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Consolidação constitucional e partidária: uma perspectiva comparada entre Brasil e Estados Unidos da América

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Agenda 01/12/2018 às 18:25

Tendo em vista o crescimento do estudo do direito comparado em plano global, este artigo intenta analisar, de forma crítica, o processo de criação e desenvolvimento das atuais constituições brasileira e norte-americana.

1 - Introdução

O caso Stanford v. Kentucky, discutido na Suprema Corte norte-americana em 1989, julgou pela constitucionalidade da pena de morte aplicada a infratores com menos de 18 anos – o que foi posteriormente revogado pelo caso Roper v. Simmons, de 2005. Na ocasião, além da discussão acerca da oitava emenda que proíbe punições cruéis e incomuns, o Justice Scalia, em sua perspectiva originalista da Constituição norte-americana, suscitou também o debate acerca da aplicação de jurisprudências estrangeiras às decisões da corte, defendendo que apenas a experiência norte-americana seria capaz de definir o que seria categorizado enquanto pena cruel - como se a prática constitucional dos demais países fosse irrelevante no entendimento da “decência” americana.[1]

De fato, à Constituição norte-americana ratificada em 1788 é atribuída significativa importância, considerada o marco inaugural do “constitucionalismo moderno”. Certamente, o impacto de uma constituição formal, rígida e suprema em relação às leis ordinárias, que não apenas descreve como prescreve a organização dos sistemas políticos foi advento expressivo na trajetória constitucional de diversos países, com especial destaque para os latino-americanos que, no século XIX, chegaram a “importar” as estruturas federativas e judiciárias norte-americanas, assim como sua predileção pelo presidencialismo.

No entanto, a Constituição não é uma criação ex nihilo, segundo Cristiano Paixão[2] e, de fato, os elementos reunidos na formulação e consolidação constitucional em países como Estados Unidos e Brasil não poderiam ser mais diferentes – de um lado, a negligência salutar britânica e as práticas de autogoverno, do outro, a tentativa de superar décadas de um bruto regime militar ilegítimo - e, portanto, não podem ser desconsiderados. A supervalorização da experiência norte-americana, nos moldes defendidos pelo Justice Scalia ofusca incríveis chances de aprendizado com a história e as práticas de outros países. Por isso, é cada vez mais necessário um estudo constitucional comparado.

Enquanto a experiência norte-americana se mostra certamente como um influente e especial caso de análise, ela não é paradigmática e não deve ser naturalizada, uma vez que mesmo países que partilham de seu modelo institucional básico desenvolveram e se adaptaram a suas peculiaridades próprias: enquanto a média mundial de duração de uma constituição é de 18 anos, a dos Estados Unidos ultrapassa os 200; apesar da preferência americana por presidencialismos, estatísticas globais indicam o predomínio de parlamentarismos; na década de 30, enquanto prosperavam a maioria das instituições americanas, seus vizinhos do sul enfrentavam crises e caudilhismos[3] - como explicar essas diferenças, no âmbito do constitucionalismo global?

Num intuito de responder essa pergunta, assim como quaisquer outras que também sintetizem a essência da diferença entre o funcionamento das instituições e governos nesses países, esse artigo parte da perspectiva constitucional comparada, propondo inicialmente uma análise histórica minuciosa do processo constitucional norte-americano, incluindo o período pré-revolucionário, assim como um apanhado do desenho institucional neste primeiro momento implantado. Em seguida, o mesmo será realizado em relação ao processo constitucional que precedeu 1988 no Brasil, levando em consideração todas as suas peculiaridades, inclusive a instabilidade gerada pela antecedente alternância entre governos autoritários e democráticos – ambos, sempre constitucionalizados. Por fim, a etapa final buscará sumarizar os principais pontos convergentes e divergentes encontrados com essa análise histórico-política, a fim de buscar conclusões.    


