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Direito fundamental ao parto humanizado à luz da bioética feminista

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Agenda 16/05/2019 às 14:35

2.  DIREITO À SAÚDE E ASSISTÊNCIA À PARTURIENTE

No Brasil a preocupação com o direito à saúde da mulher surgiu no período do Estado Novo (1937 – 1945), regime político instaurado por Getúlio Vargas.  Este começou a aplicar políticas à saúde pública brasileira, sendo que “o primeiro órgão governamental voltado exclusivamente para o cuidado da saúde materno-infantil foi o Departamento Nacional da Criança (DNCR), criado em 1940” (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005, p.652). Ao longo dos anos e com as mudanças no cenário político brasileiro, ampliou-se a atenção à saúde das mulheres.

O Ministério da Saúde (MS), criado em 1953 passou a aplicar o direito à saúde estabelecendo diretrizes sobre uma assistência pautada nos direitos humanos, contudo a sua atuação no cenário nacional não foi tão expressiva.  Em meados de 1970 “[...] um movimento social, iniciado a partir da consciência coletiva dos direitos da pessoa humana, tomou força e imprimiu na letra da lei o direito à saúde, intitulado “Movimento de Reforma Sanitária”, sua proposta básica era a plena democratização da saúde no país” (COSTA, Ana Maria et al, 1990, p.9). Assim, surge o Sistema Único de Saúde.

Em 1984, através do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o Ministério da Saúde ampliou a rede de atenção à saúde da população feminina, reconhecendo as necessidades específicas destas. Através das “[...] pressões internacionais para que os países [...] controlassem o crescimento populacional; as pressões internas [...] por mudanças na política de saúde; e as pressões dos movimentos de mulheres no sentido de que elas fossem tratadas como cidadãs [...]” (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005, p.654), foi possível ter a efetivação do direito e de uma assistência integral à mulher.

Tendo em vista que, a sociedade civil organizada começou a se mobilizar em função da humanização do atendimento à mulher, o governo agiu de modo a atender e responder positivamente aos anseios da população, bem como a comunidade internacional.  

A vulnerabilidade física, psíquica e emocional da mulher no parto, demonstrou a necessidade desta ser assistida com técnicas que respeitassem sua condição momentânea e que contribuíssem para o protagonismo da gestante ao dar à luz. Assim, o parto passou a ser um evento rodeado de garantias.

Considerar a saúde como um assunto de direitos pressupõe uma mudança de paradigma substancial. Nele, a saúde é concebida como um direito humano onde se faz necessário dar resposta às determinantes sociais e políticas que a condicionam. O direito à saúde envolve o compromisso individual e coletivo dos indivíduos para mantê-la, bem como a responsabilidade dos Estados e de outros atores sociais para garantir o cumprimento desse direito. Possibilita ainda que os cidadãos, ao sentirem que os compromissos assumidos pelo Estado ou outros atores não foram cumpridos, se utilizem da “via do recurso” para fazer valer seus direitos. (FESCINA et al, 2010, p.14)

A relação médico-paciente precisa ser coberta com todas as garantias inerentes à assistência digna. Independentemente do grau de instrução da mulher, da cor da pele ou da condição social, o que se espera conforme a nossa constituição garantista é uma assistência de qualidade, respaldada em um tratamento humano, onde há uma valorização da autonomia da mulher e do respeito às suas singularidades; pois o direito à saúde não se restringe a si mesmo, mas envolve outros direitos ligados a ele, como os sexuais e reprodutivos.

Para Corrêa, Alves e Jannuzzi (2015, p.49), “os direitos reprodutivos são essenciais para que as pessoas em geral exerçam seus direitos de autonomia e tenham acesso à saúde, incluindo-se o direito aos serviços integrais e de boa qualidade, com privacidade, ampla informação, livre escolha, confidencialidade e respeito”. De tal modo, o direito à saúde, em atenção à parturiente deve ser regido não apenas sob o acesso à saúde, mas a uma assistência solidária e igualitária, sem qualquer tipo de discriminação ao gênero feminino, o que se tem buscado ao longo desses anos.

