1. INTRODUÇÃO
Questão tormentosa que ainda possui bastante repercussão no cotidiano dos operadores do Direito repousa na ideia de que a inafastabilidade de jurisdição, preceito previsto no art. 5º, XXXV 1, da Constituição da República, seria uma norma apta a autorizar ao jurisdicionado o imediato acionamento do Poder Judiciário para analisar qualquer pleito oriundo de uma relação jurídico-administrativa, independentemente de prévio requerimento aos órgãos ou entidades públicas pertinentes à demanda.
Percebe-se da letura de petições e de artigos jurídicos a propagação da máxima de que o Poder Judiciário poderia ser acionado mesmo sem que o Poder Público fosse provocado pela via administrativa a realizar prévia manifestação, mas sem se questionar ter havido ou não anterior lesão ou ameaça de lesão a direito, ou uma pretensão resistida. A bem da verdade, há situações em que será possível o acesso “direto” à Justiça, mas há uma outra miríade de ocasiões em que o pedido administrativo se desponta como condição indispensável para que surja o interesse de agir. E tais hipóteses ressoam especialmente quando se relacionam aos direitos potestativos.
Embora se trate de direito fundamental, o entendimento de que o acesso à Justiça é incondicionado resulta de uma apressada interpretação do dispositivo constitucional cuja doutrina há muito vem esclarecendo seus contornos, o que não se desconhece também ser objeto de análises acadêmicas e judiciais com conclusões diametralmente opostas.
Destaca-se de início: nem todos os pleitos precisam de prévio requerimento administrativo para posterior provocação do judiciário. São excetuadas desse universo as situações em que a Administração Pública lesa ou ameaça lesar direito por ato próprio ou por omissão, quando, por exemplo, atrasa o pagamento de uma gratificação já deferida, realiza ato administrativo em malefício ao administrado, ou retira um direito anteriormente concedido. Em tais hipóteses são dispensáveis prévios pedidos administrativos para fazer surgir o interesse de agir e a necessidade de provocação do Judiciário, mas serão apresentadas outras cuja conclusão é diversa.
Outra confusão é comum neste assunto. Não se exige o esgotamento da via administrativa, mas tão-somente um início de resistência que revele ao menos a ameaçade lesão a direito que poderá, ou não, exigir prévia provocação.
Não se deve partir de uma ideia inabalável de que o acesso à Justiça para discussões atinentes à Administração seria sempre uma porta aberta que dispensaria prévia manifestação do Poder Público. Afinal, ocorrerão situações em que haverá um limbo decisório no âmbito administrativo, nem positivo nem negativo, em que deverá ser dada deferência à Administração para oportunizar que realize suas atividades típicas antes que se considere necessária a intervenção de um Poder em outro.
Para se chegar na correta interpretação dos institutos ora em comento, será apresentado um recorte da história para contextualizar em que ponto nosso Direito se situa e, para isso, tratar-se-á da origem dos sistemas de controle da administração e sua relação com o Poder Judiciário.
Recentemente, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral reconhecida, relançou luzes sobre o tema ao decidir que o requerimento de aposentadoria, por exemplo, não poderia ser inaugurado junto ao Poder Judiciário sem que antes houvesse um pedido administrativo e que fosse revelada alguma resistência pela Administração Pública, seja pela negativa do direito, seja pela mora injustificada do processamento do pedido.
Tal conclusão não é nova, mas sim, pouco enaltecida. A regra majoritariamente aceita e repisada neste entendimento do Pretório Excelso prestigiou o vetusto princípio da separação de poderes e revelou deferência às capacidades institucionais típicas dos Poderes e suas reservas de atuação, tendo em vista que a análise atalhada pelo Judiciário acerca de um pleito administrativo seria impedida pela ausência de demonstração de efetiva lesão ou ameaça a direito, como exige o texto constitucional, além do risco de transformar o Poder judicante em “mero carimbador”.
Sem esgotar o tema, este artigo tem o objetivo de fazer breve histórico sobre os sistemas de controle de atos administrativos e esclarecer tais conceitos, analisar e relacionar a inafastabilidade de jurisdição, requerimento administrativo e interesse de agir para apontar situações em que o Poder Judiciário não poderá apreciar o pleito do autor sem que antes haja prévia provocação da Administração Pública, razão pela qual a relação jurídica entre privados não será objeto deste trabalho.
2. SISTEMAS ADMINISTRATIVOS
Por sistema administrativo, ou sistema de controle jurisdicional da Administração, entende-se o regime adotado pelo Estado para a correção dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos praticados pelo Poder Público em qualquer dos seus departamentos de governo (MEIRELLES; FILHO, 2016).
A doutrina aponta dois denominados sistemas de controle: o francês, dual, em que há autonomia e predominância do julgamento administrativo de pleito desta natureza (contencioso administrativo), com força de coisa julgada, definitividade, ladeado pelo controle jurisdicional, que não poderia interferir no primeiro. Por outra via, há o chamado sistema inglês, uno, em que o Poder Judiciário predominaria e poderia irrestritamente julgar os pleitos oriundos de relação com o Poder Público, não havendo autonomia do julgamento pelo contencioso administrativo, o que resulta em valorização da inafastabilidade da jurisdição, como se verá.
