INTRODUÇÃO
A brutalidade do uso excessivo da força policial contra negros é corriqueira nos países do continente americano, sobretudo nos Estados Unidos e no Brasil. Diante de casos que chocaram ambos os países, pode ser citado o recente ocorrido com o americano George Floyd, que foi asfixiado até a morte por um policial branco e o ocorrido com o jovem João Pedro, na cidade de São Gonçalo, que foi alvejado por um tiro em sua residência. Podemos observar que, diante da população carcerária do Brasil e dos Estados Unidos, existe um padrão racial para os prisioneiros, em sua maioria de cor negra.
Todavia, cabe destacar que o contexto histórico de ambos os países influencia nesse tipo de política de segregação. Os EUA e o Brasil, em sua história, enfrentaram períodos escravocratas, onde negros, além de escravizados, sofriam diversos tipos de violência física e psicológica. Nos Estados Unidos, a maioria da população é de cor branca, o que faz os negros serem minoria. No Brasil, ocorre o oposto, a maior parte da população é composta por pessoas de cor negra e parda, colocando assim, os negros em posição de minoria em quesitos sociais e históricos, porém maioria em questão numérica. Os ordenamentos jurídicos de ambos os países trouxeram políticas de segregação, mesmo após o período de escravidão, o que pode explicar o contexto da violência policial nos dias atuais.
1 - Contexto histórico brasileiro
1.1 - Escravidão no Brasil
A partir da década de 1530, período de início do processo da colonização portuguesa no Brasil, iniciou-se a escravização de indígenas no Brasil. No começo eram realizados escambos, onde os indígenas realizavam trabalho para os colonizadores em troca de mercadorias [1]. Porém, o sistema de capitanias hereditárias surgia no Brasil, trazendo com ele a criação de engenhos para a produção de açúcar, que necessitava de maior uso da força e a solução encontrada foi escravizar indígenas. Todavia, iniciou-se um conflito entre colonizadores e jesuítas, onde os jesuítas defendiam o fim da escravidão para os povos indígenas, pois os enxergavam como futuros cristãos, o que fez a coroa portuguesa proibir a escravidão dos índios brasileiros.
A proibição da coroa portuguesa e a baixa lucratividade do escravo indígena fizeram os portugueses iniciarem o tráfico de escravos oriundos da África, por volta do ano de 1550. Assim, iniciou-se a escravidão de negros para o Brasil: eram realizados trabalhos forçados de até 20 horas por dia e a perda de partes do corpo era usual nas moendas. Além disso, a alimentação dada aos escravos era pequena, muitos passavam fome e morriam por doenças decorridas dos maus tratos e torturas.
Durante todo período escravocrata, ocorreram diversas revoltas de resistência, frutos das quais ocorriam a formação de quilombos, a exemplo do Quilombo de Palmares, um grande quilombo existente no período colonial. Começara então a surgir movimentos abolicionistas no Brasil, o que ocasionou a primeira Lei brasileira, que dava liberdade aos escravos nascidos de mulheres negras, a Lei do Ventre Livre, conforme alguns trechos da lei a seguir:
“LEI Nº 2.040, DE 28 DE SETEMBRO DE 1871
A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte:
Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.
§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização pecuniaria, que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização. “ [2]
Com o fim da Guerra do Paraguai, o movimento abolicionista ganhou mais força. Diversas associações de defesa se formaram no País, o que gerou uma pressão em cima da monarquia. Em razão disso, depois de diversas pressões, revoltas e fugas realizadas por escravos, foi assinada, em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, que, legalmente, colocou fim a escravidão no Brasil:
“LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888.
A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário. “ [3]
1.2 - Pós escravidão e dias atuais
Após o fim legal da escravidão no Brasil, não houve políticas de inserção dos negros na sociedade. Em contramão a isso, começaram a surgir teorias eugenistas de que as pessoas da cor branca eram superiores. Desse modo, iniciaram-se as correntes de imigrações europeias, para embranquecer a população [4]. A elite intelectual e até mesmo política do Brasil, se utilizava de correntes como o determinismo de Henry Thomas Buckle e o darwinismo social de Spencer, às teorias de Gobineau. Diante disso, a construção do Estado brasileiro não deixou de ser opressiva no período pós escravidão, com a vinda da imigração europeia na tentativa de tornar a população mais branca, por achar pessoas de cor branca superiores.