2.1 ASSISTÊNCIA NO PARTO

Dentro da sociedade patriarcal, os cuidados para com as parturientes eram tidos pelas mulheres conhecidas como aparadeiras, parteiras-leigas ou comadres. Mulheres de saber comum, mas que serviam a comunidade no auxílio da parturição. “Até as importantes mudanças do modus vivendi do período industrial, as vivências do parto foram, nas mais diferentes culturas, de caráter íntimo e privado, sendo uma experiência compartilhada entre mulheres” (Ministério da Saúde, 2001, p. 18). É nesse sentido que o termo obstetrícia se aplica a prática, pois ele é derivado da expressão “ficar-ao-lado”, que advém do verbo obstare. O estudo dessa expressão equivaleria à mulher que presta auxílio, ou mulher assistindo à parturiente, fazendo menção às parteiras dos primeiros séculos (FILHO, 2017).

O parto por muito tempo foi visto como um tratamento exclusivamente de interferência feminina. A maternidade antigamente se inaugurava com um processo considerado pela sociedade patriarcal como evento violento ao corpo da mulher, pois a passagem da criança pela genital era como uma espécie de estupro invertido. Assim, a obstetrícia cirúrgica, masculina, reivindicou sua superioridade sobre o ofício feminino de partejar, oferecendo conhecimento científico diante do sofrimento do parto natural. Uma vez que este é descrito como um evento medonho e doloroso, a obstetrícia médica passa a oferecer um apagamento dessa experiência, assumindo assim o controle no parto (DINIZ, 2005).

Nagahama e Santiago (2005) demonstram que, ao longo dos anos as parteiras perderam sua função de partejar por conta das novas técnicas no processo de assistência do parto; pois a sociedade, por volta do século XVII quando descobriu todo o processo de reprodução, influenciada pelas noções do modelo cartesiano, que enxergava o corpo feminino como anormal/defeituoso e carente de controle, carecia de uma adequação do parto a um padrão de assistência manipulada pelos homens.  

Esse entendimento cooperou para que houvesse um aumento de procedimentos mais elaborados no parto. A princípio, embora o parto hospitalar tenha ganhado espaço na sociedade moderna, em razão dos avanços tecnológicos e da diminuição dos riscos materno-fetais, passou a existir uma problemática em razão do número exagerado de intervenções cirúrgicas mal feitas e outras desnecessárias. Em detrimento disso, tais procedimentos ocasionaram sequelas físicas às parturientes, problemas de saúde aos recém-nascidos, bem como o processo de desumanização da medicina (OLIVEIRA; FREITAS; SOUSA, 2015).

 “Emily Martin (2001) discorre ainda sobre [...] o desenvolvimento da biomedicina e da industrialização, afirmando que a assistência ao parto entrou numa lógica de consumo de tecnologias e inscreveu-se como uma linha de produção, manejada pelo especialista técnico [...]” (PIMENTEL et al, 2014, p.170). Nessa ótica, o parto mesmo diante de uma instrumentalização técnica, ainda é visto como um evento de relevância para a sociedade. Os desdobramentos ao longo dos anos da assistência à parturiente fundamentou-se nas perspectivas de melhora, porém, esse olhar humano foi ofuscado pelas interferências sexistas e discriminatórias, capitalistas e metódicas, ocasionando em um ambiente de violações.

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De tal forma, percebe-se que a assistência à parturiente no Brasil está voltada para uma técnica de controle do corpo, onde quem detém o conhecimento (médico especialista) impõe sua vontade, ocasionando o empoderamento da autonomia da mulher em parir e por fim gerando o processo de vitimização; pois enfrentar esse modelo de assistência, é enxergar uma atuação médica voltada exclusivamente para um método em que a gestante é tratada sem possibilidade de expor o que sente ou que deseja. Ou seja, há um enquadramento em noções incertas de que gravidez é indiretamente uma patologia e precisa de um profissional especializado nas interconexões do organismo, a fim de tratá-la.  

A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estimam que, em todo o mundo, cerca de meio milhão de mulheres morrem anualmente por causas maternas, 95% das quais ocorrem nos países em desenvolvimento – onde nem sempre os óbitos resultantes de morte materna são corretamente notificados pelas autoridades de saúde, seja por negligência, descaso ou ignorância. Nesses países, como se sabe, morrer de parto sempre foi um acontecimento encarado como um fato natural da vida de uma mulher (COSTA et al, 1990, p.12).