2 – O contexto norte-americano pré-Convenção de 1787

A discussão que viabilizou a nova concepção de Constituição nascida na Filadélfia tem origens muito anteriores aos simples acontecimentos da Revolução Americana e, por isso, é preciso fazer, inicialmente, um apanhado histórico. De fato, a colonização dos territórios britânicos nas treze colônias é sempre ressaltada pela pluralidade de grupos envolvidos (europeus protestantes, negros escravos e grupos indígenas) assim como pelas diferentes modalidades de ocupação do território, evidentes principalmente pela dicotomia entre o sul escravista dos grandes proprietários e o norte dos pequenos proprietários de tendência industrial e de mão-de-obra livre, o que dificulta falarmos numa universalização de suas experiências. “Não é possível, nesse contexto, generalizar de modo absoluto a experiência colonial. Por outra parte, alguns aspectos comuns efetivamente existiram”[4]. O mais relevante deles, segundo Paixão[5], consistia nas práticas políticas e convenções coloniais comuns à maioria do território, responsáveis por implantar um senso de identidade nacional e autonomia – base não só do sucesso da Revolução como dos trabalhos que posteriormente formulariam a nova constituição. Para o autor, dois destes elementos principais consistiam em: os pactos que fundaram as comunidades, preconizando uma ideia de soberania popular e a noção de autogoverno e autonomia institucional, retratada com a atividade das assembleias locais que se formaram – o que, além de reforçar a ideia de poder que parte do povo, implantou também os princípios da limitação e divisão de poderes.

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Nesse sentido, podemos adicionar também o advento da Revolução Gloriosa, que instaura nos colonos certo sentimento de orgulho e pertencimento britânico, especialmente no que se refere a supremacia do parlamento, com a assinatura do Bill Of Rights e a deposição de Jaime II. “Não seria equivocado afirmar, logo, que a insularidade do regime político e do direito comum inglês foi transposta para o continente norte-americano”[6]. No entanto, ao contrário dos dois primeiros, a Revolução impulsiona no sentido contrário a qualquer possibilidade embrionária de separação, na medida que internaliza os direitos fundamentais, compatibilizando a contradição entre autonomia local colonial e império[7].

Entre crescimento populacional na colônia, rivalidade entre as potências europeias e enfraquecimento da metrópole em relação a colônia[8], dos caminhos que levaram à independência, é efetivamente evidente a relevância também dos conflitos do século XVII, como a Guerra dos Sete Anos que, apesar de num primeiro momento contribuir para a política britânica de “negligência salutar”, ao fim do conflito, acaba por justificar o aumento da interferência metropolitana, com o súbito aumento das taxações a fim de financiar as dívidas contraídas com a guerra e com a obtenção de novas terras no Canadá.

Contudo, a intervenção que aqui surge se difere das prévias tentativas de maior controle impostas nas Medidas de 1947, com o retorno da Dinastia Stuart ao poder, que tentou abolir as assembleias com a nomeação de governadores; ao invés disso, são implementadas medidas mais diretas, que tem início com a taxação do açúcar e a limitação da impressão de moeda, na década de 1760 (Molasses e Currency Act). Com o Stamp Act (1763) e os Townshend Acts (1765), respectivamente, a taxação sobre selos em documentos oficiais e sobre a importação de bens como vidro, papel, couro e chá, é notório aumento na preocupação dos colonos, especialmente com a falta de representação parlamentar pois, simbolicamente, esse movimento da coroa representou ameaça à todas as liberdades e autonomias de que gozavam as 13 colônias.

A escalação do conflito toma ainda novas proporções com os movimentos de reação dos colonos, entre boicotes e circulação de panfletos, o célebre Massacre de Boston assim como o Boston Tea Party culminam nos Intolarable Acts (1774), é convocado o Primeiro Congresso Continental, embora ainda se aspirasse a conciliação – conciliação essa que, na verdade, será buscada até o último momento. Com a declaração de traição por Jorge III e a consequente proibição do comércio com a colônia, tem início os movimentos da independência, cercados de incerteza e consolidados com a Declaração da Independência de 1776 e, finalmente, com a rendição britânica em Yorktown.  É o Segundo Congresso, no entanto, que tomaria decisões mais definitivas, entre elas a criação do Estado de defesa e do Exército Continental, liderado por George Washington com a deflagração da guerra.

Visto tal contexto das condições históricas e políticas que motivaram a Convenção de 1787, é necessário ressaltar ainda que neste momento se dá a produção de dois importantes antecedentes da nova e moderna constituição: os Artigos da Confederação de 1777, o primeiro documento de governo, que dispunha principalmente acerca da cooperação das emancipadas colônias em prol da segurança nacional e as Constituições dos Estados, que apesar de variadas – compatível com a pluralidade de colonizações -, guardavam em comum a herança britânica de supremacia do legislativo assim como uma recém-adquirida desconfiança pelas figuras do executivo, ao invés disso, valorizando as decisões das assembleias locais.


