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Dignidade e respeito reciprocamente considerados:

a mudança do nome por transexual na comunidade brasileira

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5. A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO

A cirurgia de mudança de sexo, também conhecida pelo nome de transgenitalização, é altamente complexa, de recuperação dolorosa e requer um acompanhamento multidisciplinar não apenas no período que antecede a cirurgia, mas também na fase pós operatória. O paciente que a ela é remetido necessita de revisões médicas constantes e de acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais para encarar a sua nova situação, haja vista que, na maioria das vezes, passará a sofrer inúmeros preconceitos pelas diversas camadas da população.

Silveira (10) detalha todo o procedimento cirúrgico por que passa o transexual para ver concretizada a mudança de sexo. Destacar suas palavras são, além de interessantes, latentes para uma melhor compreensão acerca da matéria. Assim sendo, indicaremos a cirurgia ocorrida tanto para o transexual masculino quanto para o feminino. Assim, primeiramente, destacamos a adequação do sexo masculino ao feminino:

A mudança cirúrgica masculino para feminino é facilmente feita e pode, na maioria dos casos, ser feita em somente um tempo cirúrgico.

O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixando a glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessariamente será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris. Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma, ensejando um resgate do orgasmo mais facilmente.

A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer necrose ou infecção em pós-operatório imediato, sempre teremos tecido disponível para novo procedimento. Na eventualidade da uretra profusa, a mesma poderá, em um segundo tempo, ser novamente encurtada.

Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para a retirada dos testículos e funículo espermático. Todo o escroto, excetuando-se a camada vaginal, será usado para a construção da vagina.

No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma incisão em cruz ou em "v", abortando-se o espaço imediatamente cranial ao reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado, e através de dilatadores de Hegar, é criado um pertuito que será a nova vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério. Nestas condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo espaço, com sutura tão cranial quanto possível.

Um molde metálico ou siliconado é revestido com gaze e introduzido no orifício,de tal sorte a manter hemostasia e prevenir eventual colamento da cavidade. No pós-operatório, o paciente, sistematicamente, dilatará a neovagina com artefato siliconado, até sua estabilização.

Agora, também da mesma autoria (11), destacamos a cirurgia de transgenitalização, com adaptação do sexo feminino para o masculino:

O paciente é levado a uma cirurgia de laparotomia, com anestesia geral e bloqueio pelidural, para a retirada do ovário, útero e anexos.

Após a sua total recuperação, em um período de tempo não menor a 30 dias, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico. Consiste na retirada da vagina, usando-se a parede anterior para a reconstrução da uretra. A mucosa vaginal tubularizada se adapta excepcionalmente bem, como uretra. A parede posterior da vagina é exteriorizada para fazer parte do escroto. Na hipótese de uma exagerada atrofia da mucosa vaginal o escroto é reconstituído com retalho do músculo Gracilis, tirado da face medial da coxa. O pênis é construído com enxerto de CHANG. O tecido é retirado do antebraço, juntamente com uma artéria radial, duplamente tubularizada, respectivamente para a uretra distal e para acolher futuramente a prótese peniana. Este procedimento, especificamente, requer técnica microcirúrgica. Para a construção do falo também pode ser usado retalho do abdome. Esta técnica não requer microcirurgia, entretanto o aspecto cosmético perde em qualidade para o enxerto de CHANG. O uso do retalho do músculo Gracilis, rotado da face interna da coxa, é reservado para a situação onde o paciente não dispõe de tecido adequado do abdome ou não deseja ficar com cicatriz ampla no antebraço.

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O terceiro tempo cirúrgico somente é levado a efeito quando há uma cicatrização perfeita nos tempos anteriores. Demanda aproximada de três meses. Então, através de uma pequena incisão na base do neopênis, é introduzido um tubo siliconado, cujo eixo é composto de uma liga de prata maleável. Esta estrutura denominada prótese é fixada no osso do púbis, através de um prcedimento estético denominado Dracon. A fixação estabiliza o artefato evitando a extrução futura. A prótese peniana possui rigidez suficiente para o coito e pode, confortavelmente, ser dobrada para baixo, quando não há interesse em atividade sexual.