Diante desse cenário, o parto por ser visto como uma patologia pela medicina moderna corrobora para que em casos mais delicados na assistência à parturiente possam acontecer erros, esses tidos pela população leiga como um evento natural ao parto, ou seja, a falta de informação à população sobre o direito à saúde estimula o enrijecimento de um ambiente hospitalar inquestionável sobre possíveis erros da equipe médica.

O sistema de assistência às mulheres em trabalho de parto, além dos problemas sociais que envolvem as relações entre médico e paciente, vem enfrentando deficiências técnicas na sua funcionalidade, como: a superlotação, a falta de equipamento adequado, déficit de medicação e pessoal qualificado, crise no repasse de verbas às instituições; enfim, toda essa situação tem dificultado a evolução de um atendimento digno no sistema de saúde brasileiro, e tem dificultado o combate às violências institucionais.

De acordo a Organização Mundial de Saúde - OMS (2014), sistemas de saúde devem ser responsáveis pela maneira com que as mulheres são tratadas durante o parto, garantindo o desenvolvimento e implementação de políticas claras sobre direitos e normas éticas. Os profissionais de saúde, em todos os níveis precisam de apoio e treinamento para garantir que as mulheres grávidas sejam tratadas com compaixão e dignidade.

2.2 A PROBLEMÁTICA ENTRE PARTO CESARIANA X PARTO HUMANIZADO 

O parto cesárea até hoje tem sido alvo de inúmeras indagações, uma delas é quanto a sua origem. Para Parente et al (2010) a origem da cesariana é incerta, havendo inúmeros documentos da história antiga que fazem menção desse procedimento. Muitos são lendas, narrativas e sagas, mas foram encontrados relatos no Egito antigo, Babilônia, Grécia e Pérsia. Sabe-se que a única semelhança entre as narrativas encontradas é que o parto pela via abdominal era o último recurso aplicado para salvar a vida do bebê e não a da mãe, pois geralmente era realizado post-mortem. “No Brasil, a primeira cesariana foi realizada no Hospital Militar do Recife, em 1817, pelo médico pernambucano José Corrêa Picanço em uma negra escrava, e que teria sobrevivido” (PARENTE et al; 2010, p. 483).

Foi a partir da década de 50 que o parto no Brasil passou a ser “medicalizado” efetivamente na sociedade, e paulatinamente foi-se agregando conhecimentos expressivos, introduzindo técnicas como o uso da anestesia, da hemoterapia, enfim, métodos mais indolores. Durante várias décadas do século XX, muitas mulheres de classe média e alta no mundo industrializado deram à luz inconscientes, ou seja, sob sedação total (“sono crepuscular”) que começou a ser usado na Europa e nos Estados Unidos, e fez muito sucesso entre os médicos e parturientes das elites (DINIZ, 2005).

Todo o processo de desenvolvimento das técnicas para a melhor aplicação da cesárea, com o uso de anestesia, instrumentos cirúrgicos adequados, ambiente adequado à realização do parto via abdominal, favoreceram o desenvolvimento de uma medicina instrumentalizada e tecnicista; porém trouxe uma diminuição das taxas de mortalidade de mães e bebês. Nesse sentido, Parente et al (2010, p.486) continua a dizer que:

A cesariana é uma tecnologia que nos trouxe enorme auxílio para mitigar a mortalidade materna no século XX. Atualmente e, paradoxalmente, a grande questão é como torná-la acessível em países da África Subsaariana, da Ásia e da Oceania, onde há alguns com taxas de menos de 1% de cesariana (Chade) e mortalidade materna de 470 por 100 mil nascidos vivos (Papua Nova Guiné) 25, e evitar sua utilização excessiva em outros, como a Austrália, com taxas de mais de 30%3, mas, ao mesmo tempo, com uma taxa de mortalidade materna de menos de 3/100 mil, e o Brasil, que tem taxas de 44% de cesarianas e uma mortalidade materna de 70/100 mil nascidos vivos.

