Este é o segundo artigo de uma série de três. O primeiro[1] abordou a urgência de se retornar as perícias médicas presenciais, única metodologia de implementação imediata, além de ter comprovada eficácia. Da mesma forma, mostrou a determinação dos peritos em propor medidas efetivas para resolver os problemas periciais e nosso firme compromisso com os hipossuficientes.
Este texto objetiva analisar a nova leitura da legislação que embasa a proposta das perícias não presenciais, suas consequências para todos os setores da vida civil, a efetividade das metodologias propostas e as consequências que trarão para o Juizado Especial Federal.
Dos Princípios:
A finalidade da justiça é, em essência, o ser humano. Nos dizeres de Mauro Schiavi[2] a Justiça visa a garantir: “máxime o acesso efetivo e real [...] à ordem jurídica justa, para garantia, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana...”
O objetivo se materializa na sentença, produzida pelo magistrado, em grande parte baseada no laudo pericial, que é fruto do trabalho do médico perito. Estabelece-se assim a seguinte cadeia de determinantes: médico perito – laudo pericial – juiz – sentença. A qualidade dos elementos dessa cadeia determina a qualidade da prestação jurisdicional. Essa qualidade é a regra a ser usada para avaliar o cumprimento da razão de ser da Justiça.
Em sendo o juiz portador dos conhecimentos necessários, hábil em seu manejo, perspicaz em identificar as situações onde o detalhe define a direção a ser seguida, capaz de identificar as armadilhas que lhe são postas a fim de distorcer a clara visão dos fatos, de não se deixar levar pelas emoções que possam influir em seu lúcido julgamento, outra não é a conclusão de se tratar de individuo virtuoso, pois somente nesses existe a força capaz de realizar os esforços necessários para atingir o grau de proficiência exigido pela carreira que livremente abraçou. Do médico perito se exige as mesmas qualidades e firmeza de propósitos, afinal, “”prum” bom companheiro não conto dinheiro”[3]
A complexidade técnico-científica da perícia médica pode ser depreendida dos dizeres de França, 10ª edição: perícia médica é “uma arte forçosamente científica [...] exigindo uma cultura maior e conhecimentos mais abrangentes do que em qualquer outro campo da Medicina. [...] E é Arte também porque, mesmo aplicando técnicas e métodos muito exatos e sofisticados em busca de uma verdade reclamada, necessita de qualidades instintivas”. Se assim não fosse, Hélio Gomes não teria asseverado que não basta ser médico para realizar perícia, por mais qualificado que seja na medicina assistencial, como não basta ser médico para realizar cirurgias. Desconsiderar essas exigências torna a perícia “improfícua e perigosa”. (sem grifos no original)
A simples possibilidade de mácula na perícia se transfere ao processo e invalida o julgado. Tanto é assim que as situações de impedimentos e suspeições são comuns a juízes e médicos peritos. A mera possibilidade de mancha deve ser evitada.
Da Barreira Legal Não Superada:
O ponto em questão é: as sociedades médicas, brasileiras[4],[5],[6] em conformidade com o entendimento internacional, definem que somente a perícia presencial é capaz de avaliar a capacidade laboral do indivíduo, seguindo métodos cientificamente válidos. Os Núcleos de Inteligência do TRF3 e TRF4 afirmam que esta avaliação pode ser feita por “perícias simples”, portanto, sem seguir os parâmetros científicos necessários. A expressão “perícias simples” está entre aspas por serem métodos sem base científica e abrange os diversos modelos propostos, como por exemplo, como teleperícia, pericia documental em indivíduo vivo, prova técnica simplificada.
