4. DA TIPICIDADE PENAL
Em face do decreto de estado de calamidade pública, alguns desses atos administrativos têm determinado o fechamento de estabelecimentos comerciais, estabelecendo o isolamento social como medida preventiva ao coronavírus.
Quem descumpre as medidas impostas pelo Poder Público pode responder criminalmente? Afinal de contas, o descumprimento das medidas impostas pelo Poder Público pode caracterizar crime de infração de medida sanitária preventiva, exposição de perigo ou crime de desobediência?
Diante da enorme discussão que se instalou no país acerca desta questão, notadamente, no âmbito jurídico, determinou-se, neste contexto, enfrentar as possibilidades jurídicas na esfera penal, evidentemente, sem caráter exauriente.
4.1. Do crime de infração de medida sanitária preventiva
O Título VIII do Código Penal prevê os Crimes contra a Incolumidade Pública. Por seu turno, o capítulo III, são definidos os crimes contra a Saúde Pública.
Trata-se a incolumidade de substantivo feminino, a significar qualidade ou condição de incólume. Isenção de perigo, de dano; segurança. Em Direito Penal é a situação do que está protegido e seguro (falando de bens que se quer proteger).
Especificamente, no artigo 268, o legislador criou a figura típica de Infração de medida sanitária preventiva, a saber:
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
Consiste a conduta criminosa em infringir, que significa desrespeitar, transgredir, determinação do Poder Público, destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.
Analisando a conduta descrita no artigo 268 do CP, logo se verifica que trata-se de crime de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal, Lei nº 9.099/95, com previsão de pena privativa de liberdade e pena de multa, portanto, pena cumulativa.
O parágrafo único do artigo 268 do CP prevê causa de aumento de pena, em fração fixa de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
O delito em apreço é classificado como unissubjetivo, porque pode ser praticado por uma única pessoa; é crime comum, porque pode ser praticado por qualquer pessoa, não demandando condições especiais em relação ao sujeito ativo; é crime formal, porque se contenta tão somente com a conduta, não se exigindo resultado naturalístico; sujeito passivo é a coletividade, a sociedade, e objeto jurídico é a saúde pública. O delito em apreço é de ação pública incondicionada. A tentativa é admissível, dada a possibilidade de fracionamento da conduta.
Trata-se de conduta dolosa, onde o autor, por livre vontade e consciência, infringe a determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, configurando o crime com o mero comportamento doloso, por se tratar de crime de perigo abstrato, comum, ou se seja, capaz de colocar em risco um número indeterminado de pessoas, perigo que a lei presume, não havendo necessidade de contaminação de pessoas.
É certo que o crime em apreço exige que haja determinação do Poder Público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, porque o artigo 268 do CP é norma penal em branco, e, segundo Binding, a lei penal em branco é um corpo errante em busca de alma.
Assim, além da determinação do Poder Público, é preciso que haja documento normativo da autoridade sanitária definido o coronavírus em rol de doença contagiosa, porque o preceito primário do crime em testilha é incompleto, e desta forma, somente se configura o delito se houver determinação do Poder Público no âmbito federal, não bastando determinações de governos estaduais ou municipais, porque o artigo 268 emana de um comando federal, e, logo, seu complemento deve ser também de autoridade sanitária federal, em razão da simetria constitucional, constituindo-se, assim, uma norma penal em branco, em sentido heterogêneo.
Analisando o teor da Lei nº 13.979/20, percebe-se que a norma não contempla todas as restrições preventivas, mas tão somente aquelas vinculadas às medidas eminentemente sanitárias, e aí sim, havendo violação a essas normas, caracterizada estará o crime do artigo 268 do CP.
Se, na hipótese em que do crime de infração de medida sanitária preventiva resultar lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumentada de metade; se resultar morte, é aplicada em dobro (art. 258 do Código Penal). Trata-se de hipótese de crime preterdoloso (dolo no antecedente e culpa no consequente).
Discute-se a questão da revogação da norma complementar do Poder Público.
Há divergência doutrinária a respeito do tema. Entendeu Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, pág. 776) que caso o poder público revogue a medida, por considerá-la, por exemplo, inócua para o efetivo resultado pretendido, não há razão para punir o agente. No entanto, se a revogação se der porque já foi contida a doença, é preciso aplicar o artigo 3º do Código Penal, considerando ultrativo o complemento, mantendo-se a punição do agente.