Na busca em sanar um problema, acabou surgindo outro, o excesso de partos cesárea. No Brasil, após a segunda guerra mundial, houve uma intensificação dos partos cesárea em ambiente hospitalar, e trouxe uma preocupação sobre a necessidade de avaliar os meios utilizados nas intervenções médicas e os impactos na saúde das mães e dos filhos. 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem se mostrado preocupada com os índices de cesárias nos países. “Desde 1985, a comunidade médica internacional considera que a taxa ideal de cesárea seria entre 10% e 15%. Porém, as cesáreas vêm se tornando cada vez mais frequentes tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento (OMS, 2014, p.1)[5].”

Segundo a pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) entre 2011 e 2012, dos 52% dos partos cesarianas no Brasil, a maior parcela das intervenções cirúrgicas se encontram no setor privando, com 88% de nascimentos. Já no SUS, esse índice é de 46%.[6] A pesquisa ainda abordou que, quanto maior o nível de escolaridade, e das condições socioeconômicas, maior a preferência pelos partos cesáreas (BRASIL, 2012). 

No que entende Macedo e Arraes (2013, p.7), o alto índice de cesáreas na rede privada tem sido, via de regra:

1) o medo que as mulheres têm de sentir dor; 2) a influência do médico que indica o parto cirúrgico como o que apresenta menos riscos; 3) a conveniência de se poder escolher a data e a hora do parto; 4) o receio de que um parto normal afete seu desempenho sexual e consequente necessidade de cirurgia de períneo; 5) a comodidade de não ter que ser responsável por escolher, numa postura de passividade, em que todas as responsabilidades serão do profissional médico; 6) o aproveitamento da cirurgia para fazer laqueadura; 7) o status de se optar por uma cesariana que é “parto de rico”.

Sobre esse prisma, a distorção da utilização da cesárea pela obstetrícia tem ocasionado inúmeras violações aos direitos das mulheres. A vulnerabilidade da mulher quanto à sujeição das “orientações médicas” com um teor capitalista visando à preferência de uma determinada via de parto, faz com que haja uma limitação da autonomia feminina na parturição, refletindo de tal maneira o controle médico-institucional sobre o corpo, como uma máquina a ser manipulada.

Carmem Simone Grilo Diniz (2005, p. 629) afirma que:

Uma vez que esse uso irracional provoca mais danos que benefícios, há cerca de 25 anos, inicia-se um movimento internacional por priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus cuidadores, e a desincorporação de tecnologia danosa. O movimento é batizado com nomes diferentes nos diversos países, e no Brasil é em geral chamado de humanização do parto.

Diante desse cenário, tem-se considerado preferível que, dentro das condições desfavoráveis às gestantes, a realização de um atendimento com os partos de menor grau de lesividade. Desta maneira, em um movimento contrário ao modelo tecnicista hospitalar, muitas mulheres gestantes estão optando por outras modalidades de partos, sendo elas as mais variadas, como parto na água, o natural, o parto de cócoras, etc.

O parto natural é o mais antigo de todos, neste o nascimento se dá pela via vaginal, sem intervenção médica ou qualquer tipo de indução; o parto normal é aquele que possui intervenção médica apenas com anestesias moderadas para o alívio da dor; e por fim, o parto na água, realizado em uma banheira de água morna com auxílio do esposo ou acompanhante, assim o profissional de saúde apenas acompanha o trabalho de parto, intervindo somente quando necessário.

Foi a partir da década de 1980 que a preocupação sobre um parto adequado, que respeitasse a mulher em suas peculiaridades, com autonomia e dignidade, passou a se desenvolver. Esse movimento foi chamado de humanização do parto, e passou a ganhar força mundial em virtude do grande índice de práticas tecnicistas da medicina no parto, bem como, a preocupação com a valorização do ser humano. Assim, a discussão sobre a assistência reprodutiva dos profissionais de saúde, passou a crescer. (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005).