2.1. SISTEMA FRANCÊS
O berço do Direito Administrativo tem sido rotineiramente apontado como a Lei de 28 puvlioso do Ano VIII, com edição em 1800, na França, legislação que disciplinou sistematicamente a organização administrativa naquele país, com base na hierarquia e centralização (DI PIETRO, 2019). Por óbvio, não foi a simples edição da lei que fez emergir esse ramo. A doutrina costuma indicar o nascimento do Direito Administrativo como fruto das concepções político-institucional – e por que não filosóficas – que afloravam à época pós-revolucionária, em antagonismo com o Antigo Regime. Havia uma conotação de limitação do poder e exaltação da separação dos poderes (MEDAUAR, 2018). Também, é comum lembrar do Conselho de Estado, existente desde a Constituição do Ano VIII (1799) (BARROSO, 2015), órgão julgador em âmbito administrativo cujas peculiaridades caracterizam o “sistema francês”, que deu contornos ao direito administrativo com emissão de pareceres, em geral acatados pelo Chefe do Executivo da França e que, a partir de 1872, passou a julgar de forma independente e com caráter de definitividade, formando coisa julgada (MEDAUAR, 2018).
Porém, é salutar encorajar o operador do direito a questionar dogmas históricos, razão pela qual merece destaque um estudo que contraria a apontada visão românticada origem do Direito Administrativo.
Gustavo Binenbojm (2014) leciona que, ao contrário da crença comum, a formação do direito Administrativo não teve sua gênese oxigenada pela ideia de garantismo e limitação do poder do Estado, mas sim, na “desconfiança dos revolucionários franceses contra os tribunais judiciais pretendendo impedir que o espírito de hostilidade existente nestes últimos contra a Revolução limitasse a ação das autoridades administrativas revolucionárias” (BINENBOJM, 2014, p. 13).
Nas palavras de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, a separação dos poderes baseia-se na compreensão de que “ao se conferir funções estatais diferentes a órgãos e pessoas diversas, evita-se uma concentração excessiva de poderes nas mãos de qualquer autoridade, afastando-se o risco do despotismo” (SOUZA NETO; SARMENTO, 2017, p. 306).
Mas Gustavo Binembojm destaca que o princípio da separação dos poderes teria sido um mero pretexto para elastecer a liberdade decisória da administração pública, tornando-a imune do controle judicial. O interessante é que esse modelo de contencioso em que a administração seria juiz de si própria revelou uma ideia que, em vez de se afastar, mais se aproximaria do Antigo Regime (BINEMBOJM, 2014).
É a partir dessa percepção que surgem os privilégios da administração pública – alguns remanescentes até hoje – e o antigo dogma da verticalidadeentre a relação Estado-particular, revelando-se mais um resquício do ancien régime do que uma ampla superação. Por isso, Gustavo Binenbojm conclui que a separação de poderes serviu, de forma contraditória, mais para uma imunizaçãodos processos decisórios do Poder Executivo do que para aplicação da ideia de Montesquieu de poderes controlando uns aos outros. Afinal, partindo-se da ideia de que ninguém é bom juiz de si mesmo¸ não haveria como se reconhecer um viés garantista e de limitação do Estado quando a própria administração, em especial o Poder Executivo, cria as suas leis e julga a si própria (BINENBOJM, 2014).
Também nessa ordem de ideias, Lenio Luiz Streck afirma que desconfiança nos julgadores marcou uma tradição francesa que perdura até hoje. Relembra o autor que a falta de fé no Poder Judiciário se dá em razão do trabalho que haviam feito em favor do monarca, com docilidade e conformismo (STRECK, 2018), o que vai ao encontro das compreensões expostas.
Há de se destacar que alguns dos autores clássicos brasileiros também concordam com tal visão. Corrobora Di Pietro (2019) que a gênese de um contencioso administrativo na França deu-se em razão do apego à separação dos poderes e na desconfiança nos juízes do velho regime. Afinal, o próprio receio quanto ao judiciário, forte aliado do Antigo Regime, e a resistência ao poder real, foram algumas das causas que motivaram a própria Revolução (VEDEL, 1964).
E por consequência disso é que teria surgido a dualidade de jurisdição: uma jurisdição administrativa (formando um contencioso administrativo) e uma jurisdição comum, típica do Poder Judiciário (DI PIETRO, 2019).
A separação quase absoluta de poderes que impede o judiciário de julgar a Administração Pública não passa indene de questionamentos acerca da sua imparcialidade. Afinal, verifica-se que a Administração participa, no mesmo processo, como julgador e julgado.
