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Uma decisão judicial que afronta a Convenção Internacional de Direitos Humanos

Agenda 12/06/2018 às 13:00

A Quarta Turma do STJ proibiu, no dia 5 de junho do corrente ano, a apreensão do passaporte de um devedor, mas manteve a suspensão de sua CNH, decretada em 1ª instância.

1. O FATO

A Quarta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) proibiu, no dia 5 de junho do corrente ano, a apreensão do passaporte de um devedor, com a justificativa de que a medida é "desproporcional" e fere o direito constitucional de ir e vir.

Ministros, no entanto, mantiveram a suspensão da carteira nacional de habilitação que já havia sido determinada em primeira instância.

A decisão ocorreu com base na análise de um recurso em habeas corpus apresentado por um homem cobrado na Justiça por uma dívida de R$ 16.859 de um contrato de prestação de serviços educacionais.

Sem receber o pagamento, a escola pediu a suspensão do passaporte e da carteira de habilitação do devedor, como forma de tentar coagi-lo a pagar.

O pedido foi aceito pela 3ª vara cível da comarca de Sumaré, no interior de São Paulo, que determinou a apreensão dos documentos em maio do ano passado.

O homem então recorreu a outras instâncias e ao STJ para tentar reverter a medida, alegando que isso feria sua liberdade de locomoção.

A aplicação desse tipo de medida, tida como "atípica", tem base no artigo 139 do novo Código de Processo Civil, que entrou em vigor em 2016.

Para a Quarta Turma, a suspensão do passaporte foi desproporcional, violou o direito de ir e vir e feriu o princípio da legalidade. A decisão ocorreu por unanimidade entre os ministros Luis Felipe Salomão, Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Antônio Carlos Ferreira.

Essa é uma das primeiras decisões do STJ contra a suspensão do passaporte por esse motivo.

Para o relator, ministro Luis Felipe Salomão, a retenção do passaporte é medida possível, mas deve ser fundamentada e analisada caso a caso — no caso em questão, diz, as circunstâncias apontaram "falta de proporcionalidade".

“Tenho por necessária a concessão da ordem, com determinação de restituição do documento a seu titular, por considerar a medida coercitiva ilegal e arbitrária, uma vez que restringiu o direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável”, afirmou em seu voto.

A suspensão da CNH, por sua vez, foi mantida. A justificativa é que já há jurisprudência no STJ no sentido de que a medida não fere o direito de ir e vir.

A decisão se deu no julgamento do RHC 97.876.

Segundo o site do STJ, de 5 de junho de 2018, ali foi dito:

"Em relação à suspensão da CNH do devedor, o ministro disse que a jurisprudência do STJ já se posicionou no sentido de que referida medida não ocasiona ofensa ao direito de ir e vir. Para Salomão, neste ponto, o recurso não deve nem ser conhecido, já que o habeas corpus existe para proteger o direito de locomoção.

“Inquestionavelmente, com a decretação da medida, segue o detentor da habilitação com capacidade de ir e vir, para todo e qualquer lugar, desde que não o faça como condutor do veículo”, afirmou Salomão.

O ministro admitiu que a retenção da CNH poderia causar problemas graves para quem usasse o documento profissionalmente, mas disse que, nesses casos, a possibilidade de impugnação da decisão seria certa, porém, por outra via diversa do habeas corpus, “porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção”.


2. O PAPEL SUPRALEGAL DOS TRATADOS NO ORDENAMENTO NACIONAL

Aprovado o tratado pelo Congresso, e sendo este ratificado pelo Presidente da República, suas disposições normativas, com a publicação do texto, passam a ter plena vigência e eficácia internamente. E, de tal fato decorre a vinculação do Estado no que atine à aplicação de suas normas, devendo cada um dos seus Poderes cumprir a parte que lhes cabe nesse processo; ao Legislativo cabe aprovar as leis necessárias, abstendo-se de votar as que lhe sejam contrárias; ao Executivo fica a tarefa de bem e fielmente regulamentá-las, fazendo todo o possível para o cumprimento de sua fiel execução e ao Judiciáiro incumbe o papel preponderante de aplicar os tratados internamente, bem como as leis que o regulamentam, afastando a aplicação de leis nacionais que lhe sejam contrárias, como explicou Mirtô Fraga(O conflito entre tratado internacional e normas de direito interno).

No julgamento do RHC 79.785/RJ, o Ministro Sepúlveda Pertence entendeu ser possível considerar os tratados de direitos humanos (e não outros...) como documentos de caráter supralegal. Mas a tese da supralidade dos tratados de direitos humanos ficou ainda mais clara no STF com voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, na sessão plenária do dia 22 de novembro de 2006, no julgamento do RE 466.343 - 1 / SP, onde se discutia a questão da prisão civil por dívida nos contratos de alienação fiduciária em garantia(O Tribunal, neste caso em que foi Relator o Ministro Cezar Peluso, rechaçou expressamente esse tipo de coerção pessoal na alienação fiduciária em garantia, numa sessão histórica, em 22 de novembro de 2006).