A discussão sobre humanização e direitos humanos tem ocupado um espaço relevante no cenário internacional e vem incentivando os Estados a adotarem uma política de atenção às mulheres. Em setembro de 2000, uma conferência internacional de Midwifery, incluiu em seu programa várias referências a “humane care” e “humane approach”. Em novembro do mesmo ano, aconteceu a Conferência Internacional sobre Humanização do Parto, apoiada por instituições como UNICEF e FNUAP (Fundos das Nações Unidas para Infância e para Assuntos de População), que teve entre seus objetivos principais, discutir o conceito de maternidade segura, as questões sobre o cuidado humanizado ao parto e como o cuidado humanizado à maternidade pode ser promovido como um direito humano (DINIZ, 2001).

O Brasil, atualmente, tem passado por esse processo de mudança de cenário ainda muito tímido na realidade obstétrica do país. A preocupação com os altos índices de cesárias, e o impacto causado na saúde dos bebês, haja vista os problemas respiratórios e no sistema imunológico das crianças, fez com que o Ministério da Saúde agregasse ao sistema de saúde brasileira, um programa de humanização na assistência às parturientes, conhecido como Humanização no Pré-natal e nascimento (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005).

A humanização é um evento que descreve o ato de solidariedade e compaixão para com a parturiente, pois está “[...] nas suas muitas versões, expressa uma mudança na compreensão do parto como experiência humana e, para quem o assiste, uma mudança no “que fazer” diante do sofrimento do outro humano. No caso, trata-se do sofrimento da outra [...]” (DINIZ, 2005, p.628).

Ainda nesse entendimento, o Ministério da Saúde (2001, p.9) esclarece dentre as muitas visões sobre humanização no parto, que: “o conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhecimentos, práticas e atitudes que visam a promoção do parto e do nascimento saudável e a prevenção da morbimortalidade materna e perinatal.”

Sob esse foco encontramos o direito à saúde mais humano, onde as ações médicas passam a ser controladas por um modelo pautado na consciência da mínima intervenção e no princípio da autonomia, passando o sujeito a assumir a reponsabilidade pelo seu corpo e o profissional médico em proporcionar orientações adequadas em cada intervenção.

É neste sentido que buscamos demonstrar a assunção da parturiente como sujeito ativo e protagonista de sua experiência, tendo em vista as problematizações levantadas pelo movimento de humanização do parto e do nascimento sobre as noções de risco, autonomia, sexualidade e poder. Ou seja, refletir sobre os elementos vinculados àquilo que o movimento denomina empoderamento da mulher (PIMENTEL et al, 2014, p. 173).

A construção desse novo entendimento sobre o parto provocou no país uma intensificação de meios fiscalizadores aos abusos da medicina para com as mulheres no pré-parto, parto e pós-parto, promovendo unificação do sistema de saúde. Enquanto o modelo tecnicista tradicional valoriza o conhecimento racional e mecânico, padronizado e desvinculado de subjetividade; o padrão de assistência humanizada do parto valoriza as peculiaridades, fortalecimento e empoderamento da mulher frente às desigualdades. Assim, a Organização Mundial da Saúde (2014, online), na publicação sobre a “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, fez uma declaração sobre o assunto, no que diz:

Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente. Em especial, as mulheres grávidas têm o direito de serem iguais em dignidade, de serem livres para procurar, receber e dar informações, de não sofrerem discriminações e de usufruírem o mais alto padrão de saúde física e mental, incluindo a saúde sexual e reprodutiva.

Nesta feita, o parto humanizado elenca sobre si vários direitos inerentes à reprodução. Pois neste, a mulher torna a vestir-se de autonomia quanto à escolha do procedimento mais adequado, revalorizando assim a sua experiência pessoal íntima do parto, passando de objeto de manipulação à protagonista do próprio corpo.

Nesse sentido, Pimentel et al (2014, p.10) afirma que:

O movimento pela humanização do parto e do nascimento propõe, para além do campo médico, mudanças sociais. Afirmando que é preciso reconhecer e valorizar a autonomia da mulher, sublinha a formação de um sujeito ativo no processo de tomada de decisão, subvertendo uma lógica patriarcalista subjacente ao modelo tecnocrático. Com acesso à informação clara e de qualidade durante o pré-natal, a mulher pode fazer escolhas informadas, reafirmando a questão de que saber é poder. Assim sendo, retoma-se o caráter subjetivo da experiência do parto e as questões psicossociais e culturais nele envolvidas. É neste sentido que se fala em empoderamento feminino e na conquista do protagonismo da mulher na parturição.

