Introdução
Inicialmente vinculados às caixas e aos institutos de atendimento de saúde de empresas, os serviços dos Planos de Assistência Privada à Saúde passaram a apresentar maior expansão nos 60 e 70, impulsionados pelo crescimento da industrialização brasileira nos anos 50 (GREGORI, 2011).
No ano de 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), houve processo de estatização desses institutos, que passariam, dessa forma, a adotar natureza de institutos de previdência privada. A atuação desses institutos, como provedores de seguro de saúde aos trabalhadores brasileiros, passou a ser regulada pelo Decreto-Lei nº 73 de 1966, que estabelecia as condições para o funcionamento e as instâncias específicas de fiscalização e controle.
Nos anos 80, com a crise econômica do petróleo e recessão no Brasil, e consequente retração dos convênios do INPS com as prestadoras de saúde, empresas e cooperativas médicas passaram elas mesmas a oferecer serviços aos indivíduos, por meio da oferta de planos de saúde coletivos ou individuais. Nesse período, faltavam normas de fiscalização e regulamentação dessas empresas quanto às relações com os usuários, bem como quanto a qualidade dos serviços oferecidos e equilíbrio econômico-financeiros dessas instituições (VIEIRA; VILARINHO, 2004).
Com a Constituição Federal de 1988, o direito à saúde é consagrado como direito social fundamental, a ser disponibilizado pelo Estado Brasileiro, por meio do Sistema Único de Saúde, e, de forma subsidiária, pela inciativa privada, por meio da assistência direta e dos planos de saúde.
Os Planos de Saúde passaram então a ocupar cada vez mais destaque no cenário da atenção à saúde, com a expansão da procura e da oferta desses serviços para grande parcela da sociedade brasileira. Com o crescimento do setor privado de saúde, mas ainda sem a devida normatização e fiscalização, os planos de saúde atuavam de forma indiscriminada, com o cometimento de abusos, que apenas encontravam amparo pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078 de 1990), juntamente com a atuação do Ministério Público (GREGORI, 2011).
Somente com a Lei nº 9.656 de 1998, Lei dos Planos de Saúde (LPS) e com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), pela Lei nº 9.961 de 2000, a empresas operadoras de planos de saúde passaram a se submeter a regras e controles específicos do setor.
Assim, o presente trabalho tem o objetivo de trazer um olhar mais aprofundado sobre a natureza jurídica das operadoras de planos de saúde à luz da legislação regulamentadora e suas relações com o direito civil e comercial, no que tange aos aspectos relativos às disposições contratuais, aos direitos do consumidor e ao processo de dissolução dessas instituições quando não mais encontram-se em condições de prosseguir com suas atividades.
Sobre a Natureza Jurídica
Pela Lei nº 9.656/1998, esses planos ficaram definidos como “prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor”.
Assim, os serviços contratados pelo consumidor, nos termos estabelecidos pelo normativo já descrito, poderiam ser enquadrados sob à ótica do direito civil, como contratos de adesão, sinalagmáticos, onerosos, formais, aleatórios e de longa duração (FERNANDES NETO, 2002).
Constituem-se em contratos de adesão, uma vez que a cláusulas não podem ser modificadas ou propostas pelo consumidor, cabendo à empresa de forma unilateral a definição das regras, em conformidade com os limites regulamentares. Sinalagmáticos e onerosos, porque há reciprocidade de obrigações entre o beneficiário e a operadora do plano, para a garantia da segurança da cobertura de serviços de saúde, com o pagamento de prestação pecuniária mensal e, para isso, exigindo especial formalização.
O caráter aleatório desses contratos está associado ao fato de que contraprestação pela operadora do plano privado, apenas ocorre mediante evento incerto, relacionado a um sinistro. Essa cobertura pode ser alterada periodicamente em função das atualizações do rol de serviços mínimos e condições de cobertura, determinados pela legislação e pela agência de reguladora responsável.