3 – O contexto brasileiro pré-Constituinte de 1987

Já os eventos que culminaram na Constituinte que elaboraria a Constituição de 1988 remetem a abertura política pós-ditadura militar, cunhada pelo governo Geisel como “lenta, gradual e segura”. De fato, a censura e repressão pelas quais ficaram conhecidos os Atos Institucionais que norteavam as ações do governo, assim como o fim do intenso crescimento econômico vivenciado pelo país entre 1968 e 1973, conhecido como “milagre econômico” marcam um desgaste do próprio regime, que em 1974 concede espaço ao partido da oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), na propaganda eleitoral gratuita e revoga seus Atos Institucionais, findando a censura prévia – culminando na vitória da oposição nas eleições estaduais e municipais. Nas eleições seguintes, entretanto, a insatisfação principalmente da ala “linha dura” dos militares fez com que o regime tomasse novamente uma guinada radical, dessa vez com o pacote de abril, responsável por mais uma vez fechar o Congresso e alterar as regras eleitorais, instaurando os senadores “biônicos”, em favorecimento ao partido da situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

O último governo militar de João Batista Figueiredo também expressou, em sua essência, a contradição entre os movimentos de abertura e demonstração da insatisfação de diversos estratos populares de um lado, e a resistência militar, os atentados como o do Riocentro e a extensão da Lei da Anistia aos membros do regime acusados de tortura, do outro. Nesse contexto turbulento, as eleições de 1982 voltam a indicar a insatisfação popular, sendo seguida, dois anos depois, pelo imenso movimento das Diretas Já, sem apoio a emenda Dante de Oliveira. Embora o presidente seguinte, Tancredo Neves, ainda tenha sido eleito pelo voto indireto, em 1985, finalmente é extinto o bipartidarismo e emergem os principais partidos, cinco dos quais até hoje compõe cerca de 70% da Câmara[9].

A necessidade de uma redemocratização rápida e retomada do “estado normal” das coisas se faz urgente, tanto para a resistência ao regime militar como para grupos da sociedade civil antes simpatizantes a ele, como as grandes elites e forças externas, como o governo norte-americano:

Segundo Nelson Werneck Sodré, é falso dizer que o processo político que ficou conhecido como “abertura”, conduzido pelo governo Geisel, surgiu por pressão das forças populares. Elas “nem sequer estavam organizadas e menos ainda tinham condições para uma pressão desse tipo” (SODRÉ, 1984, p. 131). Seria, entretanto, igualmente equivocado ignorar que, a partir da abertura, a participação da sociedade civil no jogo político ganhou progressiva articulação e relevância. No bojo desse processo, emergia uma forma nova de perceber o direito, em especial o direito constitucional.[10]


4 – A Convenção da Filadélfia de 1787

 Os Artigos da Confederação e as Constituições dos Estados logo se mostraram insuficientes. E foi justamente a obsolescência desses documentos perante as novas necessidades dos Estados Unidos que levaram ao encontro na Filadélfia, a partir da disputa territorial-comercial entre os estados de Maryland e Virgínia, para discutir matérias como comércio e emissão de moeda, o exercício do poder por parte da União em relação aos Estados, a viabilidade de um banco nacional, entre outros. A Convenção contou com a presença de delegados de 12 Estados e foi marcada pelo embate entre federalistas, como James Madison, John Jay e Alexander Hamilton, que propunham um governo central forte e antifederalistas, como James Monroe, George Mason, Samuel Adams, que acusavam os primeiros de tentar implantar um “monarca civil” nos Estados Unidos.

Outros debates internos envolviam a oposição entre o Virginia Plan v. o New Jersey Plan. O primeiro, escrito e relatado, respectivamente por James Madison e Edmund Randolph, previa um governo central forte com um Congresso bicameral, sendo a câmera baixa eleita pela população enquanto, a alta, seria responsabilidade dos membros da câmera baixa. Além disso, contava com um Conselho de Revisão, formados por membros do Executivo e do Judiciário, que seriam eleitos pelas câmaras, a fim de realizar uma espécie primitiva de controle de constitucionalidade, embora tal ideia não houvesse sido muito delimitada. Em reação ao grande poder que teriam os Estados grandes no primeiro plano, a segunda proposta, defendida por William Paterson, propunha resolver o problema da sub-representação dos Estados com menor contingente populacional mantendo o Congresso da Convenção, no qual cada Estado teria um voto, no entanto, lhe seriam atribuídos novos poderes, como a possibilidade de impor impostos.