Na proposta da humanização do parto, este deixa de ser visto como uma patologia que carece de intervenção cirúrgica ou de controle tecnocrático, e torna-se um evento natural e menos traumático. Assim, a parturição obtém uma assistência médico-hospitalar voltada para o tratamento digno e adequada à condição física e psíquica da mulher, de modo a priorizar o protagonismo exclusivo da mãe ao nascituro. Dessa forma, tal movimento proporciona o retorno da medicina tecnicista de controle para um olhar humano no desenvolvimento de uma assistência pautada no respeito aos direitos fundamentais ligados à mulher, sendo na verdade o próprio direito fundamental da mulher em parir de forma humana e digna.

2.3 NORMATIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA À PARTURIENTE

No Brasil não há legislação específica no âmbito nacional ou estadual que efetivamente proteja as mulheres gestantes contra a violência obstétrica realizada nas instituições hospitalares, e com isso, estas se encontram vulneráveis as práticas indiscriminadas de violação à sua integridade física, psíquica e emocional.

Conforme o Dossiê da Rede Parto do Princípio (2012), países como a Argentina e Venezuela, já tratam da matéria com mais propriedade em seu ordenamento jurídico. Na Argentina a Lei nº 26.485/09 trata sobre a Proteção Integral para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres nos Âmbitos em que se desenvolvem suas Relações Interpessoais (ARGENTINA, 2009), e na Venezuela a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da Violência (VENEZUELA, 2007). Contudo, gradativamente o Brasil vem alargando sua proteção para essas mulheres, trazendo pequenas possibilidades para inibir ações abusivas no momento do parto.

As leis que tutelam os direitos das mulheres são: a lei nº 10.778/2003, que “estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviço de saúde, público ou privado” (BRASIL, 2003). A lei nº 11.340/06, chamada de lei Maria da Penha, que trás em seu texto disposições obre os direitos das mulheres, no que diz:

Art. 2o  Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 3o  Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2006)

Tanto a convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (ONU, 1979)[7], quanto a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher[8] (OEA, 1994), propiciaram uma visibilidade sobre os direitos fundamentais das mulheres, e assim, deram força para que estes fossem reconhecidos internacionalmente, e hoje integram nosso ordenamento jurídico.

Existe ainda a Lei nº 11.634 (BRASIL, 2007), essa trás em seu texto “sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde”. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata de forma específica sobre o atendimento médico – hospitalar para a gestante adolescente, no momento do parto (BRASIL, 1990).

E por fim a lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005 (BRASIL, 2005), chamada de lei do parto, que garante a presença de um acompanhante durante todo o trabalho de parto até o pós-parto imediato, no Sistema único de Saúde.

 Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.§ 1o O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente (BRASIL, 2005).

Quando a gestante tem um acompanhante de sua escolha auxiliando-a, esta passa a desenvolver uma maior confiança no parto, o que por sua vez facilita o atendimento médico, pois o apoio emocional viabiliza um parto mais seguro. Por tal motivo, esta lei amplia seu rígido alcance, não se restringindo apenas a um direito, mas a possibilidade de uma escolha autônoma da parturiente à pessoa que irá acompanhá-la, sendo esta o responsável pela fiscalização dos serviços de saúde e o procedimento adotado pela equipe médica.

Além das leis, existem algumas portarias do MS que estabelecem de forma específica sobre a assistência às parturientes, quais sejam: Portaria 569/2000 (BRASIL, 2000), trata do programa de humanização no pré-natal e no nascimento; Portaria 1.067/2005 (BRASIL, 2005), que instaurou a Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal, a Portaria nº 1.820/2009 (BRASIL, 2009), que elenca direitos e deveres dos usuários da rede de saúde brasileira e a Portaria 1.459/2011 - que é a Rede Cegonha ( BRASIL, 2011).

Sobre os autores
Marcos Silva Marinho

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Adna; MARINHO, Marcos Silva. Direito fundamental ao parto humanizado à luz da bioética feminista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5797, 16 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73377. Acesso em: 22 nov. 2024.

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