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No entendimento de Valerio Mazzuoli (Curso de Direito Internacional Público, 3ª edição, pág. 339. a 343), os tratados internacionais comuns ratificados pelo Estado brasileiro é que se situam num nivel hierarquico intermediário, estando abaixo da Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior (uma vez que não se encontram em situação de paridade normativa com as demais leis nacionais).

Quanto aos tratados de direitos humanos, entende Valério Mazzuoli que os mesmos ostentam o status de norma constitucional, independemente de seu eventual quorum qualificado de aprovação. A um resultado similar se pode chegar o princípio - hoje cada vez mais difundido na jurisprudência interna de outros países, e consagrado em sua plenitude pelas instâncias internacionais - da supremacia do Direito Internacional e da prevalência de suas normas em relação a toda normatividade interna - seja ela anterior ou posterior.

Ainda para Valerio Mazzuoli, atendido esse ponto de vista, os tratados internacionais têm superioridade constitucional, como no caso dos tratados de direitos humanos; quer supralegal, como no caso dos demais tratados, chamados de comuns - é lícito concluir que a produção normativa estatal deve contar não somente com limites formais (ou procedimentais), senão também com dois limites verticais materiais, quais sejam: a) a Constituição e os tratados de direitos humanos alçados ao nível constitucional; e b) os tratados internacionais comuns de estatura supralegal. Disse Valerio Mazzuoli (obra citada, pág. 340): "Assim, a compatibilidade da produção normativa doméstica com o texto constitucional não mais garante à lei validade no plano do Direito Interno. Para que a validade(e consequentemente a eficácia) de uma lei seja garantida, deve ela ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos humanos ou comuns) ratificados pelo Brasil. Em outras palavras, uma determinada lei interna poderá ser até considerada vigente por ter sido elaborada com respeito às normas do processo legislativo estabelecidas pela Constituição(que têm estatura constitucional) ou com os demais tratados dos quais a República Federativa do Brasil é parte(que têm status supralegal). Para a existência de vigência e concomitante validade das leis deverá ser respeitada uma dupla compatibilidade vertical material, ou seja, a compatibilidade da lei com a Constituição e os tratados de direitos humanos em vigor no país e com os demais instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro".

Prosseguiu Valerio de Oliveira Mazzuoli (obra citada, pág. 341):

"Não se poderá confundir vigência com validade (e a consequente eficácia) das normas jurídicas, como fazia o modelo Kelseniano do ensino jurídico, devendo-se agora seguir a lição de Ferrajoli, que bem diferencia ambas as situações: uma lei vigente não é obrigatoriamente válida e, em última análise, eficaz. Doravante, para que uma norma seja eficaz e possa ser aplicada pelo juiz em caso concreto, deverá ela ser também anteriormente vigente. Em outras palavras, a vigência depende da validade. Por isso, não aceitamos os conceitos de validade e vigência de Tércio Ferraz Jr. pra quem norma válida é aquela que cumpriu o processo de formação ou de produção normativa, e vigente a que já foi publicada. O autor conceitua vigência como um "termo com o qual se demarca o tempo de validade de uma norma" ou, em outros outros termos, como "a norma válida(pertencente ao ordenamento) cuja autoridade pode ser considerada imunizada, sendo exigíveis os comportamentos prescritos", arrematando que uma norma "pode ser válida sem ser vigente, embora a norma vigente seja sempre válida(Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação). Não concordamos(também com base em Ferrajoli) com essa construção segunda a qual uma norma "pode ser válida sem ser vigente", e de que "a norma vigente seja sempre válida". Para nós, são coisas idênticas(Luigi Ferrajoli, Derechos y garantias: a ley del más débil, pág. 21) é aquela elaborada pelo Parlamento de acordo com as regras do processo legislativo estabelecidas pela Constitução; lei válida é a lei vigente compativel com o texto constitucional e com os tratados de direitos humanos ou não ratificados pelo governo, ou seja, é a lei que tem sua autoridade respeitada e protegida contra qualquer ataque(porque compatível com a Constituição e com os tratados em vigor no país. Daí porque não havendo compatibilidade material com ambas as normas - a Constituição e os tratados é que a lei infraconstitucional em questão será vigente e válida(e, consequentemente, eficaz). Caso contrário, não passando a lei pelo exame de compatibilidade material vertical com os tratados, a mesma não terá qualquer validade (e tampouco, eficácia) no plano no Direito interno brasileiro, devendo ser rechaçada pelo juiz em caso concreto."

