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A teoria da separação dos poderes e as constituições brasileiras

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Agenda 20/06/2017 às 12:42

A importância da teoria de Montesquieu até os dias de hoje é incontestável, mesmo após mais de 200 anos de seu surgimento. Conheça um pouco mais sobre suas ideias - atuais, modernas e atrativas - e como se pode dizer que elas compuseram alguns textos constitucionais mundo afora, sobretudo no Brasil.

1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

Seria inadmissível propor um estudo acerca da teoria da separação dos poderes e não se debruçar, ao menos de forma breve, sobre os seus antecedentes históricos, isto é, sobre os fatos que permitiram a sua formação e desenvolvimento ao longo do tempo, garantindo-lhe, hoje, espaço nos mais variados textos constitucionais.

Tal como ocorre com diversas outras teorias jurídicas, a análise histórica da teoria da separação dos poderes remete, inexoravelmente, à Grécia Antiga, porquanto, conforme ensina Pedro Lenza, “as primeiras bases teóricas para a ‘tripartição de Poderes’ foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política”[1].

Ao elaborar a referida obra, constatou o pensador grego a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam: “a função de elaborar normas gerais e abstratas (função legislativa), a função de aplicar essas normas gerais e abstratas aos casos concretos (função executiva) e a função de dirimir os conflitos eventualmente havidos na aplicação de tais normas (função de julgamento)”[2].

Tal diagnóstico contribuiu, sensivelmente, para o desenvolvimento da teoria da separação dos poderes, no entanto, certo é que a contribuição do pensador grego limitou-se, unicamente, à identificação das três funções estatais (legislativa, executiva e de julgamento), isso porque, em momento algum, Aristóteles pensou em uma divisão dessas funções – exercidas àquela época, exclusivamente, pelo soberano –, a fim de conter eventuais abusos no exercício do poder.

Foi somente muitos anos depois, mais precisamente, nos séculos XVII e XVIII, que a teoria da separação dos poderes passou, efetivamente, a ganhar forma, o que se deu, sobretudo, a partir dos filósofos John Locke e Montesquieu.

Defende-se a contribuição do inglês John Locke em virtude de sua obra Segundo tratado do governo civil, publicada em 1690, em que se “sustentou os princípios de liberdade política da gloriosa revolução inglesa de 1688 e impugnou o absolutismo real”[3]. Em suma, o que John Locke fez, na mencionada obra, foi teorizar a “separação de poderes” (“função legislativa, de um lado, e funções executiva e federativa, de outro”[4]), com base nas experiências inglesas do final do século XVII.

A respeito do papel de John Locke, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, remetendo-se à Revolução Gloriosa (1688-1689), anota:

A divisão funcional dos poder – ou, como tradicionalmente se diz, a “separação de poderes” – que ainda hoje é a base da organização do governo nas democracias ocidentais, não foi invenção genial de um homem inspirado, mas sim é o resultado empírico da evolução constitucional inglesa, qual a consagrou o Bill of Rights de 1689.

De fato, a “gloriosa revolução” pôs no mesmo pé a autoridade real e a autoridade do parlamento, forçando um compromisso que foi a revisão do poder, reservando-se ao monarca certas funções, ao parlamento outras e reconhecendo-se a independência dos juízes.

Esse compromisso foi teorizado por Locke, no Segundo tratado do governo civil, que justificou a partir da hipótese do estado de natureza.[5]

Em que pese o significativo papel de John Locke, é pacífico, contudo, que o maior responsável pelo aprimoramento e desenvolvimento da teoria da separação dos poderes foi o filósofo francês Montesquieu, a partir da obra O espírito das leis, publicada em 1748, que descreveu o arranjo institucional inglês havido na primeira metade do século XVIII, indicando, ao mesmo tempo, uma estrutura de poderes capaz de prevenir o absolutismo[6].

Sob a premissa de que “todo homem que tem poder é levado a abusar dele”[7], Montesquieu empenhou-se em desenhar e apresentar uma estrutura de poderes, em que o poder limitava o poder (le pouvoir arrête le pouvoir). Para tanto, propôs a distribuição de cada uma das funções essenciais do Estado (legislativa, executiva e de julgamento) – identificadas por Aristóteles na antiguidade grega – para diferentes órgãos, sem qualquer subordinação entre eles, a fim de permitir “um controle recíproco e automático de cada qual pelos demais”[8].

Desse modo, Montesquieu, destrinchando as funções estatais, indicou a existência de três diferentes poderes – poder legislativo, poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e poder executivo das coisas que dependem do direito civil[9] –, afastando a ideia de concentração destes na mão de uma única pessoa (monarca absolutista) e estabelecendo um “controle automático do exercício do poder”[10], em clara contraposição ao absolutismo.

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Conforme se extrai da obra O espírito da lei, Montesquieu atribui ao poder legislativo a elaboração de leis, por certo tempo ou para sempre, bem como a correção e revogação de leis já elaboradas; ao poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, ou, simplesmente, poder executivo, atribui a declaração de guerra ou de paz, o envio ou recebimento de embaixadas, o estabelecimento de segurança e a prevenção de invasões; por fim, ao poder executivo das coisas que dependem do direito civil, ou, simplesmente, poder de julgar, atribui as punições pelos crimes e os julgamentos das querelas dos indivíduos[11].

