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Alteração do nome civil do transexual como garantia dos direitos da personalidade

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3. Consequências jurídicas da cirurgia de mudança de sexo e posicionamento da jurisprudência

Além dos aspectos médico e social envolvidos, uma vez feita a cirurgia de redesignação sexual, de forma quase imediata, são trazidos à tona também as consequências e os reflexos jurídicos da “transformação”. É fato, porém, que, em regra, dentre tantos efeitos e indagações jurídicas decorrentes, a preocupação primordial dos transexuais após a realização de procedimento cirúrgico para mudança de sexo baseia-se na alteração do registro civil, de modo a ajustá-lo à sua atual realidade, pois, sem tais alterações, o processo de inclusão iniciado por meio do tratamento médico e psicológico restaria incompleto. A importância dessa “fase final” à construção de uma nova identidade do indivíduo transgênero se sustenta na necessidade humana emotivo-afetiva de ser reconhecido e aceito socialmente; ninguém quer ser hostilizado e sujeito à irrisão (GONÇALVES, 2014).

Eis a razão pela qual, ao fazer a cirurgia, o transexual vem buscar judicialmente a adequação do sexo, do prenome ou de ambos no registro civil, para facilitar sua inserção social. À vista disso, ante a inexistência de lei geral e abrangente que regule o assunto e enquanto essa ainda não vem, tem sido papel da jurisprudência brasileira lidar com o impasse, tema de inúmeros e controversos debates, deixando assim os Tribunais sua contribuição.

Raul Choeri (2001, p. 240) elucida que sexo civil, sexo jurídico ou sexo legal consiste “na determinação do sexo em razão da vida civil, nas suas relações na sociedade, trazendo inúmeras consequências jurídicas” e acrescenta ser este designado “por ocasião do assento de nascimento da criança, com base em seu sexo morfológico externo”. Nesta toada, no âmbito da técnica jurídica, o transexual revela pretensão inserida no direito à devida identidade sexual, pleiteando a respectiva mudança de sexo e nome no registro civil (GONÇALVES, 2014).

Ao longo dos anos, as decisões desfavoráveis à pretensão do transexual têm se fundamentado na determinação biológica do sexo, na imutabilidade e na veracidade de elementos essenciais que devem constar no registro civil. Assim, amparam-se na afirmação de que a cirurgia de redesignação é puramente estética (VENTURA, 2010).

A premissa do determinismo biológico como fundamento para o julgamento de improcedência dos pedidos de alteração em tela foi a utilizada pelo Supremo Tribunal Federal em 1981, anterior, portanto, à vigência da Constituição Federal de 1988, e seguiu como majoritária nos anos 1990 (VENTURA, 2010). De acordo com a Corte Soberana à época, a realização de cirurgias plásticas é insuficiente para que haja retificação do assento de nascimento quanto ao sexo e nome, sendo defendida a impossibilidade de modificação e prevalecendo o sexo biológico ao psíquico. É nesse sentido os acórdãos proferidos pelo citado Tribunal quando do julgamento dos Recursos Extraordinários números 93.384/80 e 93.405/80 (CHOERI, 2001).

Uma das decisões esparsas pioneiras e favoráveis divulgadas pela imprensa data de 1989, quando o magistrado José Fernandes Lemos, da 3ª Vara de Família e Registros Públicos de Recife, já demonstrava aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana em pedidos desse teor. Ao julgar o feito, deferiu a mudança do sexo do requerente bem como do nome, este último “como forma de não o expor a situações ridículas e vexatórias, que sem dúvida alguma lhe adviriam com o prenome masculino” (VIEIRA, 2014, p. 545).

Apesar disso, foi somente a partir dos anos 2000 que a tese benéfica à alteração do sexo e nome no registro civil das pessoas transexuais submetidas à cirurgia, ganhou força. As decisões favoráveis são quase uníssonas em considerar que a anatomia da genitália é critério determinante para a retificação do registro, vez que o transexual, como passa a ter aparência física do sexo oposto ao seu sexo biológico mas possui nome dissonante da sua imagem exterior, estaria exposto a situações vexatórias e constrangedoras, sujeito ao ridículo (PEREIRA, 2006).

Há ainda quem entenda que, verificada a realização da cirurgia de mudança de sexo, o registro deve fazer a acomodação, porém, constar o termo “transexual” no lugar reservado ao sexo, por retratar melhor a condição física e psíquica da pessoa e, ao mesmo tempo, garantir que outrem não seja induzido a erro. Por outro lado, alguns defendem que tal menção no registro nada mais é do que clara ofensa à dignidade humana, devendo ocorrer apenas averbação sigilosa no registro de nascimento sobre a condição transexual além, claro, da alteração do sexo tal qual como fora pleiteada em juízo. Por fim, entre doutrinadores têm prevalecido que ao deferir a mudança no registro, não deve ser feita qualquer referência à transexualidade, nem mesmo sigilosa (DINIZ, 2001).