Ao final das discussões, o resultado constituiu num Grande Compromisso, proposto por Roger Sherman. O Congresso se subdividiria em uma Câmara, onde a proporção de representantes eleitos seria proporcional ao contingente populacional, enquanto no Senado, cada Estado teria um número igual de votos. Também foram definidos os procedimentos de eleição presidencial por um colégio eleitoral, cabendo à Câmara eleger o presidente em caso de menos de 2/3 dos votos. Concessões ainda foram realizadas tanto no que se refere a escravidão – os sulistas abriram mão da regulação comercial enquanto os nortistas concordaram com a lei do escravo fugido e com a política de 1/5 do voto – e ao Bill Of Rights, correspondente as 10 primeiras emendas, conquistado pelos antifederalistas.

Inicialmente com o objetivo de revisar os Artigos da Confederação, os trabalhos na Convenção da Filadélfia acabaram por estabelecer uma nova República representativa, nos moldes visionados pelos federalistas. No entanto, seus esforços foram sucedidos pelo embate da ratificação, para atingir o mínimo de 9 estados necessários para colocar em vigor a nova Constituição. Em meio a votações em estados importantes como Nova York e Virgínia, os federalistas Hamilton, Madison e Jay se dedicaram, ainda, a redação dos Artigos Federalistas, publicados semanalmente em jornais locais, com o objetivo de impulsionar a ratificação. Muito além disso, seu impacto perpassou toda uma tradição interpretativa da constituição, servindo de base teórica à ciência política moderna.


5 – A Assembleia Constituinte de 1987

É importante notar que o processo constitucional norte-americano não passa, em nenhum momento, pelo Congresso. No Brasil, por outro lado, a Assembleia eleita em 1986 não só partira de iniciativa congressual como fora propriamente composta por seus membros, dada a rejeição de uma Assembleia Exclusiva – elemento esse que reforça ainda mais a narrativa de continuidade dos militares. Apesar da composição restrita, assim como no caso americano, é evidente que fizeram parte das discussões ao longo deste ano de discussões, diversos grupos da sociedade civil, conquista essa diretamente ligada a pressão imposta durante os movimentos de abertura, e também os recém-surgidos partidos, figuras ainda ausente no período correspondente da história americana, que a todo momento realizavam barganhas.

Justamente nesse período, que se estende entre 1977 e 1985, é possível perceber que o movimento em prol da realização de uma Assembleia Constituinte progressivamente escapa dos círculos político-partidários formalizados, atingindo importantes instituições e movimentos populares. Nesse período, inúmeras publicações destinadas a popularizar a temática constituinte são lançadas. A ideia e o movimento “generalizaram-se nos setores mais mobilizados da população. Ocuparam as pautas de sindicatos, associações, movimentos de base” (MICHILES, 1989, p. 22).

Aqui, as centenas de anos que separam os processos constitucionais de ambos países de fato se fazem sentir. Enquanto que nos Estados Unidos a discussão começa do zero, com os founding fathers tendo de encarar o dilema da criação de um novo modelo de governo, sem referências quaisquer que não a britânica, os constituintes brasileiros, por outro lado, depararam-se com a dura realidade de instabilidade política e alternância entre governos democráticos e autoritários, com o histórico de seis constituições anteriores.

Isso envolveu algo inédito: criar uma constituição não com base em um programa prévio do governo, como foi caso daquelas concebidas durante as ditaduras de 1967 e 1937 – agora, o objetivo era reunir todas as ideias e grupos de pressão díspares, a ruptura e a continuidade, num único projeto democrático viável. “Pode-se falar, nesse sentido, em um processo constituinte com alto grau de reflexividade, ou seja, com acentuada vocação para problematizar a si próprio”[11].

E foi principalmente a partir destes esforços que, a Constituição que da Constituinte de 87/88 emergiu dotava de forte conotação cidadã, em oposição ao decadente paradigma do Estado Social, que viu a ruína principalmente com a declínio da cidadania e as políticas fiscais. Para isso, os constituintes contaram com amplo leque de influências:

Assim sendo, a nossa Constituição inspirou-se nas constituições francesas em busca de garantir os Direitos Fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensão aos cidadãos brasileiros. Já com relação à Constituição Alemã extrai-se a grande contribuição da implementação de um Tribunal Constitucional, tirando do presidente o título de “guardião da constituição”, passando-o a um órgão colegiado, sendo, no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal. Da mesma forma, a Constituição Norte Americana influenciou-nos no que diz respeito ao controle de constitucionalidade difuso (judicial review), ainda que vigore no país o direito de origem anglo-saxão (common law), onde o juiz e a decisão judicial são preponderantes no sistema jurídico.[12]

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Mariana Alvares. Consolidação constitucional e partidária: uma perspectiva comparada entre Brasil e Estados Unidos da América. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5631, 1 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68838. Acesso em: 5 nov. 2024.

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