A legislação brasileira impõe às perícias as seguintes exigências, através do artigo 473 do CPC/2015, que diz:
Art. 473. O laudo pericial deverá conter:
II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito;
III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;
É dizer, perícia, “análise técnica ou científica”, que não está fundamentada em método científico “aceito pelos especialistas da área” não tem validade. Se não preenche este critério, não podem ser usada para fundamentar sentença, pois, uma vez usada, invalida o julgado. Este é o entendimento próprio do senso comum. Caso a tese das “perícias simples” vença, quais seriam as possíveis consequências? Cabem aqui diversas indagações:
Qual o fundamento legal para tirar dos especialistas o dever de definir o método adequado para avaliar questão técnica? Qual o fundamento legal que dá a parte do judiciário a competência para definir a metodologia a ser usada nas perícias? Se tiver competência, qual fundamento autoriza a proposição de método sem sustentação cientifica. Existe necessidade de se enfrentar três questões: Desautorizar os especialistas; assumir a competência para definir metodologia pericial e; desautorizar a ciência como base do método proposto.
Em tese, alguns podem alegar que as leis promulgadas na vigência da epidemia sustentam a realização de perícias não presenciais, mas o argumento é falho. Mesmo admitindo a hipótese, esses métodos alternativos necessariamente teriam de alcançar os mesmos resultados dos métodos cientificamente aceitos pois o artigo 473 do CPC não foi revogado.
Quais seriam as repercussões se estas “perícias simples”, sem base cientifica, fossem aplicadas? Tais julgados teriam validade? Se adotadas como norma, todo esse braço da justiça poderia ser questionado? Nesse caso, essa parte do judiciário correria o risco de perder credibilidade? Essa queda de credibilidade poderia ser de tal monta que sua própria existência possa vir a ser questionada?
Os benefícios assim conseguidos terão a necessária segurança jurídica? Haverá risco da obrigação de devolução de valores? Qual será a reação da parte vencida?
Por valerem para perícia médica, naturalmente complexa, vale por analogia, também, para as perícias em outras áreas. Se são aceitas na JEF, precisam ser aceitas nos demais ramos da justiça. Se isso ocorrer, teremos o fim da ciência no judiciário civil brasileiro?
As “perícias simples” são má prática médica. Se por interferência do judiciário, a má prática for instituída, por equiparação, isso pode um dia vir a atingir as demais especialidades médicas? Se existe o risco da má prática ser a regra na medicina isso pode vir a se estender para as demais profissões?
Há quem possa alegar que a demonstração acima é tão somente um desvario lógico, o que, em pura verdade, seria o meu desejo. Mas não se trata de delírio, posto que já há quem defenda oficialmente a má prática médica. A defesa da sistematização da má prática médica no Brasil foi feita pelo Ministério Público Federal, que “recomendou”[7] ao CFM que não tome qualquer medida contra médicos que realizarem essa má prática médica. Essa recomendação, além de defender a má prática, colocaria em dúvida a necessária auto regulamentação da medicina?
Havemos agora de considerar como a Justiça Estadual se pronunciará quanto aos possíveis pedidos de indenização por má prática. Caso a Justiça Estadual, por analogia, decida que a má prática está institucionalizada, o que será da sociedade brasileira? Por outro lado, se considerar que a sociedade não pode viver à margem da ciência, o que ocorreria com os julgados feitos no JEF? E com a própria JEF? Os médicos que atuarem no sistema de “perícias simples” teriam que indenizar os que se sentirem prejudicados por suas decisões, posto que são frutos de má prática?
Penso eu que a simples possibilidade desses riscos é suficiente para nos afastar do abandono da ciência como norma, de se retirar competências de órgãos técnicos e as repassar a não especialistas.
A Perícia é um Ato Médico ou Ato Processual?
A questão é colocada partindo da premissa de que algo é o que é, não podendo ser outra coisa. A finalidade óbvia, ainda que não declarada, é dar credibilidade ao argumento: se perícia médica é ato processual, como defende quem levanta a questão, não segue as normas médicas.
Trata-se de uma falsa dúvida. Se é certo que a essência não muda, pois se mudar deixa de ser o que era, é igualmente certo que a essência não se confunde com seus acidentes (predicados). A essência tem muitos predicados e se relaciona com outras essências de diversos modos e intensidade.
