4. O desenvolvimento da audiência de apresentação da pessoa presa e alguns aspectos práticos.
4.1. Quem é a pessoa presa que deve ser apresentada?[72]
Cremos que toda e qualquer pessoa que, sob quaisquer circunstâncias, sofrer cerceio em seu direito à liberdade, não sendo imediatamente libertada, deve ser levada perante a autoridade judiciária para a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP) e, só posteriormente, sendo o caso, pode ser encaminhada ao Sistema Penitenciário.[73] Estamos, aqui, referindo-nos à prisão penal: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão temporária[74] e prisão definitiva[75]; bem como a prisão extrapenal, como é o caso da prisão civil do devedor de alimentos[76], e a prisão militar[77], prisão para extradição ou expulsão (questão migratória)[78] e da apreensão do adolescente.[79] Repetimos, toda e qualquer pessoa que tiver cerceada a sua liberdade e não for libertada imediatamente deve ser levada perante a autoridade judiciária para audiência de apresentação da pessoa presa.
Façamos alguns necessários esclarecimentos terminológicos. Podemos falar em pessoa presa como aquela que por quaisquer circunstâncias veio a ser presa, detida, retida ou até mesmo apreendida. Isso significa que estamos utilizando o vocábulo prisão no sentido geral para expressar restrição da liberdade de alguém. Mas, na técnica jurídica, podemos dizer que a prisão normalmente decorre de mandado judicial para a pessoa cumprir pena. O termo (prisão) está sempre ligado à questão penal e implica condenação definitiva já com trânsito em julgado, então, a prisão é o mesmo que levar a pessoa para ingressar no Sistema Penitenciário onde vai cumprir pena. O vocábulo detenção ou restrição tem um sentido mais elástico, pois pode englobar tanto a natureza penal como a natureza extrapenal. Podemos referir que a pessoa foi detida em razão de uma prisão cautelar, seja decorrente de uma prisão temporária ou preventiva; ainda, a pessoa pode ser detida por dívida de alimentos, pode ser detida por autoridade militar (em caso de transgressão militar – máximo de 30 dias – CRFB, art. 5.º, LXI), por autoridade judiciária militar (justiça militar), pode ser detida para fins de extradição (mandado judicial) ou expulsão (detenção por autoridade da imigração), pode ser detida por ato infracional (apreensão em flagrante ou apreensão por mando judicial). Como percebemos, podem ocorrer prisões de natureza penal e de natureza extrapenal. A regra é que a pessoa tenha a sua detenção determinada por autoridade judiciária: prisão temporária, prisão preventiva, prisão militar (justiça militar) ou mesmo a prisão decorrente de dívida alimentar; prisão para fins de extradição; ou a apreensão do adolescente; também, pode existir detenção sem mandado da autoridade judiciária, como é o caso da prisão em flagrante delito ou da prisão por transgressão militar. Some-se ainda no rol da detenção, a apreensão do adolescente, seja a apreensão provisória (não pode ultrapassar 45 dias) seja a apreensão definitiva para cumprir medida socioeducativa de internação (não pode ultrapassar 3 anos). Não temos dúvidas em afirmar que o cerceio da liberdade da pessoa, não sendo prontamente colocada em liberdade, deve ser apresentada à autoridade judiciária para a audiência de apresentação da pessoa presa. Isso, portanto, independe se estamos diante da prisão, da detenção ou retenção ou da apreensão da pessoa.
4.2. A quem a pessoa presa deve ser apresentada? Em termos de legislação brasileira, a pessoa presa deve ser apresentada à autoridade judiciária para a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP).
Mencionamos a autoridade judiciária porque a pessoa presa, em regra, deve ser apresentada ao juiz estadual ou federal, no entanto esse juiz pode ser um Desembargador ou Ministro nos casos de foro privilegiado. É a preservação do princípio do juiz natural.[80] Embora respeitemos opiniões contrárias, não compartilhamos do entendimento segundo o qual a pessoa presa pode ser apresentada ao Delegado de Polícia e com isso se satisfaz a norma de direitos humanos sobre o assunto.[81] A autoridade judiciária, como agente política, componente do Estado-Juiz, dotada de autonomia expressa na inamovibilidade e na vitaliciedade, detém imparcialidade suficiente para presidir a audiência de apresentação da pessoa presa – que é um ato judicial, pré-processual, encerrando natureza de garantia de direito fundamental. Ademais, é a autoridade judiciária que detém o poder amplo, limitado apenas pela lei, de apreciar e decidir sobre a legalidade, a regularidade e a liberdade concernente à prisão de qualquer pessoa no Brasil.[82]