Todo esse breve histórico serve para contextualizar e explicar a origem da tão propalada tradição francesa da dualidade de jurisdição ou de contencioso administrativo, que também são adotados até hoje em países como Alemanha, Suécia e Portugal (OLIVEIRA, 2015; MEDAUAR, 2018). Sobre o tema, precisa é a conceituação da Prof. Odete Medauar (2018, p. 390):
O sistema de jurisdição dupla, de origem francesa, caracteriza-se pela existência paralela de duas ordens de jurisdição: a jurisdição ordinária ou comum e a jurisdição administrativa, destinada a julgar litígios que envolvem a Administração Pública. A jurisdição administrativa ou contencioso administrativo forma um conjunto escalonado de juízes ou tribunais administrativos, encabeçados por um órgão supremo, de regra denominado Conselho de Estado, independente do tribunal supremo da jurisdição ordinária e cujas decisões representam a última instância.
2.2. SISTEMA INGLÊS
O sistema inglês é denominado também como sistema de jurisdição única, pois todos os litígios, inclusive os oriundos do regime jurídico administrativo, poderão ser julgados pelo Poder Judiciário. Não há que se falar, aqui, em uma dualidade de jurisdições, não havendo um contencioso administrativo que julgue com exclusividade e definitividade uma situação de interesse e de relação jurídica com o Poder Público.
Isso se deu especialmente porque o direito administrativo anglo-saxão, posterior ao direito continental europeu, não foi inspirado em razões históricas que fomentaram a intepretação francesa dada à separação dos poderes e que guiaram na criação de uma jurisdição administrativa (DI PIETRO, 2019).
O direito inglês é inspirado na common law, não tem base romanística como o direito francês, italiano, alemão, e até o brasileiro, e preceitua que o poder que o Judiciário exerce sobre a Administração Pública é o mesmo que exerce sobre os particulares. Tal situação se denota especialmente pela atração aos princípios da rule of law, no Reino Unido, e do devido processo legal nos Estados Unidos, que sofreu forte inspiração inglesa (DI PIETRO, 2019).
Outro ponto digno de nota é que na Inglaterra não havia o contexto histórico francês que resultou em uma rejeição ao controle do Judiciário sobre o Executivo. Ao contrário, receavam os excessos do Executivo, razão pela qual o Legislativo e Judiciário revelavam-se como legítimos controladores. Havia na Inglaterra uma sensação de que o Direito Administrativo asseguraria privilégios em detrimento do particular, o que legitimaria a atuação do Judiciário para controle dos atos da Administração Pública (DI PIETRO, 2019).
2.3. SISTEMA ADOTADO NO BRASIL
Di Pietro (2019) leciona que o direito administrativo brasileiro sofre influência do direito estrangeiro de países com origem romanística, do direito comunitário europeu e do commom law. A autora menciona que, logo no primeiro período da República, o Brasil já se afastou da dualidade de jurisdição, de influência francesa, para acolher o modelo anglo-americano da unicidade, suprimindo-se o Poder Moderador e o Conselho de Estado. Desde a primeira Constituição Republicana (1891), o Brasil tem adotado o sistema inglês, de jurisdição única. Houve especial inspiração na Constituição norte-americana para a adoção dos preceitos do rule of law e do judicial control (MEIRELLES; FILHO, 2016).
Mas, nem sempre foi assim. Luiz Guilherme Marinoni (2018) recorda que a Constituição de 1988 não reproduziu o texto da Constituição anterior que, a partir da Emenda n. 7/77, passou a prever o curso forçado administrativo, disciplinado pelo no art. 153, § 4º:
o ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido
No mesmo sentido é o pertinente apontamento de José Afonso da Silva (2018, p. 434):
a primeira garantia que o texto revela é a de que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o contencioso administrativo que estava previsto na Constituição revogada.
Todavia, o contencioso administrativo nesses moldes de curso forçado jamais foi implantado na prática apesar da previsão em nossa Constituição anterior, conforme a citada doutrina (MARINONI, 2018; SILVA, 2018).
A regra do controle pelo Poder Judiciário é um dos pilares do Estado de direito (rule of law) e garante que os direitos reconhecidos pelo ordenamento recebam proteção quando lesados ou ameaçados. Isso não quer dizer, no entanto, que a Administração pública seja impedida de decidir e de julgar seus próprios atos. O que lhe vedado é decidir com definitividade da coisa julgada, atribuição que entre nós somente é conferida ao Poder Judiciário (BINENBOJM, 2014).
Atualmente, a única exceção expressa na Constituição de 1988 é a prevista no art. 217, § 1º, que dispõe que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei.
Este tema possui relação direta com a inafastabilidade de jurisdição no Brasil, objeto de estudo que será mais bem detalhado a partir de agora.
3. INAFASTABILIDADE DE JURISDIÇÃO E INTERESSE DE AGIR
3.1. NECESSIDADE OU NÃO DE PRÉVIO REQUERIMENTO A PARTIR DA ANÁLISE DO CASO CONCRETO NA RELAÇÃO JURÍDICO ADMINISTRATIVA
Rememore-se o teor do art. 5o, XXXV, da Constituição de 1988:
A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Em uma primeira e literal leitura, é possível compreender que a norma estipula uma vedação ao legislador, que não poderá indicar por lei hipóteses e matérias não passíveis de apreciação pelo Judiciário. Dito de outro modo, a norma parece impedir que o legislador indique situações em que a apreciação do pelo Poder Judiciário seria vedada (MARINONI, 2018).