A partir dessa estrutura, sustentou o filósofo francês que o poder de julgar seria neutralizado em si mesmo – em virtude do modo de composição dos tribunais (“júris”) e da forma dos juízes decidirem (aplicação pura da lei) –, e que os poderes legislativo e executivo, por seu turno, se neutralizariam pela comunhão de suas funções, ou melhor, pela comunhão de suas faculdades de estatuir e de impedir[12].

A título de exemplo, no que tange à relação entre o poder legislativo e o poder executivo, uma lei somente poderia ser aprovada – dentro da estrutura proposta por Montesquieu –, se a câmara baixa (elemento democrático), a câmara alta (elemento aristocrático) e o poder executivo (elemento monárquico) assim consentissem. Isso porque, sendo exercida a faculdade de impedir (rejeição/veto) por qualquer um, prejudicada estaria a aprovação da lei. Vale ressaltar, que a faculdade de impedir (“direito de tornar nula a resolução tomada por outrem”[13]), para Montesquieu, é absoluta, isto é, inadmite superação.[14]

Referida estrutura de poderes apresentada por Montesquieu, certamente, possui grande impacto até os dias de hoje, não apenas compondo diversos textos constitucionais, mas alicerçando e fundando diversos Estados. Importante ressaltar, contudo, que o que se observa, em verdade, é a preservação da essência da teoria apresentada pelo filósofo, porquanto inúmeras alterações são concebidas, sobretudo para flexibilizá-la.


2. A TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E AS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS (1824, 1891, 1934, 1937, 1946 E 1967)

Do mesmo modo que serviu de inspiração para as revoluções americana (1765-1783) e francesa (1789-1799), a teoria da separação dos poderes de Montesquieu, também, inspirou os textos constitucionais brasileiros, que trouxeram – cada um a seu modo – os pensamentos do filósofo francês.

Nesse sentido, pode-se afirmar que, até mesmo a Constituição Política do Império do Brasil de 1824, ou, simplesmente, Constituição imperial, como é comumente designada, trouxe “elementos” da teoria de Montesquieu, tal como: a defesa de uma separação dos poderes[15]. Dispunha o texto constitucional, em seu art. 9o, que “a divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias, que a Constituição oferece”.

Certo é, contudo, que, em que pese a Constituição tenha defendido uma “separação de poderes” (art. 9o), é bem verdade, que a estrutura de poderes implementada no Brasil imperial distinguia – e muito – do modelo proposto pelo filósofo francês, isso porque, o texto constitucional de 1824 acabou reconhecendo não apenas três, mas quatro poderes: legislativo, executivo, judiciário e moderador (art. 10). Não obstante significativa alteração, a Constituição de 1824 atribuiu, ainda, ao poder moderador – exercido pelo Imperador –, o controle dos demais poderes.

Verifica-se, portanto, que, apesar de “resquícios” da teoria de Montesquieu, o texto constitucional imperial encontrava-se muito distante daquela estrutura de poderes proposta.

A segunda Constituição brasileira – Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 –, que além de instituir a república, instituiu também a federação e o presidencialismo, não só extinguiu o poder moderador, como também, estabeleceu uma estrutura de poderes “mais próxima” daquela apresentada por Montesquieu, dispondo, em seu art. 15, que “são órgãos da soberania nacional o poder legislativo, o executivo e o judiciário, harmônicos e independentes entre si”.

Conforme se pode observar, o texto constitucional de 1891, além de defender e estabelecer a separação de poderes, sustentou, ainda, a “independência” dos poderes.

Como o texto previa a cláusula de inacumulabilidade de funções (art. 79), mas não proibia expressamente a delegação de funções, tornou-se muito comum o poder executivo legislar – sobretudo após a crise de 1929 –, colocando “em risco” a separação de poderes (ao menos nos moldes idealizados pelo filósofo francês)[16].

Ressalta-se, nesse ponto, que Montesquieu não somente era contra o poder executivo legislar, como também era contra o poder executivo apresentar, até mesmo, projetos de lei, isto é, iniciar o processo legislativo[17].

Com amparo ideológico na Constituição alemã de 1919 e na Constituição espanhola de 1931, no dia 16 de julho de 1934, foi promulgado um novo texto constitucional – Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 –, que buscou, de igual modo, defender e promover a separação de poderes, dispondo, em seu art. 3o, caput, que “são órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os poderes legislativo, executivo e judiciário, independentes e coordenados entre si.”.

Como se observa pelo art. 3o, caput, além da expressão “independentes”, o texto constitucional de 1934 inseriu, também, a expressão “coordenados entre si”. Assim, estabelecia, em seu capítulo V, as normas relativas à “coordenação de poderes”, onde atribuía ao Senado Federal a função de coordenar os poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos da sua competência (art. 88).

Desse modo, a Constituição de 1934 acabou atribuindo ao Senado Federal, um papel semelhante ao desempenhado pelo poder moderador, durante o regime imperial, “desordenando”, de certo modo, a separação de poderes[18].

