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JEF: As provas periciais no Brasil estão ameaçadas?

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11/06/2020 às 10:30
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Das Insuficiências:

Alegando o artigo 464 do CPC como premissa, os propositores das perícias não presenciais tiram as seguintes conclusões: as perícias têm formato “bastante flexível”; a perícia pode se restringir apenas a inquirição do perito o que permite sejam feitas também por “procedimento intermediário” que consiste em análise de documentos e anamnese do “paciente” (termo do original). Tais conclusões são falsas.

O artigo 464 trata, a bem da verdade, das situações onde a perícia não se faz necessária. É dizer que o artigo trata do gênero “não perícia”. Esse gênero, “não perícia”, alberga as situações onde as perícias não são feitas por serem desnecessárias, ou porque as informações técnicas necessárias já estão presentes nos autos ou, porque necessitam de informações técnicas genéricas, fáceis de serem obtidas por simples perguntas, pois não precisam de “Exame, Vistoria ou Avaliação” para serem esclarecidas. Esses casos são resolvidos por procedimento simples chamado prova técnica simplificada.

Importa estabelecer que o nome “prova simplificada” retrata a simplicidade da prova, ou seja, simples arguição. É a prova que é simples. Por isso somente pode ser empregado em casos “de menor complexidade,” e consistem “apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido”.

Assim sendo, prova técnica simplificada não é perícia, pois não faz “EXAME, VISTORIA ou AVALIAÇÂO” e se constitui “apenas na inquirição de especialista, pelo juiz’. Nada além disso. As perguntas são respondidas com base nos conhecimentos científicos na área, ou seja, mesmo a prova simplificada não renuncia à ciência. Perícia médica, por outro lado, como dito, baseia-se na aplicação dos conhecimentos científicos ao caso concreto após complexa avaliação, investigação de fato controverso, seguindo rígida metodologia cientifica.  Nada tem de simples.

 Desta forma, a prova simplificada não se confunde com perícia e nenhuma delas renuncia à ciência. No caso da perícia médica tal confusão conceitual atinge patamares críticos pois tanto o método quanto o assunto estão distantes da simplicidade.  

Na prova técnica simplificada, o especialista não pode fazer Exame, Vistoria ou Avaliação. Se fizer, qualquer uma dessas atividades fará PERÍCIA e, como tal, deve seguir o determinado no Artigo 473 do CPC.

Todos os tipos de “perícias simples” defendidos, em alguma medida, fazem “AVALIAÇÂO, VISTORIA ou EXAME”, ou seja, necessariamente são perícias. Assim sendo, nenhuma das características da prova técnica simplificada pode ser aplicada a elas. Todas elas precisam seguir o rigor metodológico do artigo 473, seguir parâmetros científicos, e o não cumprimento da metodologia cientifica gera todas as indesejáveis consequências já descritas. Esta constatação invalida todas as modalidades de perícias não presenciais propostas.  

Como “prova simplificada” não é perícia, conclui-se que a legislação brasileira admite dois tipos de provas técnicas: Perícias feitas dentro de rigor científico aprovado pelos especialistas e simples arguição de técnico. Não existe espaço para abstrações, mesmo quando se considera tão somente o artigo 464. A legislação não autoriza que se abandone o rigor científico.

Caso o juiz elabore quesitos que possam ser respondidos sem que nenhuma avaliação ou exame seja necessário, então aplicará a prova simplificada para definir incapacidade. Essa probabilidade me parece inverossímil, porém, é teoricamente possível e, se ocorrer, o será em número tão pequeno de casos que não terá efeito algum no sistema.

Por conseguinte, é impossível dizer que a perícia médica tem formato “bastante flexível” por vários motivos: 1. Prova técnica simplificada não é perícia. 2. Mesmo a prova técnica simplificada não tem formato “bastante flexível”, pelo contrário, tem formato rígido e se constitui tão somente de uma lista de perguntas que possam ser respondidas por um técnico sem que seja necessário realizar exame ou avaliação alguma. 3. As perícias médicas seguem padrões, métodos científicos e esses, por sua natureza, são rígidos. Essa rigidez metodológica, obvia ao senso comum, foi prudentemente explicitada pelo legislador no artigo 473, que trata das perícias e se constitui, por isso, na única fonte de conclusões sobre elas.