A oferta dos serviços de saúde pode ocorrer, tanto por meio de uma empresa de seguros privados, quanto por uma operadora de serviços de saúde (com rede própria ou credenciada). Em ambos os casos, o instrumento jurídico firmado constitui-se em típico contrato de seguro, com o objetivo principal de assegurar a prestação de uma necessidade de serviço de saúde futuro, comprometendo-se o segurado com o pagamento de uma mensalidade. As empresas operadoras de planos de saúde podem inclusive, de acordo com o art. 35-M Lei nº 9.656/1998, realizar contratos de resseguro com outras empresas de seguro autorizadas a atuar nesse campo, como forma de reduzirem o risco de sua atuação.
Em conformidade com o art. 757 do Código Civil, esses contratos permitem a cobertura indenizatória de riscos previstos, relacionados, nesse caso, à prestação de serviços médico-hospitalares. Por se tratar de matéria de ordem pública, envolvendo a sensível temática da garantia da assistência à saúde, esses contratos passaram a ser normatizados também em legislação específica e regulamentação própria, de modo distinto dos demais seguros regulados pelo Sistema Nacional de Seguros Privados (Susep). Para poderem atuar no setor privado de saúde, essas instituições precisam de autorização específica da ANS e de atenderem a critérios próprios para seus funcionamentos.
Assim, conforme o artigo 1º, II, da Lei nº 9.656/1998, essas organizações precisam se constituir como pessoa jurídica sob a modalidade de sociedade civil ou comercial cooperativa ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato já descritos no mesmo artigo da Lei. As operadoras ainda podem ser classificadas em Administradora, Cooperativa Médica, Cooperativa Odontológica, Autogestão, Filantropia, Medicina de Grupo e Odontologia de Grupo.
Do outro lado da relação contratual, encontra-se o consumidor dos produtos e serviços médico-assistenciais que é pessoa física, titular ou dependente, destinatário final, adquirente de um plano privado de assistência à saúde, ou vinculado a este em razão de uma relação de emprego ou agremiação (sindicato, associações).
Relação de Consumo e Responsabilidades
Quanto ao tipo de relação com o consumidor, as operadoras devem se comprometer a atenderem tanto o Código do Consumidor, no que se refere às regras que couberem, como as normas regulamentadoras da Agência Nacional de Saúde (ANS).
Assim, além das regras estabelecidas pela ANS, pode-se entender a relação das pessoas com as operadoras de planos de saúde como uma relação de consumo, na qual essas instituições atuam como fornecedoras dos serviços, comprometendo-se com os resultados dessa entrega aos consumidores finais. As operadoras, em conformidade com Código de Defesa do Consumidor, podem ser estabelecidas como responsáveis pela cadeia de fornecimento de sua rede de serviços e profissionais de saúde disponibilizados para o atendimento da cobertura dos planos oferecidos. Dessa forma, resta caracterizada a relação de consumo entre o fornecedor dos serviços de saúde e o consumidor final, quando da ocorrência de uma necessidade de atendimento a algum evento da relação contratual (SANTOS; PIMENTE; DA SILVA, 2017).
A Lei dos Planos de Saúde ainda ressalta a aplicação subsidiária do CDC à relação entre usuários e as operadoras dos produtos, conforme disposto em seu artigo 35-G. Além disso, a Súmula nº 469 do Superior Tribunal de Justiça, também afirma que se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde. A relação contratual também deve ser guiada pelo princípio geral da boa-fé nas relações contratuais conforme disposição do Código Civil, de forma, que ao consumidor aplica-se a boa-fé subjetiva ao seu vínculo com o Plano de Saúde e ao Plano aplica-se a boa-fé objetiva, pela qual as operadoras não podem impor cláusulas limitativas do tempo de internação (Súmula nº 302 do STJ), bem como excluir materiais ou medicamentos fundamentais para a realização dos tratamentos cobertos pelo contrato.
Desse modo, pode-se concluir pela aplicação cumulativa e harmônica do Código Civil, do CDC e da Lei dos Planos de Saúde em uma interpretação construtiva para a busca do equilíbrio das relações contratuais e para defesa dos usuários, na condição de parte mais vulnerável dessa relação.
Processo de Liquidação Extrajudicial
Do mesmo modo como ocorre com as instituições financeiras e outras espécies de seguradoras (art. 3º, da Lei 10.190/2001), as instituições operadoras de planos de saúde, estão sujeitas inicialmente ao regime de execução concursal de natureza extrajudicial, conforme estabelecido pela Lei nº 9.656/1998 (COELHO, 2016).
