas adequação do texto legal ordinário aos preceitos constitucionais que devem nortear a atuação estatal.  

O requisito da deficiência se mostra de compreensão mais complexa. Isso porque a inteligência desse termo, para fins de percepção do benefício em comento, prestou-se a polêmicas e incongruências ao longo de sua trajetória legislativa, a partir da Constituição Federal de 1988.  Inicialmente conceituado pelo legislador ordinário, em 1993, como a incapacidade para a vida independente e para o trabalho, teve sua definição ampliada em 1995, para acrescer a descrição das causas dessa incapacidade, trazendo para sua redação os termos “anomalias, lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênitas ou adquiridas”, que venham a impedir o desempenho das atividades da vida diária e do trabalho. Em 2007, passou a ser entendido como fenômeno multidimensional que limita o desempenho de atividade, restringe a participação na vida social, com redução efetiva e acentuada da capacidade de inclusão. Mas ainda se achava incompleto ou impreciso.

Em 2009, o Brasil ratificou os termos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, assinado em Nova York e, inspirado em sua definição, pacificou internamente em 2011, o conceito de deficiência, definindo-a, para fins de percepção do benefício assistencial, como impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial que, pelo período mínimo de dois anos, e em interação com outras barreiras, possa obstruir seu portador à participação plena e efetiva na sociedade. Entretanto, agregando critério temporal, de ordem objetiva, limitando a transitoriedade ao dispor prazo não previsto no conceito constitucional, internalizado pela ratificação da Convenção Internacional, já aludida, o legislador restringiu o acesso ao benefício. Tal assertiva leva alguns autores a questionarem sua constitucionalidade, como pondera Melissa Folmann e João Marcelino Soares (2011):

Perceba-se que a Convenção de Nova Iorque não estipulou prazo algum para o impedimento, somente se referindo ao termo longo prazo. Foi o legislador infraconstitucional que impôs um limite objetivo de 2 anos, inspirado, talvez, pela determinação do art. 21 da Lei nº 8.742/93 de que a concessão do benefício deve ser reavaliada bienalmente.

O problema reside em como interpretar esse limite objetivo diante do caso concreto e em consonância com a premissa da incapacidade para a vida independente e para o trabalho que aflige o cidadão de forma temporária.

Diante disso, pode-se indagar: a) o requisito objetivo de 2 anos é constitucional e convencional?  b) e tal requisito é absoluto ou pode ser conjugado com outros fatores que demonstrem a incapacidade do requerente?, e c) como fica a proteção social ao cidadão que não se enquadrar no critério dos 2 anos?

A discussão está longe de ser pacificada e, sob pena de deixar à míngua aquele que necessita de amparo assistencial, o critério temporal deve ser relativizado e conjugado a outros fatores, como grau de intensidade da incapacidade e circunstâncias que afetam a vida do portador, para aferir a existência de necessidade imediata do benefício. Neste sentido, assevera José Antônio Savaris (2005):

A verdade, porém, é que o portador de deficiência que se encontra abaixo da linha de pobreza e incapacitado para o trabalho jamais estará coberto pelo plano oficial da previdência social. Então, encontrar-se-ia o portador de deficiência num ‘buraco negro’, num vazio de proteção do Estado, já que considerado infeliz demais para se filiar à previdência e infeliz de menos para fazer jus à prestação pecuniária da assistência social, escapando, portanto, da universalidade de cobertura da seguridade social, princípio insculpido no art. 194, I, da Constituição Federal.

Neste contexto, o benefício de prestação continuada é devido ao idoso, a partir de 65 anos e em situação de miserabilidade, e à pessoa portadora de deficiência cujos impedimentos limitem suas atividades e restrinjam sua participação na vida social de maneira generalizada, não apenas no tocante ao trabalho. A deficiência não pode ser considerada apenas pelos atributos pessoais, mas num complexo de fatores, internos – funções do corpo – e externos – ambientais, e deve estar associada à incapacidade de gerar seu próprio sustento ou tê-lo provido pela sua família, segundo critério de aferição de miserabilidade.     

3.2     Benefícios de legislação especial

Benefícios de legislação especial são aqueles criados mediante lei para atender a demandas de proteção social, de caráter individual ou coletivo, geradas por fatos extraordinários e de repercussão nacional, ou para atender a determinadas categorias profissionais. Sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro “nem sempre observou demandas considerados socialmente justas, e ainda sem o menor cuidado com o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário” (Zambitte, 2010).