Por outro lado, também se interpreta da norma que ao legislador não é permitido criar qualquer tipo de obstáculo ao próprio direito de ação, o que, embora não imponha impedimentos a determinados temas de cunho material, acaba por embaraçar o acesso à Justiça pela dificuldade do uso do instrumento processual (MARINONI, 2018). É por tal motivo, por exemplo, que o citado autor relembra que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula n. 665, ao rezar que “viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa”. Em tal hipótese, o Pretório Excelso entendeu que o elevado valor da causa poderia culminar em pagamento de custas processuais dissonantes do próprio custo do exercício da jurisdição, sendo necessária a estipulação de um limite no valor cobrado pelo serviço público prestado pelo Judiciário.
Ainda sobre o viés processual, duas locuções-chave são extraídas do referido dispositivo constitucional: lesão a direito e ameaça a direito. Estas são as expressas situações em que a lei não pode afastar o acesso ao Judiciário, e é neste ponto que se vislumbra a ligação umbilical entre o preceito constitucional da inafastabilidade de jurisdição e a condição da ação 2 conhecida como interesse de agir.
A afinidade entre os institutos perpassa em princípio pela correlação entre interesse de agir substancial e processual. Essa separação é destacada por Enrico Tullio Liebman, para quem o interesse processual
se distingue do interesse substancial, para cuja proteção se intenta a ação, da mesma maneira como se distinguem os dois direitos correspondentes: o substancial que se afirma pertencer ao autor e o processual que se exerce para a tutela do primeiro. Interesse de agir é , por isso, um interesse processual, secundário e instrumental com relação ao interesse substancial primário; tem por objeto o provimento que se pede ao juiz como meio para obter a satisfação de um interesse primário lesado pelo comportamento da parte contrária, ou, mais genericamente, pela situação de fato objetivamente existente (LIEBMAN, 1986, p. 154-155).
Quanto ao interesse de agir processual, embora haja divergências, repercute na doutrina uma tríade subdivisão. O interesse-adequação conforma-se como a idoneidade do meio processual utilizado para se alcançar a tutela jurisdicional pretendida. Já o interesse-utilidade se traduz na ideia de que a tutela jurisdicional deve trazer um incremento à esfera jurídica do autor da ação, algum proveito ao requerente, uma melhora em sua situação fática. Por fim, o interesse-necessidade deve ser percebido como a demonstração de que a atuação do judiciário se revela como indispensável para proteção do direito perseguido (NEVES, 2018).
A ausência de demonstração do interesse de agir (ou de outra condição da ação – a legitimidade) resulta na impossibilidade de apreciação do mérito da causa pelo Judiciário, partindo-se da ideia de que se adotou em regra a teoria eclética da ação no Brasil, resultando, para essa teoria, em extinção do feito por sentença terminativa sempre que ausente qualquer das condições da ação (NEVES, 2018). Tais condições são expressamente previstas em lei, como no art. 17. do Código de Processo Civil 3.
Mas seriam tais requisitos constitucionais? Afinal, a lei estaria limitando o acesso ao judiciário em aparente contrariedade ao preceito constitucional da inafastabilidade de jurisdição que diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
E a conclusão não pode ser outra, senão por sua constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal firmou a compreensão no sentido de que o direito de ação estampado no art. 5º, XXXV, da Constituição, é compatível com a submissão do demandante a certos requisitos de ordem processual, estabelecidos nas leis ordinárias, motivo pelo qual as condições da ação sempre tiveram acatamento nos Tribunais Superiores.
A tal conclusão se chegou porque a exigência da demonstração de que a obtenção do provimento judicial é providência adequada, útil e necessária – pressupostos que constituem o denominado “interesse de agir” exigido expressamente no art. 17. do Código de Processo Civil – tem sido considerada como requisito natural para o acesso ao Poder Judiciário, com fonte direta do próprio art. 5o, XXXV, da Constituição. Em outras palavras, embora aparentemente seja condicionante inaugurada por lei federal, o interesse de agir é extraído e revelado diretamente da interpretação do dispositivo constitucional, o que repele qualquer argumento no sentido da existência de limitação de acesso à Justiça pela lei.
No ponto, são válidas as preciosas lições do saudoso Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki que, no voto proferido no RExt nº 631.240/MG, consignou que
antes de antagonizar-se com ela, o interesse de agir, na verdade, é requisito natural e próprio da garantia constitucional de acesso ao Judiciário. Realmente, se a ação judicial é assegurada e reservada para casos de “lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5o, XXXV), não seria apropriado aceitá-la em hipóteses em que, nem em tese, se verifica lesão ou ameaça dessa natureza.