Nesse sentido, com o objetivo de preservar a segurança dos usuários de planos de saúde, cuida a ANS de estabelecer critérios para o acompanhamento econômico-financeiro das operadoras, o que pode levar até mesmo à exclusão dessas operadoras do mercado (TOMAZETTE, 2017).
Essa exclusão compulsória ocorre como regra por meio da determinação de liquidação extrajudicial, uma vez que, inicialmente, as empresas e outras instituições operadoras de planos de saúde não estão sujeitas à recuperação judicial ou falência, como estabelecido na Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998). E conforme também determina a Lei de Falências (Lei no 11.101/2005):
Art. 2o Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
Contudo, poderá haver a falência ou a insolvência civil das operadoras de planos de saúde em casos especiais, quando no curso da liquidação extrajudicial sejam constatados os elementos identificados na Lei dos Planos de Saúde. Nesses casos, a agência reguladora autoriza o liquidante a requerer a falência, não sendo possível o pedido de falência pelos próprios credores. A insolvência civil aplica-se às instituições operadoras que não são consideradas empresas como as associações e entidades de auto-gestão.
Os procedimentos para a liquidação extrajudicial estão dispostos no art. 24 da Lei nº 9.656/98 e na Resolução Normativa nº 316 de 2012 de Diretoria Colegiada RN 316, de forma que pode ser imposta às operadoras de planos sempre que houver risco no atendimento aos destinatários dos serviços regulados:
Art. 24. Sempre que detectadas nas operadoras sujeitas à disciplina desta Lei insuficiência das garantias do equilíbrio financeiro, anormalidades econômico-financeiras ou administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, a ANS poderá determinar a alienação da carteira, o regime de direção fiscal ou técnica, por prazo não superior a trezentos e sessenta e cinco dias, ou a liquidação extrajudicial, conforme a gravidade do caso.
Uma vez identificadas pela ANS evidências de problemas administrativos ou de ordem econômico-financeira que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, a agência reguladora tem a prerrogativa de impor à operadora, como regra, regime especial de intervenção, de direção fiscal ou técnica, com a finalidade de restaurar a adequada gestão da operadora.
Tais regimes constituem condições intermediárias, com vistas a preservar, de forma oportuna e precoce, a funcionalidade da instituição, a manutenção do corpo de funcionários e, acima de tudo, a segurança da massa de clientes da operada dos planos que dependem do regular funcionamento da instituição a garantia de atendimentos de saúde fundamentais.
A RN 316 de 2012 dispõe, em seu art. 2º, do rol das situações que podem ensejar a aplicação de regime especial, sem prejuízo de outras hipóteses que venha a ser encontradas pela ANS.
Nas situações em que se verifique risco para os consumidores da carteira ou quando as irregularidades não forem sanadas devidamente, a ANS, no prazo máximo de noventa dias promoverá a alienação da carteira para outra instituição, no sentido de preservar as garantias da massa de participantes do plano.
Contudo, caso se verifique a falta de condições para a recuperação da instituição gestora de plano de saúde, ou quando a gravidade da situação, independentemente da instauração de regime especial, representar risco iminente à manutenção dos atendimentos, inicia-se processo de liquidação extrajudicial. Os critérios para a imposição da liquidação extrajudicial, conforme também estabelecido na Lei dos Planos de Saúde e na RN 316, são os seguintes:
- indícios de dissolução irregular;
- ausência de substituição de administradores inabilitados ou afastados por determinação da ANS, sempre que o abandono ou a omissão continuada dos órgãos de deliberação importar em risco para a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde dos beneficiários;
- violação grave pela administração da operadora de normas legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como das determinações da Agência Nacional de Saúde Suplementar, no uso de suas atribuições legais.
- aplicação de sanção administrativa de cancelamento de sua autorização de funcionamento ou do registro provisório, na forma do art. 25, VI, da Lei nº 9.656, de 1998.
- apresentar insolvência econômico-financeira;
- não alcançar o objetivo de saneamento da insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou das anormalidades econômico-financeiras graves proposto pelo regime de direção fiscal; ou
- não alcançar o objetivo de saneamento das anormalidades administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, proposto pelo regime de direção técnica.