No mesmo tempo cirúrgico, são introduzidos um novo escroto, duas estruturas ovóides, com 20 centímetros cúbicos, com silicone gel no seu interior, simulando testículos.

O paciente, nestas condições, está autorizado à atividade sexual, somente 90 dias após o implante das próteses peniana e testicular. Após aproximadamente um ano, a sensibilidade se estabelece em pelo menos 2/3 do falo.

Da leitura desses excertos, pudemos observar o quão complicada é a dita cirurgia, principalmente no que tange à adequação do sexo feminino ao chamado neopênis. Além disso, cumpre referir como é lenta a fase de cicatrização. Isso, todavia, não é nada para aquele que deseja, a qualquer custo, mudar o sexo. Romper esta fase é nada mais do que necessária. Ainda que dolorida.

Não obstante isso, uma vez ultrapassada a fase cirúrgica, surge outro embate, qual seja, a mudança do nome nos assentamentos cartorários. É a respeito disso que discorreremos no próximo item.


6. A POSSIBILIDADE DA MUDANÇA DO NOME

Alves (12) leciona:

A complexidade humana é incontestável, e a identidade sexual reflete a própria personalidade do indivíduo que deve encontrar na sua identificação civil a harmonia necessária para o pleno desenvolvimento de sua capacidade cognitivo-comportamental.

Um ser humano que nega a sua identidade, que repudia com fervor as características físicas com as quais a mãe natureza os brindou, que busca incessantemente uma harmonia entre a sua psique e o seu estado físico, que sofre imensos, árduos e reiterados preconceitos da sociedade e da família por não se identificar consigo mesmo... Será justo e condizente ao ser humano poder alterar as suas características físicas mediante procedimento cirúrgico complexo, doloroso e arriscado e não receber por parte do Estado uma resposta favorável ao seu interesse em mudar de nome?

A questão da mudança do nome civil pelo transexual submetido à cirurgia de mudança de sexo tem sido alvo de grandes discussões e tem comportado entendimentos diversos no sistema jurídico brasileiro pelo fato de não termos leis específicas regulando a matéria. Todavia, é preciso que os legisladores, que representam o ordenamento jurídico pátrio, atenham-se a essa realidade, que está cada vez menos rara.

Atualmente, temos em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 70-B, elaborado pelo Deputado Federal José Coimbra, visando regulamentar a situação dos transexuais, sobretudo positivar a possibilidade da mudança do nome e do sexo nos registros públicos. Entretanto, este projeto tem sido alvo de algumas críticas, em virtude da ausência, no seu texto, de pontos primordiais para a análise da questão. Peres (13), ao se reportar ao tema, teceu as seguintes considerações:

O referido projeto foi omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado civil do transexual para que possa se submeter à operação e deixou de estabelecer as garantias para que ele exerça os direitos decorrentes de seu novo estado sexual. Conseqüentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim, também deixou de fixar os respectivos deveres.

O que devemos evidenciar, ao volver os olhos para esta questão, é que realmente o referido projeto já nasce precisando de reformas. Uma vez que o mesmo ainda não foi aprovado, ainda há tempo para ser retificado. Os comentários acima transcritos são realmente condizentes à nova vida societária. Além disso, fazer com que essas garantias sejam implantadas vai beneficiar ainda mais esta parcela da população que é sempre alvo de tantos preconceitos. Tendo seus direitos resguardados, poderão, assim, reclamar dos mesmos quando houver transgressão. Assim sendo, essas lacunas que ainda imperam precisam ser desmoronadas, em nome da justiça.

Já sabemos que não há leis específicas tratando da matéria. Mas, mesmo nesses casos, ao Magistrado é dado fazer uso da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito, cristalizados no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil:

Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.

Alves (14), mais uma vez, ao dissertar a respeito da utilização dos princípios gerais do direito nos casos de lacuna da lei, entende:

A utilidade da lei é verificada através de sua correspondência à situações fáticas e necessidades sociais. Todavia, há situações carentes de proteção jurídicas, ou lacunas, que devem ser solucionadas pelos princípios gerais do direito, analogia, pela equidade e pela doutrina, que manifesta a preocupação de estudar e compatibilizar novas situações a serem positivadas.