As chamadas aposentadorias especiais profissionais, do jornalista, do atleta de futebol e do aeronauta, instituídas e cessadas em leis e momentos históricos diversos, são exemplos desses benefícios. Alguns extintos expressamente, em legislação ordinária, e outros tacitamente, com o advento da Emenda Constitucional nº 20/1998, que proíbe a adoção de requisitos e critérios diferenciados para concessão de benefícios de aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – exceto aposentadoria especial mediante comprovação de exposição a agentes nocivos. Suas normas previam diminuição no tempo de serviço, para concessão do benefício, entre outras prerrogativas. Outros benefícios desse gênero, estes de natureza indenizatória, são mantidos ou instituídos até os dias atuais, a exemplo da pensão aos portadores da Síndrome de Talidomida; Pensão aos Portadores de Hanseníase – segregados, e Pensão por Acidente Nuclear com Césio 137. Todos decorrentes do reconhecimento da responsabilidade civil do Estado pelo dano causado aos seus beneficiários.

As vítimas do medicamento Talidomida são os bebês de mulheres que, ainda no período de gestação, utilizaram um sedativo e hipnótico – Talidomida – no combate aos enjoos matinais. Seus filhos apresentaram, como efeitos teratogênicos, a focomelia – aproximação ou encurtamento dos membros junto ao tronco –, má formação congênita que, dependendo do grau de comprometimento dos membros afetados, pode dificultar ou mesmo impedir o desempenho de atividades cotidianas e laborais. Comprovado tal efeito nos seres humanos, os países cessaram rapidamente sua comercialização, o Brasil, entretanto, tardou mais quatro anos para tomar providência necessárias ao combate a esta Síndrome, corroborando para que inúmeros outros casos ocorressem em nosso território devido à negligência da administração pública em sua contenção. Desavisadas, as mães continuaram a consumir a droga e seus filhos nasceram com deformidades congênitas. Por esta razão, e depois de muitos apelos e reivindicações das vítimas, a maioria já adultos, o Governo instituiu uma pensão especial para indenizá-los.

Os portadores de Hanseníase – Lepra, Doença de Lázaro, Morfeia – sofrem, até os dias atuais, preconceitos pelo estigma que acompanha sua enfermidade. Embora de cura conhecida, a Hanseníase ainda provoca repulsa e intolerância na maioria da população. Trata-se de uma doença infectocontagiosa que causa danos severos à pele e aos nervos. Doença antiga e endêmica em alguns países tropicais, no Brasil, passou a ter tratamento diferenciado pelas autoridades administrativas no Século XIII. Segundo Wagner de Oliveira Pierotti (2016) “observou-se a adoção de medidas por parte das autoridades coloniais e entidades filantrópicas, surgindo as sociedades Protetoras dos Lázaros”. Posteriormente, foram construídos hospitais especializados no tratamento e controle da doença, e depois asilos-colônias, onde os doentes, muitas vezes capturados contra sua vontade, eram internados e segregados, isolados compulsoriamente, devendo permanecer ali até sua morte. Esses asilos eram verdadeiras cidades, com controle interno e autossuficientes, onde se viam plantações, escolas e toda uma infraestrutura administrativa, cuja função era proteger a população externa, dita sadia.

Inicialmente visto como única forma de controle da endemia, essa separação completa foi paulatinamente modificada e considerada desumana. O isolamento compulsório foi abolido em 1962, mas foi apenas no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 que estes internos passaram a poder optar pela saída dessas cidades-colônias. Muitos não tinham família ou abrigo fora dessas instalações e preferiram ficar. Em 1986 o governo reconheceu as atrocidades cometidas na implantação dessas cidades-colônias e instituiu pensão vitalícia, indenizatória, para os egressos desses ambientes até o ano de 1986.

O acidente radioativo com o Césio-137 ocorreu em Goiânia/GO, em 1987. Depois de encontrar um aparelho hospitalar utilizado em radioterapia, abandonado nas ruínas de uma antiga clínica, no centro de Goiânia, catadores de lixo o venderam para o dono de um ferro-velho que desmontou o equipamento e teve contato direto com o elemento radioativo cloreto de césio-137 que, por sua beleza e esplendor – na ausência de luz irradia brilho azul – foi distribuído entre os membros da família. A absorção foi imediata e, pelo alto grau de irradiação e sua qualidade hidroscópica, afetou cerca de mil moradores da cidade. Sobre o tema:

Após 25 anos do maior acidente radioativo do Brasil, as pessoas que tiveram contato direto ou indireto com a cápsula contaminada ainda sofrem. Vivem marcadas pela expectativa sempre presente de desenvolver doenças decorrentes à exposição ou pelo estigma perante à sociedade, nunca superado.    