Com a decretação da liquidação, a ANS realiza a nomeação do liquidante, com amplos poderes de administração e liquidação, sendo o responsável pelo levantamento e classificação dos créditos. Após o atendimento dessas formalidades, seguem-se os seguintes efeitos:
- a cassação da autorização para funcionamento da operadora;
- o cancelamento dos poderes de todos os órgãos de administração da operadora liquidanda;
- a suspensão das ações e execuções judiciais, excetuadas as que tiveram início em momento anterior, quando intentadas por credores com privilégio sobre determinados bens da operadora salvo, neste último caso, as ações e execuções de credores de salários e indenizações trabalhistas.
- o vencimento de todas as obrigações civis ou comerciais da operadora liquidanda;
- a não fluência de juros, ainda que estipulados, se a massa liquidanda não bastar para o pagamento do principal.
- a suspensão do prazo de prescrição executória, a favor ou contra a massa liquidanda;
- a decretação da indisponibilidade dos bens dos administradores e de terceiros que, nos doze meses que antecederam a decretação, tenham concorrido de alguma forma para a irregularidade.
Conforme já comentado, o liquidante nomeado tem o papel inicial de proceder ao levantamento, no prazo de até 90 dias, do balanço do ativo e do passivo da operadora liquidanda, além de elaborar o quadro geral de credores, com o arrolamento dos bens do ativo, a lista dos credores e das importâncias devidas e a classificação dos créditos.
Seguida à divulgação do quadro de credores, abre-se prazo para a realização de eventuais impugnações e correções. Após a decisão final da ANS, os interessados podem dar prosseguimento a ações já iniciadas ou proporem as devidas ações que julguem oportunas.
Definida a lista de credores, o liquidante iniciará a realização do ativo e, no prazo de seis meses, procederá ao pagamento com crédito apurado e aprovado, seguidos os privilégios definidos e critérios de classificação. A cota proporcional do ativo fica reservada para a garantia de pagamento dos credores.
A liquidação extrajudicial se conclui quando o liquidante tiver as contas finais aprovadas e proceder à devida baixa no registro público. Além disso, se no decorrer do processo de liquidação, forem apresentadas as garantias necessárias para a retomada das atividades da operadora, conforme critérios da ANS, o processo de liquidação também poderá ser interrompido.
Ao liquidante, nomeado pela ANS de acordo com critérios de mérito, são atribuídos poderes amplos de gestão dos ativos e passivos para operadora em liquidação, sendo o responsável pela representação judicial e extrajudicial, pela continuidade dos negócios pendentes, por eventual alienação da carteira de clientes e pela prestação de contas à ANS.
O liquidante é responsável também pelo pedido de ajuizamento de processo falimentar ou insolvência civil, após autorização da ANS, quando verificado, por exemplo, que a massa liquidanda não é suficiente para o pagamento de, pelo menos, a metade dos créditos quirografários, conforme disposto no art. 23, § 1º, da Lei 9.656/1998:
§ 1º As operadoras sujeitar-se-ão ao regime de falência ou insolvência civil quando, no curso da liquidação extrajudicial, forem verificadas uma das seguintes hipóteses:
I - o ativo da massa liquidanda não for suficiente para o pagamento de pelo menos a metade dos créditos quirografários;
II - o ativo realizável da massa liquidanda não for suficiente, sequer, para o pagamento das despesas administrativas e operacionais inerentes ao regular processamento da liquidação extrajudicial;
ou III - nas hipóteses de fundados indícios de condutas previstas nos arts. 186 a 189 do Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho de 1945.
(...)
§ 3.º À vista do relatório do liquidante extrajudicial, e em se verificando qualquer uma das hipóteses previstas nos incisos I, II ou III do § 1º deste artigo, a ANS poderá autorizá-lo a requerer a falência ou insolvência civil da operadora
O liquidante ainda é responsável pelo encaminhamento ao Ministério Público de evidências encontradas durante o processo de liquidação, que indiquem a prática de infrações penais pelos antigos diretores, administradores e membros do conselho fiscal.