4.3. Em que prazo a pessoa presa deve ser apresentada?
No Brasil, o prazo de apresentação da pessoa presa à autoridade judiciária deve ser o já consagrado de 24 horas a contar da prisão com o encaminhamento do auto flagrancial ao juiz competente (Código de Processo Penal, art. 306, §1º). Então, em toda e qualquer prisão, após a efetivação desta, a pessoa presa, no prazo máximo de 24 horas, deve ter comunicada a prisão à autoridade judiciária e junto com essa comunicação deve ser levada a pessoa presa e entregue para a imediata instalação da audiência de apresentação da pessoa presa.[83]
4.4. Quais as contribuições da audiência de apresentação da pessoa presa para a humanização do direito penal e do processo penal no Brasil?
Em termos de direito penal, pensamos que a grande humanização cabe à imediata possibilidade de responsabilizar o agente estatal que cometer abusos no ato da prisão, seja por maus-tratos ou por torturas.[84] Em termos de direito processual penal, temos que são duas contribuições, a saber: a) não permitir que a pessoa presa no Brasil ingresse no Sistema Penitenciário sem antes ter contato com a autoridade judiciária[85]; e b) não permitir que, em caso de prisão em flagrante, seja convertida em prisão preventiva sem antes as partes serem ouvidas; assim, estará proscrita essa modalidade de prisão preventiva de ofício, exceto no decorrer do processo.[86] Ambas as hipóteses se consubstanciam em importantes marcos rumo à humanização do processo penal.
4.5. Quais são as consequências decorrentes da não realização da audiência de apresentação da pessoa presa?
A consequência pela não apresentação da pessoa presa no prazo de 24 horas, após sua prisão, para a audiência, é que a prisão se torna ilegal, devendo a pessoa ser colocada em liberdade mediante relaxamento da prisão. Em razão de a audiência de apresentação da pessoa presa ser um ato judicial pré-processual, com a natureza de garantia de um direito fundamental, não vai operar qualquer nulidade, mas vai tornar a prisão ilegal, tornando, então, passível sua liberação. É o mesmo caso que ocorre hoje com a falta de comunicação da prisão em flagrante, no prazo legal de 24 horas (Código de Processo Penal, art. 306, §1º).
Mas e nos casos de a pessoa presa não ser apresentada perante a autoridade judiciária para a audiência no prazo de 24 horas?
Cabe à autoridade judiciária designar audiência de apresentação da pessoa imediatamente, requisitá-la e ouvi-la quanto às suas finalidades e, ao final da audiência, colocá-la em liberdade em consequência da ilegalidade da prisão, pela não apresentação para realização do ato judicial no seu devido tempo.[87] Pensamos ser esse o caminho para regularizar em definitivo o instituto no Brasil. Cabendo aos juízes e aos Tribunais atentarem para a seriedade do respeito a um direito fundamental da pessoa presa, portanto, em situação vulnerável.