Alegar que “perícia” pode se restringir a “inquirição do perito” é igualmente falso. Arguição não é perícia, pois não envolve Exame, Vistoria ou Avaliação e, por isso, se chama prova simplificada e não “perícia simples”. A prova simplificada somente tem indicação nos casos que não precisam de perícia para serem resolvidos. Nada sustenta que prova simplificada possa ser usada como sinônimo de perícia pois que nem espécie de perícia é. É espécie do gênero “não perícia” como já dito.

Impossível é concluir que o artigo 464, ao autorizar que o técnico inquirido na prova simplificada responda as perguntas por meio digital gere, por analogia, autorização para que a perícia médica seja realizada através de meio virtual. Além da impossibilidade de se equiparar perícia à prova simplificada, existe aqui erro formal, pois se confunde meio de comunicação capaz de transmitir informação simples, com meio adequado de investigar fato complexo e controverso. Se assim fosse, teríamos que admitir ser possível fazer perícia de incapacidade por telefone ou carta, pois estes são meios adequados de se esclarecer uma dúvida.

Fica claro que equiparar perícia médica com qualquer espécie de “não perícia” é uma simplificação inaceitável. Mas esta simplificação traz em si uma crueldade que passou desapercebida pelos defensores das “perícias simples”. Vou descrevê-la única e tão somente para evidenciar que partir de premissa equivocada gera consequências absurdamente inesperadas.

Todas as formas simplificadas de obter informação são utilizadas para esclarecer questões de menor complexidade, e se a proposta é usá-las para avaliar incapacidade nas ações previdenciárias, significa dizer que estes indivíduos são igualmente simples, desprovidos da natural complexidade humana, pois a ciência médica não admite que um ser humano pleno seja avaliado através de perícias não presenciais. Conclui-se que as propostas defendem que existem pessoas inferiores, um tipo de ser sub-humano, de segunda classe, que pode ser avaliado por métodos simples, “lidos” através de uma câmera de vídeo ou de um conjunto de documentos. Isso, por obvio, jamais foi a intenção dos propositores das perícias simples.


Teleperícias:

É transparente que muitos que defendem a teleperícia não fazem ideia do significado do termo e nem sequer do abrangente termo “Telemedicina”. Não sabem, inclusive, que este termo (teleperícia) não existe na literatura mundial, posto que a ideia é inconcebível nas sociedades que prezam por padrões técnico científicos mínimos. Tampouco sabem a diferença abismal que há entre primeiro atendimento em medicina assistencial (teleconsulta) e seguimento de paciente portador de doença crônica. Afastados desses conceitos básicos, formularam a crença de que teleperícia equivale a seguimento de pacientes com doença crônica.

A telemedicina é eficaz no seguimento e acompanhamento de pacientes portadores de doenças crônicas como o diabetes e a hipertensão.

O primeiro atendimento em medicina assistencial por meio digital só é permitido em situações extremas, fortemente regrado. São atendimentos de exceção dada a impossibilidade de sua realização como norma. Como assim o é, e como a perícia médica é ato médico mais complexo do que o atendimento assistencial, o que autoriza supor que a perícia virtual poderia ser implantada como padrão? A resposta é: Nada.

Abordarei aqui, para demonstrar o dito, unicamente o tema mais desprezado pelos defensores da teleperícia, pois o julgam perfeitamente exequível de ser realizado por meio digital. Esta crença revela tão somente o desconhecimento do que seja uma perícia médica, assunto que pretendem regular: Trata-se da anamnese.

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Não percamos de vista que o atendimento médico presencial é baseado na confiança mútua, na livre escolha do profissional pelo paciente, na busca do mesmo objetivo. Essa é a síntese da relação médico-paciente. Esta relação é essencialmente estabelecida na anamnese, entretanto, não é fácil de se estabelecer, como apregoam alguns desconhecedores do assunto. Para se ter uma ideia pálida, mas creio que para o caso seja suficiente, das dificuldades de se estabelecer relação médico-paciente eficaz, vejamos o que alguns mestres dizem sobre a anamnese:

Surós[9] inicia o assunto afirmando que a “anamnese é o primeiro ato que conduz ao diagnóstico. É contato interpessoal do que sofre com quem ele confia e que procura em busca de cura ou alívio de seus males”. Acrescenta que “todos os médicos destacam seu valor clínico e fundamental importância para o diagnóstico”. Padilha, em tradução livre, afirma que “a anamnese é a base fundamental e insubstituível do diagnóstico. É a parte do exame clínico....que exige a maior ciência e experiencia do médico”. Quanto mais sabe o facultativo, mais dados obtém da anamnese de seus pacientes e mais aprecia sua importância, diz Siebeck. No mesmo sentido, Von Bergmann declara que quem se dedica ao estudo da anamnese com afinco, conduzindo seus diálogos com fino tato e sentido clínico, chegará a ser o melhor dos médicos.