No corrente ano, passados 132 da abolição da escravidão, as diferenças sociais ainda são gritantes no Brasil, além dos preconceitos em diversas áreas, como religião, culinária e até mesmo trajes. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no ano de 2018, o rendimento médio mensal da população branca era de R$ 2.796, enquanto que para a população negra era de R$ 1.608 [5]. A questão educacional também materializa o preconceito racial, já que a taxa de analfabetismo entre a população negra que, ainda hoje, representa 9,1% e a proporção de indivíduos negros com 25 anos ou mais que possuem ensino médio ainda é de apenas 45%. Esses dados mostram que o período histórico escravocrata ocorrido no Brasil institucionalizou o racismo, de modo que a educação, trabalho e forma de tratamento realizada pelo estado se tornou segregadora.
2 - Do encarceramento da população negra no Brasil
De acordo com o Infopen, o sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro criado pelo Ministério da Justiça, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo. São aproximadamente 700 mil presos sem com uma infraestrutura incapaz de suportar esse número [6]. O que ocorre na realidade são celas superlotadas, alimentação precária e violência. Situação que torna o sistema carcerário um grave problema social e de segurança pública.
É visível, também, que a política carcerária do Brasil se volta contra a população negra e pobre. Dados mostram que, no ano de 2018, entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. É importante lembrar que 53,63% da população brasileira têm essa característica. Os brancos, de modo inverso, são 37,22% dos presos, enquanto são 45,48% na população em geral. E, ainda, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2014, 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda.
3 - Da violência policial no Brasil
Um relatório da Anistia Internacional, apontou, em 2015, que as forças policiais brasileiras são as que mais matam no mundo [7]. De maneira geral, são homicídios de pessoas já rendidas e alvejadas sem qualquer aviso prévio. Em 2014, 15,6% dos homicídios registrados no Brasil tinham como autor um policial no País. A maioria das pessoas mortas por policiais são jovens e negros, no Rio de Janeiro, 99,5% das pessoas assassinadas por policiais entre 2010 e 2013 eram homens, 80% negros e 75% tinham idades entre 15 e 29 anos e grande parte dos autores dos disparos não foram punidos.
3.1 - Caso da menina Ágatha Vitória
No ano de 2019, no Complexo do Alemão, comunidade localizada na cidade do Rio de Janeiro, a menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, foi morta [8]. A criança estava em uma Kombi, quando foi baleada na comunidade da Fazendinha. De acordo com um tio de Ágatha, a Kombi em que a menina estava parou na rua para desembarcar passageiros. Os moradores disseram que policiais militares atiraram contra uma moto que passava pelo local, e o tiro atingiu a garota. Na versão dos policiais, eles disseram que foram atacados de forma simultânea por marginais daquela localidade.
3.2 - Caso do menino João Pedro
Em maio do corrente ano, na Comunidade do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro, o jovem João Pedro Mattos Pinto foi morto, alvejado dentro de sua residência [9]. O jovem foi levado da casa de helicóptero, permaneceu desaparecido e a família foi saber de sua morte pouco tempo depois. Segundo a Polícia Civil, João Pedro Mattos Pinto foi atingido durante um confronto na comunidade enquanto policiais federais e civis atuavam na região. Em nota, a Polícia Militar declarou:
"Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que, na segunda-feira (18/5), policiais militares do Batalhão Aeromóvel (GAM) atuaram em apoio aéreo a uma operação realizada pela Polícia Federal com apoio também da Polícia Civil na Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo. Vale ressaltar que a Polícia Militar não foi solicitada para realizar o socorro de pessoas feridas durante a ação."
2 - Contexto histórico norte-americano
2.1 - Escravidão nos EUA
A escravidão nos Estados Unidos começou por volta do século XVII, influenciada pelas práticas praticadas por portugueses e espanhóis na América do Sul e pela mão de obra barata que era proporcionada. Historiadores estimam que o número de escravos trazidos aos Estados Unidos foram em torno de 6 e 7 milhões durante o século 18 [10]. Os escravos trabalhavam, principalmente em plantações de arroz, tabaco e índigo, em províncias dos estados do sul. Durante o período escravocrata, negros sofreram os mais diversos tipos de abusos, desde estupros a torturas, tal como ocorreu no Brasil.