O que queremos dizer, a respeito da aplicação da analogia para possibilitar a mudança do nome nos cartórios civis é mais condizente com o fazer justiça do que qualquer outra coisa. Isso porque, em sendo isso possível, estará sendo cristalizado o princípio da dignidade da pessoa humana.

Esta dignidade deve ser entendida de acordo com os valores pessoais do indivíduo, independente dos valores atribuídos como normais pela comunidade e grupo social em que o indivíduo esteja inserido, como bem demonstra Neves (15):

A dignidade pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito incondicional a sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Será por isso inválido e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal e benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é comunidade ou a classe, mas o homem pessoal, embora socialmente em comunidade e na classe.

O transexual, por ser um indivíduo diferente dos padrões normais e por fazer parte de um grupo marginalizado pela sociedade não deve ver olvidar os seus direitos fundamentais, o direito à integridade psíquica, à imagem, à intimidade, ao sigilo, à disponibilidade sobre o próprio corpo e, principalmente, à identidade. Após a cirurgia, ao adquirir um novo corpo, o indivíduo estaria amparado também pelo direito à imagem, pois ele quer mostrar à sociedade suas novas características, e qualquer tentativa de tolher a divulgação de sua atual imagem violaria esse direito.

O transexual tem direito ao sigilo e à intimidade, uma vez que o ato cirúrgico praticado deve permanecer em sigilo, pois qualquer forma de exibição traria conseqüências negativas para o bem estar e a moral do indivíduo. Além disso, as particularidades de sua vida privada devem permanecer silentes por mais que o indivíduo se exponha ao público.

Choeri (16) mostra a íntima ligação entre o transexualismo e os direitos da personalidade, no que tange à identidade pessoal e à disponibilidade sobre o próprio corpo:

O tema transexualismo e identidade pessoal está intimamente ligado a estudo sobre os direitos da personalidade, porquanto através dele se pode refletir sobre a disponibilidade do corpo humano, para efeitos de cirurgia de redesignação sexual e sobre a disponibilidade do nome e do gênero sexual, para efeitos de alteração nos registros civis.

Respaldadas pelas Resoluções 1.482/1997 e 1.652/2002, faz-se mister a alteração do prenome e do sexo nos registros públicos por parte de transexual, uma vez que a manutenção da identidade será uma porta para preconceitos e chacotas, que além de tudo contribuem de forma nefasta para a plena dignidade da pessoa humana.

Diniz (17), ao abordar a questão, firmou algumas indagações que merecem ser externadas:

Feita a cirurgia de redesignação sexual ou de mudança de sexo num transexual, o direito, a sociedade e o Poder Judiciário poderiam proibir que leve vida feliz e normal? Poder-lhe-iam negar efeitos jurídicos oriundos de sua nova condição sexual? Se com o término da Segunda Guerra Mundial passou-se a proteger com intensidade maior o direito da personalidade, em virtude da Declaração Universal dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais de 1950, se direito da personalidade é o direito à conservação, invulnerabilidade, dignidade e reconhecimento da livre atuação da personalidade em todas as suas direções, gerando um dever jurídico de abstenção para todos os membros da coletividade, não se deveriam admitir direitos ao transexual operado? Não deveria a lei, evitando discriminação, facilitar seu direito à identidade sexual?.

Apoiando esse entendimento, trazemos ao presente debate as palavras de Alves (18):

Não haveria justificativa dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de um ser humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se expor a situações constrangedoras e humilhantes quando solicitado, por exemplo, os documentos de identificação.

No mesmo sentido, sustenta Amorim (19):

Comprovadas judicialmente as condições da pessoa, embora não haja legislação a respeito, somente a jurisprudência o admite, deve o pleito ser acolhido, autorizando-se a modificação do sexo e prenome no registro civil, porém seus efeitos serão ex nunc, ou seja, o passado não se apaga. A utilização da identidade vigorará a partir do trânsito em julgado da decisão judicial.

Sobre os autores
Bárbara Martins Lopes

acadêmica de Direito pela UNICAP, em Recife (PE)

Bruno Henning Veloso

Acadêmico de Direito - UNICAP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Bárbara Martins; VELOSO, Bruno Henning. Dignidade e respeito reciprocamente considerados:: a mudança do nome por transexual na comunidade brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 624, 24 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6504. Acesso em: 22 nov. 2024.

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