A esfera deixa de ser esfera quando se transforma em quadrado, mas não deixa de ser esfera por passar de branca a vermelha. Da mesma forma, o amarelo pode ser predicado tanto da casa quanto do carro. O mesmo se diga do uso. Uma essência pode ter vários usos. Da mesma forma que uma finalidade pode fazer uso de várias essências para se concretizar.
Exemplo dessa última é a medicina, que usa diversas ciências, como física, química, matemática, biologia, dentre outras, na sua prática. Essas ciências, por certo, continuam existindo conforme suas próprias leis e termos, não perdem suas essências. Por seu turno, a medicina não pode pretender transformá-las, tanto por ser impossível, quanto por ser inútil. Se, hipoteticamente, pois que é impossível, a medicina transformasse a química, por exemplo, ela imediatamente deixaria de ser química e, portanto, passaria a ser inútil para a medicina.
Desta, forma a medicina está para o direito. A medicina serve o direito através de atos médicos, sem jamais perder sua essência. Perícia médica é ato médico usado pelo Direito para bem desempenhar suas funções. Se o direito nisso interferir, a arte médica deixaria de ser o que é e, imediatamente, seria transformada em algo novo, indefinido, inútil ao Direito e desastroso para quem se utilize dessa deformação. Seria tão perigoso quanto se deixar operar por uma técnica cirúrgica definida por uma abstração jurídica, ou de aceitar ser periciado por metodologia estabelecida pela mesma abstração. Parafraseando Hendricks [8]: É seguro considerar a opinião daqueles (cirurgiões ou peritos) que apontam esses equívocos, mas deve-se temer os que não se importam.
Dos Vícios de Origem:
A proposta de impor que as perícias devem ser feitas ao largo dos conhecimentos científicos foi apresentada sob a tutela de vícios de origem, alguns deles abaixo descritos.
Uma Nota Técnica ostenta esse nome por ser adequada a duas finalidades: Diante de um problema, aplica conhecimentos técnicos a fim de resolvê-lo ou, partindo de um conceito técnico estabelecido e reconhecido, esclarece dúvidas. Pressupõe, nos dois casos, a imparcialidade e o estreito respeito aos conhecimentos técnicos. Por outro lado, quando uma área do conhecimento é usada para atingir um objetivo, recebe o nome de defesa ou contestação. Nessas não se espera imparcialidade e permite-se que teses sejam criadas, com o intuito de sustentar posição previamente definida.
A Nota Técnica NI CLISP 12, quando declara ter por finalidade “fornecer subsídios”, o que equivale dizer fornecer argumentos de defesa ou acusação de algo ou posição já definida, “para viabilizar a realização de teleperícia ou perícia virtual nas ações judiciais que tratam de benefícios por incapacidade”¸ revela a tese que vai defender (perícias médicas sem lastro científico) e consequentemente a tese que vai atacar (perícias presenciais baseada em ciência), torna público que não é uma Nota Técnica e sim a defesa de um ponto previamente estabelecido, ou seja, peça de defesa e de acusação.
Como “parte” em uma contenda, a nota visa a “...possibilitar o devido trâmite de milhares de processos judiciais...”. O objetivo é melhorar o acesso ao judiciário. Tal objetivo, entretanto, se contrapõe à finalidade da Justiça que é garantir o acesso real e efetivo à ordem jurídica justa. Não basta garantir o acesso, é necessário garantir o acesso à ordem jurídica justa.
Comete erro na análise das causas da ociosidade do Judiciário, pois esta não se originou da pandemia propriamente dita, e sim, pelas condutas administrativas tomadas pelo judiciário, sem orientação técnica. O CNJ, através da RESOLUÇÃO Nº 322, 01/06/2020, reconhece a verdade desta análise pois, apesar de estarmos em uma etapa de maior atividade da pandemia, determina que os atendimentos presenciais devem ser mantidos, ou interrompidos, em função da situação epidemiológica de cada local. Soma-se a isso o parecer favorável para o retorno das pericias presenciais, expedido no bojo do pedido de providencias Número: 0003451-62.2020.2.00.0000, nos seguintes termos: “não há razões para se obstar que as unidades judiciárias da 4ª Região [extensível aos demais tribunais brasileiros] que tenham comprovado condições para realização de perícias presenciais possam realizá-las”.