Como reforço argumentativo, recorda-se precedente histórico do STF da relatoria do Ministro Eros Roberto Grau:
As garantias constitucionais do direito de petição e da inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário, quando se trata de lesão ou ameaça a direito, reclamam, para o seu exercício, a observância do que preceitua o direito processual (art. 5º, XXXIV, a, e XXXV, da CF/1988) 4
Ao se ajuizar uma ação, busca-se a proteção de um interesse juridicamente violado. Então, diz-se que o autor possui interesse de agir, de natureza instrumental, pois nasce da necessidade de se obter por meio do processo a proteção ao interesse substancial ou material. Ou seja, surge o processo como único remédio capaz à aplicação do direito no caso concreto em que haja um prévio conflito. Torna-se necessária a prestação jurisdicional quando o autor da demanda evidencia que houve fato violador do seu direito, sendo a jurisdição a indispensável forma de se obter a solução para o dissenso de forma definitiva. Aliado a isso, deve o resultado pretendido ser útil, por meio de instrumento processual adequado.
Aqui há espaço para o destaque de uma clássica e importante máxima. O exercício da jurisdição subjetiva exige uma lide, uma situação configurada por um conflito de interesses em que há uma pretensão resistida. Vale dizer: surge o interesse a partir de alguma resistênciado cidadão em ver seu direito concretizado, ainda que o administrado não tenha praticado qualquer ato. Essa resistência pode ser (i) espontânea da Administração Pública, durante uma (a) preexistente relação em curso ou (b) de inexistente anterior relação, ou (ii) inaugurada somente após uma provocação do cidadão.
Indispensável citar novamente o Ministro Teori Zavascki, em mais um trecho de seu já mencionado voto:
Ora, não se pode considerar presente o interesse de agir em juízo nas hipóteses em que o demandado não tem o dever de prestar, ou porque a prestação é inexigível ou porque sua satisfação pressupõe a provocação do titular do direito. Essa hipótese é especialmente corriqueira no domínio dos direitos potestativos. O que caracteriza os direitos potestativos – ou formativos-geradores, na linguagem de Pontes de Miranda -, é justamente isso: enquanto não forem efetivamente exercidos pelo seu titular, eles não podem ser satisfeitos espontaneamente pelo sujeito passivo. Por isso se afirma que a um direito potestativo ainda não exercido corresponde um dever de sujeição, mas não um dever de imediata satisfação. A consequência pratica é que, enquanto não exercido o direito pelo seu titular, não pode, logicamente, ser considerado violado ou sequer ameaçado pelo devedor da prestação. Sendo assim, não há interesse de agir em juízo visando a obter a satisfação de um direito potestativo ainda não exercido porque, em tal situação, não está o sujeito passivo com o dever – e sequer com a faculdade – de satisfazer espontaneamente a correspondente prestação. O dever de satisfazer a entrega da prestação somente nasce com a manifestação do sujeito ativo de exercer efetivamente o direito
(RExt nº 631.240/MG).
Este talvez seja o ponto central do argumento quanto ao momento em que surge o interesse de agir na relação jurídico-administrativa.
É potestativo (ou formativo) o direito cujo exercício é capaz de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este nada possa fazer a não ser se sujeitar. Não há uma correspondência com outro dever a ser prestado por quem se sujeitou, situação que é denominada como estado de sujeição, e que se difere, portanto, dos direitos subjetivos – justamente por não se contrapor a um dever como ocorre nestes (GAGLIANO; PAMPLONA, 2017). Em tais casos, não há se falar em violação ou ameaça antes mesmo que seja exercido contra quem de direito.
Para que se possa falar em uma obrigação de prestação pela Administração Pública em casos de direitos potestativos do administrado/cidadão, este, invariavelmente, necessita demonstrar o inequívoco interesse em exercê-los, momento em que o estado de sujeição se transmuda em dever. Somente a partir do requerimento surgiria o direito subjetivo, não se cogitando lesão ou ameaça antes disso.
Logo, nos casos em que o direito deva ser primeiramente exercido em face da Administração Pública, ausente qualquer dever desta e até mesmo prévio ato ameaçador ou lesivo a direito, não há se falar em interesse de agir e não deve ser admitida a provocação ao Poder Judiciário.
Por um lado, existem as mais variadas situações em que o administrado é surpreendido com um ato ou omissão do Poder Público que resulta em violação ou ameaça seu direito. Em tais casos estarão preenchidos os requisitos constitucionais para acesso imediato à Justiça já que o cidadão já sofreu um ônus em sua esfera jurídica. Já ocorrida a lesão ou ameaça, não há qualquer necessidade de um requerimento administrativo. Eventual pedido à Administração serviria apenas para provocá-la a uma reconsideração ou reanálise de seu pleito pelo mesmo agente realizador do ato ou por um superior, tendo em vista que um mero esclarecimento fático ou documental poderia oportunizar uma nova decisão em favor do cidadão, além de se evitar uma demorada e quase sempre custosa batalha judicial. Porém, mesmo antes de qualquer requerimento do cidadão ou resposta da Administração, já estariam configuradas a lesão ou ameaça ao direito e a pretensão resistida aptas a autorizar o imediato ingresso com um processo judicial.