É o que Luiz Flávio Gomes (Estudo constitucional de direito e nova pirâmide jurídica, 2008, pág. 25. a 28) ensinou. Sendo assim, a inexistência de decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal em controle tanto concentrado quanto difuso de constitucionalidade (neste último caso, com a possibilidade de comunicação ao Senado Federal para que este, nos termos do artigo 52, inciso X, suspenda, no todo, ou em parte, os efeitos da lei declarada inconstitucional pelo STF), mantêm a vigência das leis no páis, as quais, contudo, não permanecerão válidas se incompatíveis com os tratados internacionais(de direitos humanos ou comuns) dos quais o Brasil é parte.

Na matéria, temos a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em especial, os seguintes dispositivos:

Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade

1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

Por sua vez, o artigo 22 da Convenção assim estabelece, especificamente, com relação ao item 3:

Artigo 22. Direito de circulação e de residência

1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais.

2. Toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.

3. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas determinadas, por motivo de interesse público.

5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional, nem ser privado do direito de nele entrar.

6. O estrangeiro que se ache legalmente no território de um Estado Parte nesta Convenção só poderá dele ser expulso em cumprimento de decisão adotada de acordo com a lei.

7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos e de acordo com a legislação de cada Estado e com os convênios internacionais.

8. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação por causa da sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões políticas.

9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros.

Se a questão é impor medidas ao devedor para que ele cumpra uma obrigação, é mister ver que, a teor da Convenção de Direitos Humanos, "Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais."

A suspensão da CNH é, sem dúvida, uma medida que fere a proporcionalidade e deve ser aferida não em razão da lei processual interna, mas norma que detém papel de hierarquia supralegal, que é a Convenção citada.

A suspensão do uso da CNH fere a possibilidade do devedor poder ter meios para trabalhar e poder pagar suas obrigações. A execução civil deve se prestar a respeitar a dignidade humana do devedor, não se revelando excessiva.

Lopes da Costa (Direito Processual Civil brasileiro, 1959, 2ª edição, n. 53, pág. 55) já dizia que não pode a execução ser utilizada para causar ruína, a fome o desabrigo do devedor e sua familia, gerando situações incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.

A suspensão da CNH do devedor, que é motorista, representa uma grave e desproporcional lesão nos direitos fundamentais, de forma que uma dívida que se tenha não é justificativa para restrição de direitos de locomoção. Sem locomoção, como irá o devedor, em condições normais, arcar com seus débitos?


3. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE

A medida judicial aqui historiada fere ao principio da razoabilidade.

A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:

a) Razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;

b) Razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;

c) Razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Não se pode eleger uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação estatal. Os princípios constitucionais do Estado de Direito (artigo 1º) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV), da Constituição exigem o confronto com parâmetros externos a elas.

Não se pode conviver com discriminações arbitrárias.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida e ainda uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins. No caso em tela há absoluta dissonância entre os motivos, meios e fins da medida, de forma a aduzi-la como fora do razoável.

Proíbe-se o excesso.

Na aplicação do princípio há três elementos:

a) princípio da conformidade ou adequação de meios: a medida que pretende realizar o interesse público deve ser adequada aos fins subjacentes a que visa a concretizar. O controle dos atos do poder público que devem atender a "relação de adequação medida fim", pressupõe a investigação e prova de sua aptidão para e sua conformidade com os fins que motivaram a sua adoção;

b) principio da necessidade: A ideia subjacente ao princípio é invadir a esfera da liberdade do individuo o minimo possível. É o entendimento do Tribunal Constitucional Federal alemão que formulou a seguinte máxima: "o fim não pode ser atingido de outra maneira que afete menos ao indivíduo", extraindo-a do caráter de princípio das normas de direito fundamental. A opção feita pelo legislador, ou o executivo, deve ser passível de prova no sentido de ter sido a melhor e única possibilidade viável para a obtenção de certos fins e de menor custo ao indivíduo. O atendimento à relação custo-beneficio de toda decisão político-jurídica a fim de preservar o máximo possível do direito que possui o cidadão. Canotilho(Direito Constitucional, 5ª edição, pág. 387) citou outros elementos integrantes ao princípio da necessidade, elaborados pela doutrina no intuito de operacionalizá-lo na prática: a) a necessidade material, pois o meio deve ser o mais poupado possível quanto à limitação dos direitos fundamentais; c) a exibilidade temporal pressupondo a rigorosa delimitação no tempo da medida coativa do poder público; d) a exibilidade pessoal que significa que a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas, cujos interesses devem ser sacrificados.

c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito: Confunde-se com a pragmática da ponderação ou lei da ponderação. Decorre da análise do espaço de discricionariedade semântica (plurissignificação), vacuidade, porosidade, ambiguidade, fórmulas vazias presentes no sistema jurídico. Constitui requisito para a ponderação de resultados e adequação a adequação entre meios e fins. Deve-se analisar se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma decisão judicial que afronta a Convenção Internacional de Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5459, 12 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66780. Acesso em: 22 dez. 2024.

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