No entanto, não pretendemos ser radicais, num primeiro momento de ajuste e consolidação do instituto, do que não se pode abrir mão, doravante, é da realização da audiência de apresentação da pessoa presa, se possível, em até 24 horas da prisão. Contudo a situação do caso concreto poderá justificar, excepcionalmente, a dilação desse prazo.[88] O que não pode, em hipótese alguma, é deixar de ser realizada a audiência de apresentação[89], sob pena de ineficácia dos tratados internacionais de direito humanos e sujeição do Brasil à condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.[90]
No Brasil, a jurisprudência emanada do STJ[91] tem revelado excessiva tolerância quanto ao descumprimento do direito fundamental da audiência de apresentação da pessoa presa.[92] Em primeiro lugar, não tem demonstrado preocupação relativa à pessoa presa não ter sido apresentada à autoridade judiciária para a audiência no prazo de 24 horas de sua prisão. Em segundo lugar, por permitir que a pessoa continue presa mesmo sem realização da audiência de apresentação, ora sob o argumento de falta de regulamentação do instituto, ora por supressão de instância.[93] Ao persistir tal interpretação, temos que a Corte Interamericana de Direitos Humano será desafiada a decidir a respeito, sendo que, em casos de falta de realização da audiência de apresentação, a jurisprudência daquela corte sempre foi no sentido de considerar a prisão arbitrária.[94] Antes que isso aconteça, cabe ao Conselho Nacional de Justiça tomar as providências para que a sua Resolução 213/2015 seja efetivamente cumprida em todo o território nacional e em todas as instâncias do Poder Judiciário.[95]
Mas, por sua vez, o STF tem demonstrado apreço ao instituto da audiência de apresentação da pessoa presa. Por seu Plenário, em julgamento da ADPF 347 MC/DF, em 9 de setembro de 2015, reconheceu a obrigatoriedade da realização da audiência de apresentação da pessoa presa, no prazo de 24 horas da prisão. E orientou que o Poder Judiciário brasileiro adote tal providência em até 90 dias.[96] Com base nessa decisão, o CNJ baixou a Resolução 213/2015, com vigência iniciada em 1º de fevereiro de 2016. E o STF vem reiterando a sua posição no sentido da obrigatoriedade da realização da realização da audiência de apresentação da pessoa presa.[97] Dessa forma, o STF tem reconhecido e respeitado o direito fundamental da pessoa presa à audiência de apresentação.[98] Com isso, a integridade do instituto é restabelecida e respeitada a convencionalidade, por conseguinte, alinhado-se à jurisprudência oriunda da CIDH. Cabe, portanto, a todos os Tribunais e juízes, sem demora, colocarem em prática a audiência de apresentação da pessoa presa. Sendo que, no plano interno, cabe ao CNJ zelar, fiscalizar e exigir o efetivo cumprimento; e, no plano internacional, como colocamos em precedência, a competência é da CIDH.[99]
4. 6. Seria possível o preso e sua defesa técnica dispensarem a realização da audiência de apresentação da pessoa presa?
Por ser um direito fundamental incorporado ao Direito interno via instrumentos internacionais de direitos humanos, revela-se um direito indisponível. Por conseguinte, em hipótese alguma pode ser dispensado. Seria inconcebível pensar que a pessoa presa possa, mediante expressão de próprio punho ou em conjunto com a defesa técnica, abrir mão de se submeter ao ato judicial da audiência de apresentação. Ora, o que a pessoa presa pode é, ao ser interrogada, exercer seu direito ao silêncio, sem que com isso venha a sofrer qualquer consequência. A pessoa presa não é levada à autoridade judiciária somente para ser interrogada, a audiência de apresentação, embora seja um ato judicial pré-processual, é de natureza garantista de um direito fundamental, por isso, envolve muito mais do que o interrogatório. Tem, como já colocado, três finalidades, a saber: 1) verificar a legalidade da prisão; 2) verificar a regularidade da prisão, ou seja, se houve ou não abuso; 3) verificar se é caso de liberdade. Também, encerra duas consequências processuais humanitárias: 1) não permitir que a pessoa presa ingresse no Sistema Penitenciário, sem antes ser apresentada a uma autoridade judiciária; 2) não permitir que a prisão em flagrante seja convertida em prisão preventiva, sem manifestação anterior das partes. E aumenta a possibilidade de se responsabilizar o agente estatal que praticar abusos relativos à prisão. Então, mesmo que o indiciado se reserve ao direito de nada dizer, isso não impede que a autoridade judiciária, após a perfunctória manifestação das partes, tome a decisão que o caso requer.[100]
4.7. A pessoa presa tem “direito de mentir” na audiência de apresentação da pessoa presa?
Ou, por outras palavras, “a mentira pode se constituir em direito”? Consideramos que a pessoa envolvida em qualquer ato infracional (crime ou contravenção) não tem o direito de mentir como chegam a aludir alguns ilustres autores.[101] Ora, a mentira, por ser um vício moral, não pode ingressar em ordenamento jurídico algum, não pode se constituir em direito, quando muito se poderia falar em um falso direito. A pessoa presa tem direito, isso sim, à imunidade à mentira – a bem da não autoincriminação[102] ou direito a não se autoincriminar.[103] Assim, ao ser interrogado perante a autoridade policial ou judiciária e fazer uso da mentira, isso, por si só, não eleva a mentira a patamar de direito, na verdade, apenas salvaguarda o direito da pessoa presa de não se autoincriminar. Com isso, queremos dizer que, se caso a mentira se constituísse em direito, a pessoa, ao ser interrogada e fazer uso da mentira, essa sua versão (mentirosa) teria de ser respeitada, o que se constituiria em absurdo.