Celso Antônio Bandeira de Mello faz pertinente consideração acerca das oportunidades em que já se permite acesso direto ao judiciário:
Dessarte, é imperioso reconhecer que existe direito à proteção judicial toda vez que (a) a ruptura da legalidade cause ao administrado um agravo pessoal do qual estaria livre se fosse mantida íntegra a ordem jurídica, ou (b) lhe seja subtraída uma vantagem a que acederia ou a que se propõe nos termos da lei a aceder e que pessoalmente desfrutaria ou faria jus a disputa-la se não houvesse ruptura da legalidade (MELLO, 2015, p. 976).
Tais situações são as mais corriqueiras. Imagine-se um servidor que não receba seu salário no prazo normativamente determinado, ou que tenha sido removido de região de lotação em violação aos dispositivos legais. Ou, ainda, quando a Administração Pública anula um ato administrativo em prejuízo específico a uma ou mais pessoas. Suponha-se, também, um cidadão que sofreu uma lesão em seu bem em razão da prestação de um serviço público ou que fora ameaçado de ter um serviço público interrompido sem atendimento aos preceitos legais. Talvez, o exemplo mais compreensível diga respeito ao direito à saúde. Imagine-se um cidadão que deixou de receber um medicamento a que fazia jus pelo Sistema Único de Saúde – SUS – durante um tratamento que já vinha sendo realizando há meses.
São todas essas hipóteses em que a lesão ou ameaça a direito são flagrantes, seja por uma inação ou por ação do Poder Público, sendo dispensado qualquer peticionamento prévio à Administração Pública para que possa o cidadão provocar o judiciário.
Por outra via, inúmeras são as situações em que a Administração Pública necessita ser provocada para realizar um ato ou deixar de realizá-lo. Em tais hipóteses, especialmente atinentes a direitos potestativos do cidadão, não há como se considerar existente qualquer lesão ou ameaça a direito antes mesmo de que este seja exercido. São ocasiões em que o administrado possui um direito potencial e facultativo, mas que a Administração Pública não pode satisfazê-lo antes de ser provocada justamente porque não sabe quando e se o cidadão vai ou não dele querer usufruir. Não há direito subjetivo, mas estado de sujeição.
Em casos tais, antes do exercício do direito em um requerimento administrativo, por exemplo, não há como dizer ter havido qualquer pretensão resistida já que sequer oportunizou-se à Administração pública o deferimento ou não do pleito.
Com exemplos em diversas áreas a situação se tornará mais clara. Novamente a saúde será utilizada como tema e aqui se trará uma situação diversa da mencionada anteriormente. Suponha-se que uma pessoa descubra ser portadora de uma doença e, após atendimento médico no sistema público, seja-lhe receitado um medicamento fornecido pelo SUS. Nessa hipótese, antes que o cidadão compareça a uma unidade farmacêutica para obter o medicamento mediante receita não há que se falar em mora ou resistência do Poder Público com relação a uma prestação. Não teria surgido, ainda, qualquer lesão ou ameaça a direito antes que tenha recebido, por exemplo, uma negativa de fornecimento, ou uma alegação de que o fármaco demoraria demasiadamente a ser entregue. Parece claro que, antes de tentar obter o medicamento, não teria surgido qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito e, por isso, o ajuizamento de uma ação pleiteando o fármaco antes de demonstrar uma resistência do Poder Público não merece ter o mérito apreciado pelo Judiciário. Não haveria, nesse caso, qualquer necessidade de um processo judicial antes que o Poder Executivo fosse instado a realizar seu mister, qual seja, a prestação do serviço.
Veja-se que a hipótese se difere do exemplo visto em linhas pretéritas em que se alegou que haveria interesse de agir em um atraso no fornecimento de medicamento. Naquele exemplo, o fornecimento teria sido iniciado, mas, posteriormente, interrompido. E essa interrupção, causadora de lesão a direito, que revela o atendimento dos requisitos para acesso à Justiça. Em outra perspectiva, no primeiro exemplo havia o direito subjetivo a uma prestação, enquanto no segundo há a configuração do estado de sujeição.
São vários os exemplos similares em que não há como se falar em conflito ou resistência sem que antes a Administração seja provocada mediante algum requerimento. Não faria sentido que um pedido de parcelamento de crédito tributário, que atenda aos ditames legais, fosse diretamente apresentado ao Poder Judiciário sem que se oportunizasse à administração fazendária a sua apreciação. Outra situação corriqueira é a gratificação financeira por titulação acadêmica a servidor, em que a administração pública não pode incluí-la em seus vencimentos sem que antes seja instada a satisfazer os interesses do administrado. Não há qualquer lesão ou ameaça a direito que justifique o acesso do servidor ao judiciário para pleitear a inclusão de gratificação em seu contracheque antes mesmo que o Poder Público seja provocado a realizar o ato que lhe compete tipicamente. Somente em caso de alguma negativa ou mora injustificada é que surgiria um conflito, uma lesão ou ameaça de lesão a direito.