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Tereza Rodrigues Vieira (2014) informa que atualmente o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de reconhecer a adequação. O primeiro parecer do Tribunal sobre o tema ocorreu somente em 2007, quando do julgamento do Recurso Especial n. 678.933-RS, segundo o qual a alteração do sexo e nome bem como o motivo, a transexualidade, deveriam constar do registro (BRASIL, 2007). Em momento posterior, mais especificamente no ano de 2009, a egrégia Corte no julgamento do Recurso Especial n. 1.008.398-SP, permitiu, pela primeira vez, que transexual trocasse o nome e sexo registrados sem que constasse qualquer anotação em seus documentos (BRASIL, 2009).

Por sua vez, Patrícia Côrrea Sanches (2014) assegura que com a redação em vigor da Lei de Registros Públicos quanto ao prenome e com a evolução do ordenamento jurídico brasileiro, a alteração do nome de transexual operado já é realidade. Dessa forma, segundo ela, a problemática cada vez mais frequente que tem assolado o Judiciário e dividido opiniões dos aplicadores do direito é da possibilidade ou não de alteração do nome registral de transexual não submetido à cirurgia de transgenitalização. A doutrinadora sustenta opinião favorável à pretensão sob os fundamentos de que “a distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade” assim, as circunstâncias autorizam, mesmo sem a cirurgia, a retificação do nome do requente para “conformá-lo com a sua identidade social” (SANCHES, 2014, p. 564).


 4. Nome civil do transexual e os direitos da personalidade

O nome tem grande relevância no contexto social, considerando-se que representa o primeiro indicativo de ser a pessoa homem ou mulher; é o primeiro traço que diferencia um indivíduo dos demais. À vista disso, o distanciamento entre a verdadeira identidade social e os dados oficiais gerados pelo prenome registral, em grande parte dos casos, é totalmente contrário aos interesses de seu portador e, até mesmo, incompatível com a própria segurança jurídica (BARBOZA, 2012).

Considerando que todas as pessoas têm objetivos comuns e inerentes à condição de ser humano, quem busca o reconhecimento de sua verdadeira identidade de gênero visa alcançar um equilíbrio físico-psíquico, pacífico relacionamento familiar e social e, especialmente, uma vida plena (CUNHA, 2015). Nesse sentido, na transexualidade, onde existe um conflito de identidade com fortes repercussões na identificação da pessoa em sociedade, a possibilidade de alteração do nome civil ganha destaque (GONÇALVES, 2014).

A manutenção pelo transexual de um nome incoerente com sua expressão de gênero traz sérias consequências como a vergonha, a dificuldade de acesso ao trabalho, a discriminação e, até mesmo restrição da liberdade de ir e vir e acusações de falsidade ideológica. Assim, a questão da alteração do nome em seus documentos traduz-se como uma busca pela verdade, ao permitir que a pessoa seja institucionalmente reconhecida pelo que sabe ser (CUNHA, 2015). O nome civil assume, neste quadro, incontestável importância, pois caracteriza o passo inicial para a integração social: seu nome é sua identidade de gênero (BARBOZA, 2012).

Diante disso, o tema da transexualidade e identidade pessoal está obviamente relacionado aos estudos sobre os direitos da personalidade, pois é por meio dele que (CHOERI, 2001):

“[...] se pode refletir sobre a disponibilidade do corpo humano, para efeitos de cirurgia de redesignação sexual e sobre a disponibilidade do nome e do gênero sexual, como elementos principais da identificação pessoal, para efeitos de alteração nos registros civis” (CHOERI, 2001, p. 235).

Ademais, as características de absolutos e universais dos direitos da personalidade aproximam-nos dos direitos humanos, identificando em ambos uma gênese jusnaturalista e, uma vez evidenciada a dignidade universal embasada na igualdade dos seres humanos dentre os fundamentos concorrentes para oferecer tutela jurídica aos transexuais, é função dos direitos da personalidade proteger as diferenças, daí advém a relevância de seu estudo (GONÇALVES, 2014).

Atenta-se que o Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Interamericana de Direitos Humanos, regula que os Estados devem obedecer e fazer com que sejam cumpridos os direitos da personalidade.

Vedar ao transexual a possibilidade de ter sua personalidade integralmente reconhecida, através da adequação de seu nome civil, é, por consequência, vedar sua inserção social e uma visível afronta aos direitos da personalidade. Absurdo maior ainda seria afirmar que tal pretensão não encontra respaldo na Constituição Federal, quando, na verdade, a Lei Maior preceitua todas as diretrizes para impedir a restrição destes direitos, bastando a mera interpretação do texto em sua plenitude.

Com a devida adaptação de seu nome no assento de nascimento, o transexual pode exercer seus direitos civis e sua autonomia privada como qualquer outro cidadão, sem, a priori, nenhum tipo de discriminação. No entanto, o princípio da dignidade humana merece maior destaque por se tratar de elemento base orientador de todo o ordenamento jurídico que elege a pessoa como fim da norma, portanto, indispensável como parâmetro ao aplicador do direito quanto aos direitos da personalidade.