A Nota Técnica Nº 04/ 2020 – PRCTBCLIPR, emitida em 22.04.2020, TRF4, padece, em essência, dos mesmos vícios. Traz, entretanto, duas novidades: Advoga que duas outras modalidades de perícia não presenciais, igualmente sem base científica, a perícia indireta (documental) e a prova simplificada, podem ser usadas no lugar das perícias presenciais lastreada em ciência; propõe que as perícias não presenciais devem ser implantadas como rotina no judiciário especializado.
Ao longo das notas fica evidente a preocupação dos Centros de Inteligência com o bom andamento processual e com o hipossuficiente. Independente do conteúdo das propostas, o fortalecimento do intercâmbio entre esses importantes e produtivos centros com as instituições que os peritos temos hoje será muito fecundo na resolução desses e de outros problemas.
Das Causas e Efeitos:
Advoga a nota do TRF4, que as perícias não presenciais devem ser adotadas na rotina no JEF como forma de “enfrentamento do problema que envolve a produção de prova técnica” mesmo depois de passada a pandemia. Entretanto, o “problema” não é definido. Mais adiante aponta a existência de um sintoma: “o enorme acúmulo de processos previdenciários aguardando a realização de perícias médicas”.
Usando os poucos dados apresentados e considerando o fato de o Tribunal ser o responsável por suprir a sociedade das necessárias perícias, o problema pode ser posto da seguinte forma:
“O judiciário não consegue suprir a sociedade do número de perícias necessárias para atender à demanda”.
Assim colocado, percebe-se que o problema tem quatro componentes: O Provedor (Judiciário – capacidade de prover); A necessidade (necessidade de avaliar incapacidade); Demanda (número de avaliações necessárias) e Oferta (quantidade de avaliações a disposição).
Isso evidencia que o objeto que supre a necessidade (perícia) faz parte do problema apenas em quantidade. A qualidade do mecanismo avaliador (perícia médica) é determinada pela necessidade (complexidade da avaliação de incapacidade no ser humano). A necessidade não muda; é a essência do que é posto para ser julgado. Essa necessidade, por imutável que é, está fora do controle do judiciário. Da mesma forma, o meio de avaliação, por ser determinado pela ciência, igualmente está fora do controle do judiciário.
Desta forma, diminuir a qualidade do método de avaliar incapacidade não resolverá o problema da morosidade do trânsito processual. Pelo contrário, método de avaliação ruim não supre as necessidades e compromete o julgado. É dizer, vai piorar a qualidade da ordem jurídica hoje ofertada, não vai acelerar o trânsito e, muito provavelmente, vai torná-lo mais lento ainda.
A situação é a mesma do pai que não consegue prover seus filhos dos alimentos que necessitam. Diminuir o valor nutricional da alimentação não resolverá o problema. Por mais que o sofrimento paterno nos comova, pois sentimos tanto pelos rebentos quanto pelos pais, é nosso dever, como fornecedores de alimentos, informarmos que alimentação adquirida é inadequada, mesmo correndo o risco de sermos incompreendidos, e num primeiro momento, até acusados de falta de cooperação, desumanidade, e outros que tais. Devemos, mesmo assim, informar ainda que, se por infelicidade, toda a sociedade adotar a “solução” apontada por esse pai e passar a alimentar todas as crianças com alimentos sem valor nutricional, caminhará inexoravelmente para uma sofrida extinção.
Os três outros componentes do problema: Provedor, Demanda e Oferta, serão tratados no próximo artigo, pois neste precisamos tratar das deficiências específicas de cada alternativa proposta.