Interessante foi o enfoque dado pelo Supremo Tribunal Federal no caso dos benefícios previdenciários. São hipóteses em que, em regra, a Administração Pública aguarda um pedido pelo cidadão que deseja ver atendido um direito após demonstrar o preenchimento de requisitos legalmente previstos.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do já citado Recurso Extraordinário nº 631.240/MG (DJe 10/11/2014), Rel. Min. Roberto Barroso, em sede de repercussão geral, cristalizou o entendimento de que “a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise”.
São válidas as lições trazidas pelo voto do Ministro Roberto Barroso:
Assim, se a concessão de um direito depende de requerimento, não se pode falar em lesão ou ameaça a tal direito antes mesmo da formulação do pedido administrativo. O prévio requerimento de concessão, assim, é pressuposto para que se possa acionar legitimamente o Poder Judiciário. Eventual lesão a direito decorrerá, por exemplo, da efetiva análise e indeferimento total ou parcial do pedido, ou, ainda, da excessiva demora em sua apreciação (isto é, quando excedido o prazo de 45 dias previsto no art. 41-A, § 5º, da Lei nº 8.213/1991). Esta, aliás, é a regra geral prevista no Enunciado 77 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais – FONAJEF (“O ajuizamento da ação de concessão de benefício da seguridade social reclama prévio requerimento administrativo”).
Esta é a interpretação mais adequada ao princípio da separação de Poderes. Permitir que o Judiciário conheça originariamente de pedidos cujo acolhimento, por lei, depende de requerimento à Administração significa transformar o juiz em administrador, ou a Justiça em guichê de atendimento do INSS, expressão que já se tornou corrente na matéria. O Judiciário não tem, e nem deve ter, a estrutura necessária para atender às pretensões que, de ordinário, devem ser primeiramente formuladas junto à Administração. O juiz deve estar pronto, isto sim, para responder a alegações de lesão ou ameaça a direito. Mas, se o reconhecimento do direito depende de requerimento, não há lesão ou ameaça possível antes da formulação do pedido administrativo. Assim, não há necessidade de acionar o Judiciário antes desta medida. Daí porque não cabe comparar a situação em exame com as previstas nos arts. 114, §2º, e 217, § 1º, da CRFB/1988, que instituem condições especiais da ação, a fim de extrair um irrestrito acesso ao Judiciário fora destas hipóteses
(STF - RExt nº 631.240/MG - DJe 10/11/2014)
Inúmeras são outras situações práticas que abarrotam o judiciário para que aprecie pleitos de tal natureza sem que haja qualquer resistência do Poder Público. Ora, é corolário da separação de poderes que cada um deles tenha sua independência e exerça, majoritariamente, as funções típicas a que foram vocacionados pela Constituição ou pela Lei. Não cabe ao Poder Judiciário analisar situações de deferimento ou indeferimento de pleitos que são originalmente administrativos, no caso de direitos potestativos, por exemplo, sem que seja demonstrado que o Poder Público realizou ou deixou de realizar qualquer ato tendente a violar ou a ameaçar um direito. Haveria o risco de tornar o judiciário um mero carimbador de pleitos administrativos, ou em um “guichê de atendimento”, expressão utilizada pelo Ministro Roberto Barroso no voto acima citado.
Um esclarecimento final é deveras importante. É comum a confusão entre requerimento administrativo e esgotamento da via administrativa. Repise-se: em momento algum se defendeu o esgotamento da via administrativa, que se traduziria no aguardo de uma decisão final após um requerimento à Administração.
Partindo-se da ideia de que o Brasil se inspirou no sistema inglês de controle de atos administrativos, o que se prestigia neste texto é a necessidade, em alguns casos, de que haja um anterior pedido administrativo antes de que se possa dizer ter ou não surgido a lesão ou ameaça a direito, especialmente nos casos de direitos potestativos, em que há a necessidade de o administrado demonstrar o interesse em exercê-los. Caso a Administração Pública atenda ao pleito de imediato, terá cumprido seu papel e não haverá necessidade ou utilidade em se manejar uma demanda judicial. Porém, ainda que a partir do decurso de qualquer prazo normatizado ou uma desarrazoada mora em apreciar o requerimento, mesmo antes de qualquer negativa, surgirá a lesão ou ameaça a direito e, por consequência, o interesse de provocar o Poder Judiciário, não sendo necessário aguardar o final do trâmite administrativo.
3.2. HIPÓTESES CONSTITUCIONAL E LEGALMENTE PREVISTAS DE AFASTAMENTO DA JURISDIÇÃO
O argumento apresentado para se defender a necessidade de, em alguns casos, se realizar prévios pedidos administrativos para que surja o interesse em provocar o Judiciário parece ter sido referendado por diversos dispositivos legais. E não se está a dizer que estes seriam exceções de calibre constitucional. Na verdade, os dispositivos parecem apenas expressar em lei uma conclusão lógica a que, inexoravelmente, chegariam os Tribunais do país a partir de toda a construção exposta.