Na época, o Governo omitiu dados da população em geral, gerando terror entre os moradores da cidade. Muitos atingidos pelo elemento morreram. Em 1996, o poder público assumiu a responsabilidade pelo descaso e lentidão no tratamento das vítimas, concedendo-lhes pensão vitalícia paga em decorrência do acidente nuclear. O benefício é garantido a todo aquele que foi afetado, direta ou indiretamente pela contaminação. Até os dias atuais há notícia de pessoas com sequelas desse acidente.

As despesas decorrentes desses benefícios são pagas pela União por meio da conta do antigo Encargo Previdenciário da União – EPU, hoje Programa Orçamentário para Indenizações e Pensões Especiais de Responsabilidade da União, cujos recursos são oriundos do Orçamento Fiscal e do Orçamento da Seguridade Social. Na Constituição Federal não existe restrição à sua concessão, tampouco há legislação infraconstitucional que discipline a matéria, por esta razão o legislador ordinário edita normas específicas na instituição desses benefícios, obedecendo aos mais variados, aleatórios e subjetivos critérios: relevância na vida pública, redução ou perda de capacidade laborativa, vítimas de atentados políticos, anistiados, etc., e cujos requisitos obedecem igualmente às mesmas incertezas.  A título ilustrativo cita-se a pensão especial concedida à tetraneta de Tiradentes, que recebe pensão vitalícia em razão de seu parentesco com o herói nacional.

Em razão da ausência de regulamentação, os benefícios vêm sendo utilizados de forma discriminatória, nem sempre obedecendo a critérios justos, prestando-se, por exemplo, a laurear pessoas de destaque em suas atividades profissionais, que já desfrutam de respeito nacional e honrarias as mais diversas, e não estão inseridas em critérios razoáveis que apontem a necessidade de sua percepção, como diminuição ou perda da capacidade laboral. Neste sentido, conclusão apresentada em estudo realizado pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados (2006):

Dessa forma, uma vez que não existe legislação sobre a matéria, a concessão de pensão especial, pelo Estado, carece de lei específica e sua motivação deveria ater-se aos casos de indenização ou substituição do rendimento de cidadão, vítima de danos, da perda parcial ou total de sua capacidade laborativa ou de morte, situações essas que apresentem como condicionantes, entre outros similares, que tenham ocorrido em dependências de responsabilidade da União ou sido causadas por atentados políticos ou agentes públicos.

Essas benesses são também concedidas às vítimas de danos diversos causados por ação, omissão ou negligência do Poder Público, com apuração de responsabilidade civil da União. Das considerações apresentadas, em síntese, eis que não é objeto deste artigo análise apurada sobre o tema, aduz-se que o BPC e os benefícios de legislação especial não se confundem e são cumuláveis. O benefício de prestação continuada é disciplinado rigorosamente em lei, possui critérios de concessão claros e definidos, além de requisitos preestabelecidos; é dirigido ao idoso ou deficiente carente, que não possa provir seu próprio sustento nem o ter provido por seus parentes, mesmo que jamais tenha contribuído para o sistema de seguridade social, e cujo grupo familiar viva em situação de miserabilidade. Sua natureza é assistencial. Por outro lado, os benefícios de legislação especial são instituídos a qualquer cidadão que se enquadre nos requisitos eleitos pelo órgão concessor, e cujos critérios de concessão são variáveis conforme a causa que lhes for atribuída; podendo ser individuais ou dirigidos a uma coletividade específica. Sua natureza indenizatória justifica a concessão às vítimas de danos decorrentes do serviço público, da ausência, da má prestação ou da prestação tardia desse serviço a que estava obrigada a Administração Pública, por força de lei.  

Sobre a autora
Elisabete Porto

mestra em ciências jurídicas pela UFPB, pós-graduada em direito previdenciário, professora, autora, palestrante, diretora do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário e advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Elisabete. O dever de proteção ao portador de microcefalia à luz dos direitos humanos e o benefício de legislação especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4922, 22 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54309. Acesso em: 2 nov. 2024.

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