Na presença de eventos dessa natureza, um autêntico e absoluto Estado Democrático de Direito reconhece, prioriza e faz cumprir todos os direitos de seus cidadãos, o que inclui o direito a uma nova identidade (HUMILDES, 2011). Não respeitar os direitos da personalidade ou simplesmente ignorá-los é uma atuação demasiado prejudicial à sociedade como um todo, posto que menosprezar direitos característicos da condição humana importa em agir com indiferença ante o aniquilamento do sujeito. Nos termos dos ensinamentos de Joildo de Souza dos Humildes (2011, online), desatender esse direito é declarar o transexual “um cidadão incompleto, negando-lhe o direito de ser integrado na sociedade; é desconsiderar direitos personalíssimos, essenciais e inerentes à natureza humana”.

Sobretudo, o Direito deve ser entendido como instrumento capaz de garantir aos indivíduos a busca de sua realização pessoal, de forma que não se harmoniza com a imposição de sofrimento gratuito resultante da negativa de plena efetivação da condição feminina ou masculina, simbolizada pela possibilidade de adequação do nome civil, que equivaleria a perturbações e tristeza infindáveis (MEDEIROS, 2003).

É sim verdade que o Estado não tem como resolver sozinho e instantaneamente toda a problemática da transexualidade, mas, ao proporcionar aos transexuais tratamentos hormonais, psíquicos e cirúrgicos, e, posteriormente, viabilizar a retificação do respectivo nome nos documentos pessoais e demais registros, estará promovendo a tão sonhada identidade de gênero, genuína expressão da unidade física e psicológica dos direitos da personalidade destes cidadãos.

Assim, como o prenome registral não mais corresponde à imagem e ao modo pelo qual o transexual passou a ser reconhecido, faz-se necessária sua mudança, com o propósito de manter sua função de identificação e projeção da identidade de seu titular. É a partir disso que se tem a visão da personalidade da pessoa singular como uma qualidade jurídica emanada diretamente da dignidade do ser humano, procedendo de condição substancial para a realização de seus fins ou interesses, assegurada a todos.

 


Conclusões

Membros de uma minoria social, por força de uma característica tida como incomum, a incompatibilidade do sexo biológico com o psicológico; constante sentimento de habitar um corpo que não lhe pertence; persistente busca pela integração física, emocional, social, espiritual e sexual: é neste contexto privado em que se encontra inserida a transexualidade, jamais passível de ser considerada um capricho passageiro.

Não obstante a Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73) não prever, expressamente, a referida hipótese de alteração do nome civil, depreende-se que a clássica e arcaica regra de sua imutabilidade absoluta, de forma a tornar efetiva a proteção à dignidade da pessoa humana, tem sido acertadamente afastada pelos Tribunais brasileiros ante a problemática dos transexuais, tenham estes se submetido ou não à cirurgia de redesignação sexual.

Partindo da conclusão de que o nome é o primeiro e principal elemento de identificação do indivíduo perante a sociedade, infere-se que, uma vez que o prenome registral deixa de corresponder à imagem e ao modo pelo qual o transexual é conhecido socialmente, reputa-se salutar sua devida adequação, como propósito de garantir que a função de identificação e decorrente segurança jurídica sejam mantidas, mas também, talvez ainda mais importante, que sejam garantidos os inerentes direitos da personalidade.

Sendo assim, contata-se que vedar a possibilidade do transexual ter sua personalidade integralmente reconhecida, através da adequação de seu nome civil, equivale, por consequência, afronta a garantias constitucionais como o direito à cidadania, dignidade, opção sexual e não discriminação; além, claro, de impedir sua inserção social e revelar visível afronta aos direitos da personalidade.

Sobre os autores
Nedson Ferreira Alves Junior

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Anápolis (2007). Pós-Graduado em Auditoria, Gestão de Tributos e Aduana. Pós-Graduando em Direito Eleitoral. Atualmente é franquiado - Damásio Educacional. Professor assistente na Faculdade Fibra de Anápolis (Direito Empresarial I) e professor assistente - EVANGELICA GOIANÉSIA (Direito Empresarial I e Processo Civil II). Exerceu cargo de Coordenador do NPJ, núcleo de TCC e do Curso de Direito da faculdade Evangélica de Goianésia. Advogado inscrito desde 2008 na OAB-GO. Tem experiência na área de Direito atuando principalmente nos seguintes temas: direito empresarial e processo civil.

Francesca Batista

Graduada em Direito pela Universidade Evangélica de Goiás e em Letras-Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho, Direito Público, Direito Privado e Advocacia Consultiva.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JUNIOR, Nedson Ferreira; BATISTA, Francesca. Alteração do nome civil do transexual como garantia dos direitos da personalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5333, 6 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63457. Acesso em: 25 nov. 2024.

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