Não obstante, vale ainda constar, que diferentemente da Constituição de 1891, o texto de 1934 previa a cláusula de inacumulabilidade de funções (art. 3o, § 2o) e, também, a proibição expressa de delegação de funções (art. 3o, § 1o).

O maior descaso à teoria da separação de poderes ocorreu com a segunda Constituição da Era Vargas – Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 –, editada com o nítido propósito de conferir uma aparência de legalidade ao Estado Novo, período comumente designado de ditadura varguista.

Diferentemente dos textos constitucionais anteriores, a Constituição de 1937 foi a única a não prever, expressamente, o princípio da separação de poderes. Não obstante esta ausência, o texto concedeu, ainda, extensos poderes ao Presidente da República, tratado na Constituição, inclusive, como “autoridade suprema do estado”[19].

Não bastassem as inúmeras autorizações para legislar (arts. 12 a 14), o Presidente da República, entendendo necessária ao bem estar do povo ou à promoção/defesa de interesse nacional, determinada lei declarada inconstitucional, podia submetê-la novamente ao Parlamento, que, por sua vez, poderia afastar os efeitos da decisão do Tribunal, por dois terços dos votos em cada uma das Câmaras (art. 96, parágrafo único).

Referida norma, como se pode observar, trata-se de uma verdadeira afronta à separação de poderes, porquanto admite “que o juízo do Presidente da República acerca do que é necessário ao ‘bem-estar do povo’ ou revelador do ‘interesse nacional’ pode passar por cima do que é inconstitucional”[20].

Como se observa, a Constituição de 1937 pouco se ateve ao equilíbrio entre os poderes, porquanto enfraqueceu, nitidamente, os poderes legislativo e judiciário, em favor do poder executivo, que somava inúmeras atribuições – distanciando-se muito da teoria clássica da separação de poderes.

Após quinze anos no poder, no dia 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas foi derrubado do governo, e, com o início de uma nova era, surgia um novo texto constitucional, tal seja, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, que trouxe consigo o princípio da separação dos poderes, ao dispor, em seu art. 36, que “são poderes da União o legislativo, o executivo e o judiciário, independentes e harmônicos entre si.”.

Referido texto constitucional, “fruto do movimento de redemocratização e reconstitucionalização instaurado no País”[21], buscou restabelecer a harmonia entre o legislativo, executivo e judiciário, reduzindo, para tanto, o extenso rol de poderes atribuídos ao executivo, na Constituição de 1937.

Nesse sentido, retirou-se do texto constitucional, por exemplo, a possibilidade de o Presidente da República submeter novamente ao Congresso Nacional determinada norma declarada inconstitucional, o que correspondia, a bem da verdade, a um atentado ao poder judiciário e à estrutura de poderes como um todo.

Seguindo o passo de constituições anteriores, a Constituição de 1946 trouxe, também, a cláusula de inacumulabilidade de funções, ao afirmar, no art. 36, § 1o,  que o cidadão investido na função de um dos poderes não poderia exercer a de outro.

Certo é, que a Constituição de 1946 cumpriu com o seu papel de restabelecer a democracia, bem como o equilíbrio entre os poderes. No entanto, ainda na vigência deste texto constitucional, os militares destituíram o então Presidente João Goulart e assumiram o governo, dando início ao regime militar e passando a, frequentemente, desrespeitar a Constituição.

Após alguns anos de regime militar, os militares buscaram editar um novo texto constitucional, que, assim como a Constituição de 1937, conferisse uma aparência de legalidade ao regime. Foi, justamente, nesse contexto, que adveio a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967.

Em que pese tenha estabelecido, em seu art. 6o, que “são poderes da União, independentes e harmônicos, o legislativo, o executivo e o judiciário”, na prática, não se verificava um equilíbrio entre os poderes, mas, sim, uma prevalência do executivo, sobretudo após a Emenda Constitucional 1/1969, quando as hipóteses de cabimento de decreto-lei foram significativamente ampliadas[22].

Não obstante, cumpre ainda ressaltar, que a Constituição de 1967 previa a cláusula de inacumulabilidade de funções (art. 6o, parágrafo único, 2a parte), assim como a proibição expressa da delegação de funções (art. 6o, parágrafo único, 1a parte), no entanto, em relação a esta última, abria espaço para exceções, relativizando, ainda mais, a teoria clássica da separação de poderes.

Como se observa, da Constituição imperial à Constituição de 1967, constatam-se inúmeros “traços” e “elementos” da teoria de Montesquieu. No entanto, certo é, que cada um dos textos constitucionais cuidou da separação dos poderes ao seu modo, apresentando, em todos os casos, alterações substanciais em relação à estrutura de poderes clássica idealizada pelo filósofo francês.

Em suma, pode-se afirmar, que a divisão rígida dos poderes foi substituída por uma divisão mais flexível – fenômeno este que se configurou não apenas no Brasil, mas nos mais diversos Estados e ordenamentos jurídicos.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Felipe Aires Coelho. A teoria da separação dos poderes e as constituições brasileiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5102, 20 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58528. Acesso em: 23 dez. 2024.

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