A professora Odete Medauar (2018) apresenta interessantes exemplos em que se aceitam as aparentes restrições legais ou constitucionais ao acesso à jurisdição. O primeiro e mais famoso exemplo é o da justiça desportiva, cujo texto normativo encontra-se no art. 217, §§ 1º e 2º, da CF:
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
Na opinião da autora, a Constituição não pretendeu afastar por completo a jurisdição no caso, até mesmo porque imputou curto prazo para a solução pela justiça desportiva. Também, defende que em caso de periculum in mora, eventual lesão ou ameaça poderá ser levada diretamente ao judiciário, “sob pena de se anular a garantia constitucional” (MEDAUAR, 2018).
Outro exemplo dado é do mandado de segurança, regido pela Lei n. 12.016. de 2009, que impede a concessão de mandado de segurança “de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução”. Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que haveria a obrigatoriedade de se apresentar o recurso administrativo, o que seria hipótese de lei limitando o acesso ao judiciário. Todavia, há uma interessante interpretação a qual a autora reputa ser a dominante:
o ato impugnado pelo mandado de segurança deve ser suscetível de produzir efeitos; produzindo efeitos, poderá lesar direitos. Sem produção de efeitos, não há interesse de agir, como condição da ação de mandado de segurança, pois inexiste lesão de direitos advinda de ato sem eficácia. Assim, cabendo recurso administrativo, com suspensão dos efeitos do ato e sem exigência de caução, poderá o interessado optar pelo uso da via administrativa, para obter reconhecimento de seu direito. Utilizando a via administrativa, o ato não produzirá efeitos, portanto, não lesará direitos; nesta hipótese, descabe a impetração simultânea de mandado de segurança, pois falta o interesse de agir, configurado na lesão de direito (MEDAUAR, 2018, p. 391).
Há também a hipótese do procedimento de revisão, edição e cancelamento de enunciado de súmula vinculante regido pela lei n. 11.417. de 2006. Diz a festejada autora:
O art. 7º, caput, prevê a possibilidade de se apresentar reclamação ao STF, sem prejuízo de outros meios de impugnação, contra omissão ou ato da Administração pública que negar vigência, contrariar ou aplicar indevidamente súmula vinculante. O uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas (art. 7º, §1º). Esta exigência poderá suscitar questionamentos quanto à constitucionalidade, pois a habitual demora de decisão administrativa poderá acarretar lesão a direitos, anulando-se o direito-garantia do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal – inafastabilidade da apreciação judicial em casos de lesão ou ameaça de lesão a direito (MEDAUAR, 2018, p. 391-392).
Por fim, o habeas data é igualmente rememorado como hipótese em que há necessidade de prévio requerimento administrativo:
Outro caso de prévio uso da via administrativa encontra-se na Lei nº 9.507, de 12.11.1997 – habeas data. Para ajuizar ação de habeas data, com o fim de ter acesso a dados pessoais ou de retificá-los, a lei exige: a) prova da recusa ao acesso ou ausência de decisão por mais de dez dias; b) prova da recusa de retificação ou ausência de decisão por mais de quinze dias; c) prova da recusa de anotar contestação ou explicação ou falta de decisão por mais de quinze dias. Aqui não se trata de exigência de uso de todos os meios e recursos de obter a medida (exaustão), mas de exigência de formulação de um pedido prévio. A respeito, a Súmula nº 2, do STJ, dispõe o seguinte: “Não cabe o habeas data se não houve recusa de informação por parte da autoridade administrativa” (MEDAUAR, 2018, p. 392).
4. CONCLUSÃO
Embora não se tenha pretendido esgotar o tema, o presente artigo procurou apresentar panorama histórico acerca dos sistemas de controle dos atos administrativos e sua influência no direito brasileiro, no tocante ao preceito da inafastabilidade de jurisdição. Apresentou-se a intrínseca afinidade entre o citado preceito e o interesse de agir, e defendeu-se o entendimento no sentido de que a referida condição da ação não importa em violação à inafastabilidade à jurisdição sendo, ao contrário, consequência natural deste preceito.
Também, foram analisadas e diferenciadas situações em que seria necessária ou não a prévia provocação do Poder Público para se fazer surgir o interesse processual e possibilitar o acesso ao judiciário, apontando, também, uma relação existente entre a necessidade de provocação, os direitos potestativos, o estado de sujeição e os direitos subjetivos.
Em seguida, foram apontadas situações excepcionais em que a Constituição ou a legislação exigem prévio pedido administrativo para se dizer ter lesão ou ameaça a direto.
Pelo exposto, espera-se ter demonstrado que a inafastabilidade de jurisdição não permite o acesso direto ao Poder Judiciário de forma incondicionada, no tocante às relações com o Poder Público, razão pela qual a exigência, ou não, de prévio requerimento administrativo para se fazer surgir o interesse de agir dependerá da análise das características do direito envolvido, bem como a situação em concreto.
REFERÊNCIAS
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Notas
1 “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
2 Não se desconhece o debate doutrinário quanto à permanência ou não das condições da ação no CPC de 2015.
3 Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.
4 Pet 4.556 AgR, rel. min. Eros Grau, j. 25-6-2009, P, DJE de 21-8-2009.