Direito algum pode ser ameaçado ou lesionado, todavia a mentira do interrogado deve ser suplantada pelo conjunto de provas dos autos, essa sua mentira, por não ser direito, deve ser escorraçada, aniquilada, invalidada, contrariada pelo maciço probatório. Mais uma vez, se fosse direito, a mentira teria de ser acolhida, e pronto, valeria a versão do interrogado (indiciado, acusado ou executando). Então, o interrogado, ao mentir, está fazendo uso de meio inidôneo, escuso, reprovável, imoral e antiético, por isso, fica sujeito, como na maioria das vezes ocorre, de ter sua versão ilhada, desmascarada, desmentida, reprovada frente ao maciço probatório trazido aos autos. Por outras palavras, a pessoa ao ser interrogada e fazer uso da mentira está longe de estar exercitando um “direito de mentir”, em verdade, está fazendo uso do seu direito à não autoincriminação. A pessoa, ao ser interrogada, tem imunidade à mentira, ou seja, ela ao mentir não sofrerá consequência alguma, não por estar exercitando um direito, mas por estar acobertada por uma imunidade à mentira. Essa imunidade é de natureza formal, portanto, relativa, pois, caso, com a sua mentira, venha a ofender direitos de terceiros inocentes, ficará sujeita a todas as consequências jurídicas emanadas do seu ato. Na verdade, ao ser interrogada, a pessoa tem o dever de dizer a verdade, caso opte pela mentira está acobertada pela imunidade a bem da não autoincriminação, não sofrendo implicações legais, mas fica sujeita a ser desmentida, o que resulta em penalização grave; caso faça silêncio, direito inserido na não autoincriminação, não decorrerá desse penalização alguma.
Reafirmamos que não existe “direito de mentir” ou “direito à mentira”, simplesmente porque a mentira não tem conteúdo moral e ético capaz de se firmar como direito, quem fizer uso dela sujeita-se à desmoralização ao ser desmentido. Na verdade, temos que o Estado estabeleceu em favor da pessoa indiciada, acusada ou executanda a imunidade à mentira a bem da não autoincriminação, dessa forma, objetivando evitar tortura e maus-tratos que visem à sua confissão.[104] A pessoa, ao lançar mão da mentira em sua defesa, está refestelada pela imunidade para não se autoincriminar, mas essa imunidade não torna a mentira algo lícito, ou seja, em direito.
Pensar que ao ser interrogada a pessoa tem “direito de mentir”, induziria ao disparate de afirmar que o parlamentar, no púlpito de sua Casa de Leis, por exemplo, teria o “direito de cometer crimes contra a honra”. Isso seria absurdo, pois o parlamentar (deputado ou senador) é acobertado pela imunidade material (art. 53, caput, CRFB), mas fica sujeito a sofrer reprimenda por parte do Presidente da Casa ou até mesmo a sofrer processo por quebra do decoro parlamentar. Percebe-se que o parlamentar fica imune ao crime que comete no exercício de sua função, o que qualifica a sua liberdade de expressão, por estar acobertado pela imunidade material; bem assim, o indiciado ou acusado fica imune à mentira (ilícito) que pratica no exercício de sua defesa por gozar da imunidade à mentira a bem da sua não autoincriminação. Não deixa, portanto, de ter uma liberdade de expressão qualificada.
Por derradeiro, é preciso fazer uma breve comparação entre a imunidade material do parlamentar e a imunidade à mentira a bem da não autoincriminação da pessoa interrogada. Em comum, ambas têm o condão de qualificarem a liberdade de expressão. No entanto se diferenciam: no exercício de sua função, o parlamentar não comete crime contra a honra, pelo seu comportamento reprovável, não pode ser responsabilizado civil e criminalmente; o interrogado pode ser responsabilizado civil e criminalmente caso a sua mentira venha a atingir terceiras pessoas inocentes.