FOUREAUX (2020) assevera, com a autoridade de sempre, que qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo. Caso o sujeito ativo seja funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro, a pena é aumentada de um terço, em razão da maior reprovabilidade da conduta por parte daqueles que têm, como profissão, a obrigação de zelar pelo cumprimento das normas que visam ao cuidado com a saúde, além de serem detentores de conhecimentos técnicos (art. 268, parágrafo único, do CP).
CONSIDERAÇOES FINAIS
Diante de tudo que foi exposto, é possível afirmar que ninguém discorda que a humanidade corre sério risco de um flagelo social. Somente em 24 horas na Itália foram contabilizadas 723 vítimas do coronavírus, uma catástrofe para a humanidade. É tempo de unir forças em prol de um objetivo maior, salvar o maior número de pessoas, envidar esforços na busca do bem comum.
É certo que no conjunto de medidas adotadas pelo Poder Público, em especial pelas autoridades sanitárias, estão algumas relacionadas com o isolamento social, tendo em vista ser esta a medida preventiva mais eficaz até então, uma vez que a Ciência ainda permanece em busca das soluções medicamentosas para o perigoso e devastador coronavírus.
Sabe-se que o Direito Penal é instrumento eminentemente repressor e somente deve ser utilizado em última circunstância. E, nesse contexto, algumas medidas restritivas foram impostas às pessoas e aos comerciantes, como o fechamento de estabelecimentos comerciais. Como decorrência disso, sobreveio grande impacto na economia brasileira.
Nesse sentido, havendo descumprimento das medidas adotadas pelo Poder Público, é prudente que inicialmente sejam aplicadas sanções administrativas, como aplicação de multa, suspensão temporária do estabelecimento ou até medida extrema de interdição total das atividades comerciais. Mas, em sendo improdutivas essas medidas, o comportamento arredio do autor pode caracterizar crime de infração de medida sanitária preventiva, art. 268 do Código Penal, em caso de existência de determinações de autoridades sanitárias, de âmbito federal, conforme exposição alhures.
Não havendo determinações de autoridades públicas sanitárias, da esfera federal, no sentido de impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, a conduta recalcitrante do autor também não pode configurar crime de perigo para a vida ou a saúde de outrem (artigo 132 do Código Penal), consistente em expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente, considerando que esse delito se encontra rotulado no rol dos crimes contra a periclitação da vida e da saúde, crime de perigo abstrato, presumido e individual.
Desta feita, em não configurando as condutas criminosas dos artigos 132 e 268 do Código Penal, nos termos da exposição anterior, resta a conduta prevista no artigo 330, qual seja: delito de desobediência, consistente em desobedecer a ordem legal de funcionário público, com pena de detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Por fim, deve-se pontuar que todos, indistintamente, devem colaborar com as medidas preventivas determinadas pelo Poder Público na construção da paz universal, na incessante busca de valores humanitários, que pode ser exarada pela União, Estado, Distrito Federal ou Municípios e pode decorrer de lei ou de um ato administrativo, como deliberação, decreto, regulamento e portaria.
Mas, para a configuração do crime previsto no artigo 268 do Código Penal, deve a determinação ser exarada exclusivamente, pelo Poder Público federal, caso contrário, chegaríamos ao absurdo de um prefeito baixar um decreto municipal disciplinando preceito primário vazio de competência da União, em sede de direito penal, o que contraria, veementemente, a estrutura legislativa pátria, sendo que a tão sonhada alma de Binding, fugaz e temporariamente perdida no tempo e no espaço, não pode ser objeto de apropriação legislativa, senão pelas mãos da União, consoante artigo 22, I, da Constituição da República de 1988.
Assim, é preciso unir forças para vencer o inimigo invisível, e uma das medidas mais proativas no campo da prevenção é ficar em casa no sistema de isolamento social, cumprindo com fidelidade as determinações do Poder Público e das autoridades sanitárias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 22 de março de 2020, às 12h22min.
BRASIL. Código Penal Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 22 de março de 2020, às 17h27min.
BRASIL. Lei nº 13.979/20. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm. Acesso em 22 de março de 2020, às 11h42min.
FOUREAUX, Rodrigo. O descumprimento de determinações do Poder Público e o coronavírus: consequências criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6101, 15 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80119. Acesso em: 2 mar. 2020, às 11h37min.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2002.