2.2 - Revolução norte-americana
Diante do descontentamento dos colonos com a coroa britânica, em virtude dos diversos tipos de taxas impostas, deu-se início, no ano de 1775, à Revolução Americana, que ocasionou na independência das 13 colônias do norte e na formação dos Estados Unidos da América. Contudo, mesmo após a guerra de independência, a escravidão continuou a existir de maneira tácita, através da Constituição. Assim, foi estabelecido que cada indivíduo escravizado contava como três quintos de uma pessoa para fins de tributação e representação no Congresso e garantindo o direito de retomar qualquer “pessoa mantida em serviço ou trabalho”.
2.3 - Guerra de Secessão
A discordância entre estados do sul e do norte dos Estados Unidos em relação a abolição da escravidão ocasionou a Guerra de Secessão, ou Guerra Civil Americana. Os estados do norte eram caracterizados pelo desenvolvimento de uma indústria forte, defensor do fim da escravidão e do livre trabalho [11]. O Sul, ao contrário, possuía uma economia agrícola e totalmente escravocrata, voltada para a produção de algodão no sistema de plantation, sendo assim, o sul necessitava da mantença da escravidão para a sua economia.
Dessa forma, os estados do sul começaram a se desvincular da União, o primeiro estado sulista a se separar foi Carolina do Sul, que foi seguido por Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas e Luisiana. Após isso, o até então Presidente Abraham Lincoln, convocou exércitos para a batalha, pois não aceitava o separatismo. A convocação fez outros estados sulistas declarassem sua separação e se vinculassem com os confederados: Virgínia, Arkansas, Carolina do Norte e Tennessee.
Os sulistas acabaram derrotados pelos nortistas diante da degradação de sua economia, em razão das ações impostas por Abraham Lincoln, como por exemplo a falta de apoio estrangeiro e o embargo marítimo, que impediu a entrada de mercadorias no Sul. A crescente precariedade dos Confederados ocasionou a deserção de um terço do exército. O fim da escravidão nos Estados Unidos foi decretado em 1º de janeiro de 1863, com a Lei de Emancipação dos Escravos, e foi reafirmada com a promulgação da 13ª Emenda Constitucional em 1865, o que ocasionou o fim da Guerra de Secessão.
2.4 - A décima terceira emenda
A 13° emenda constitucional dos Estados Unidos da América foi realizada com o objetivo de acabar com a escravidão. Porém, mesmo após o fim da Guerra Civil norte-americana, a escravidão não tinha acabado, mudou-se apenas o jeito de realiza-la. A cláusula constitucional, apesar pôr fim a escravidão, destacava que os direitos dos presos estavam restritos ao estado [12]. Assim sendo, os estados do sul utilizaram dessa norma para reconstruir sua economia, encarcerando negros e latinos, que, muitas das vezes, não realizavam nenhum crime, mas eram presos para a realização de trabalhos forçados. A escravidão naquela época teve então, previsão legal.
2.5 - A Ku Klux Klan
A Ku Klux Klan foi uma organização terrorista, com ideais eugenistas, criada por supremacistas brancos norte-americanos, sendo criada após a Guerra de Secessão, com a intenção de perseguir e atacar afro-americanos [13]. A KKK foi responsável por diversos espancamentos, assassinatos e incêndios em casa de pessoas negras nos Estados Unidos. Além disso, a referida organização foi classificada como de extrema=direita, diante dos ideais eugenistas que inspiraram a criação do grupo. A atuação do grupo ocorre até mesmo nos tempos atuais, realizando manifestações extremistas e pregando ideiais antissemitas em geral, como ódio ao grupo LGBTI.
2.6 - O sistema carcerário dos Estados Unidos
Os Estados Unidos são o país com a maior população carcerária do mundo, cerca de 2 milhões de presidiários [14]. Segundo dados do Escritório de Estatísticas do Departamento de Justiça (BJS), 59% das pessoas em prisões estaduais ou federais pertencem a minorias étnicas, com 37% de negros e 22% de hispânicos. O estudo mostra que, em dezembro de 2013, 3% dos homens negros do país estavam na prisão, contra 1% dos hispânicos e 0,5% de homens brancos. Em relação às mulheres, em 2013 foram presas o dobro de mulheres negras em relação a mulheres brancas. Os dados mostram que a pobreza, opressão e segregação afetam as minorias dos EUA.