Segundo Surós, o ato médico deve ser “isolado no tempo e no espaço, um diálogo singular entre dois únicos personagens. Começa com uma confidencia, uma confissão, prossegue com um exame, e finaliza na prescrição de um tratamento”. Continua afirmando que o paciente não é um objeto de estudo, devendo ser entendido nas suas emoções, no seu sofrimento, pessoa com a qual o médico está “espiritualmente vinculado”. “É a convivência cordial de duas almas, de duas pessoas”.

A anamnese, ainda segundo Surós, deve ser realizada em ambiente controlado, sem interferências externas, interrupções. O paciente deve ter ampla liberdade de se expressar e aqueles pouco expressivos devem ser inquiridos de forma a se revelarem. Em tradução livre, declara “O médico se sentará em frente ao enfermo e escutará seu relato olhando-o nos olhos, sem impaciência”, e continua: ouvir com sincero interesse, benevolência e ausência de julgamentos é a forma de apreender a realidade e conduzir a anamnese em sentido clínico.

Fica claro que a anamnese não é um bate papo de amigos, o relato frio de dados ou a leitura de um texto estéril de sentimentos. Nela nada há de rotineiro, estático ou certo. É arte fugidia, primorosa, minuciosa, de difícil estudo e aprendizado, aprimorada com os anos, baseada em esmerado tato, delicados nuances, pequenos gestos e expressões, exibidas ou ocultadas, conscientemente ou não. Acrescento que a anamnese é o caminho pelo qual o médico se torna especialista em gente.

Não é surpresa alguma que o primeiro atendimento em medicina assistencial por via digital somente é permitido em situações especiais que atendam a requisitos específicos de segurança. É exceção!

Em 2018, na discussão causada através da Resolução do CFM nº 2.227/2018, assim me referi sobre a anamnese[10]:

“Nenhuma das formas usadas para suprimir ou diminuir o tempo da anamnese foi capaz de substituir a anamnese conduzida presencialmente. As sutilezas do contato pessoal, a amplitude do campo de observação, o domínio do ambiente, a crescente empatia, a capacidade de ouvir e estabelecer relação de confiança, se mostrou insubstituível.”

A anamnese na perícia médica é mais difícil e importante. Na perícia não há relação de confiança entre as partes, não há livre escolha do perito, não há objetivos comuns. O médico perito não busca atender as necessidades do periciado e sim da justiça e o periciado vê o perito como uma barreira a ser vencida para que obtenha o benefício a que tem direito ou que julga ter. A relação médico-paciente é substituída pela relação perito-periciado. Por obvio, as imensas dificuldades do primeiro atendimento assistencial virtual são multiplicadas no ato pericial. Se o primeiro atendimento assistencial por meios virtuais somente é possível dentro de situações excepcionais, o atendimento pericial é impossível.

Como supor que o médico perito consiga estabelecer relação capaz de evidenciar a verdade, garantindo o direito dos que não são capazes de referir seus males, dos que tem pouco acesso a serviços de saúde - e, consequentemente, poucos dados objetivos a apresentar, ao mesmo tempo que, sem conflitar com a angústia dos necessitados ou daqueles que, mesmo não tendo, acreditam ter direito a algum benefício - através de uma câmera de vídeo? É possível se aventar a hipótese de que é possível “ler” um indivíduo desconhecido, de imediato, através de uma câmera de vídeo, em ambiente descontrolado, com a participação, ainda que oculta, de terceiros, o que compromete a transparência do ato processual, com todas as dificuldades já traçadas?

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Sobre o autor
Marcos Antonio Alvarez

Médico, formado na FAMERP em 1984, Cirurgião Geral (Residencia Médica), Endoscopista (SOBED/AMB), Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas (ABMLPM/AMB). Pós-Graduado em Ergonomia. Perito judicial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVAREZ, Marcos Antonio. JEF: As provas periciais no Brasil estão ameaçadas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6189, 11 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82947. Acesso em: 3 dez. 2024.

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