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O conflito de competências no acordo de leniência à luz da teoria dos jogos

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Agenda 24/06/2020 às 14:40

A teoria dos jogos apresenta modelos de conflitos e cooperação que conduzem um agente ao sucesso ou insucesso, tendo como estratégia considerar a decisão do outro participante. TCU e CGU poderiam se fortalecer ao adotar posturas condizentes com a teoria, notadamente no processamento de acordos de leniência.

1. Introdução

O objetivo do artigo é identificar se existe disputa entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) na condução do processo de acordo de leniência. Para tanto, serão empregados os conceitos da Teoria dos Jogos.

A relação entre o setor público e o privado está envolta em denúncias de atos que desrespeitam as normas legais, a exemplo de contratos arranjados e superfaturados para um fim único: malversação dos recursos públicos. A partir disso, movimentos surgiram para aperfeiçoar a legislação e fornecer instrumentos adequados para investigação. Citam-se a colaboração premiada e o acordo de leniência.

Diferentemente daquela, o acordo de leniência não está sendo utilizado como se esperava. A hipótese é a existência ou não de disputa entre os órgãos, além de identificar os interesses envolvidos, dar transparência à relação entre as instituições e, por fim, fortalecer o mecanismo de leniência. Para não causar confusão, frisa-se que objetivo não é verificar os lados opostos na mesa de negociação, ou seja, o Estado e o leniente, mas as instituições representantes do Poder Público, que, de uma forma ou de outra, tangenciam os temas a serem tratados no âmbito das negociações.

Para levar a efeito o objetivo do artigo, passa-se a utilizar a Teoria dos Jogos, a qual procura explicar fenômenos quando dois ou mais agentes de decisão interagem entre si (SARTINI et. al., 2004, p. 1). Ela trata dos modelos de conflitos e cooperação que conduzem o agente ao sucesso ou insucesso, tendo como estratégia considerar sempre a decisão do outro. Soma-se a ela a teoria da escolha racional, que é quando os agentes decidem de forma a sopesar os ganhos e perdas, conforme os pilares de Downs (1999).

A metodologia adotada foi a da pesquisa histórico-descritiva, para fornecer condições de análise quanto ao “como” se desenrola essa disputa, além de tratar de fenômeno atual e parcialmente estudado. As ações de pesquisas envolveram fontes bibliográficas sobre o tema, repositórios de informações acerca de tramitação de proposições na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e processos no Supremo Tribunal Federal (STF). A narrativa agrega fatos esparsos, os quais podem não fazer sentido se interpretados isoladamente, mas, quando organizados, demonstram um “jogo” realizado em “arenas”.

Ressalte-se que não se discute os resultados da leniência, com seus benefícios e suas limitações. A análise recai sobre a tensão entre os órgãos, materializada nas tentativas de alterações da legislação e nas audiências das comissões nas Casas Legislativas.

O texto está dividido nesta introdução, que apresentou o tema e a metodologia. Na sequencia, aborda-se o acordo de leniência e mais detalhes sobre a aplicação da Teoria dos Jogos. Depois, caracteriza-se as ações entre os dois órgãos e, ao final, aplica-se a matriz de análise, para as considerações finais. 


2. O acordo de leniência e o suporte da Teoria dos Jogos

Os acordos de leniência são firmados para diminuir de um lado as penas do investigado e de outro favorecer a investigação em andamento. Seu procedimento se assemelha ao da colaboração premiada, realizada pelo indivíduo (colaborador) e o Ministério Público, com aval do Poder Judiciário, conforme a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013.

O acordo tem origem na experiência americana, que serviu de suporte para o programa de leniência estabelecido no artigo 35-B da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, e reforçado pela Lei nº 10.149, de 21 de dezembro de 2000 (MUSSI, 2017, p. 10; SALOMI, 2012, p. 127-140; VASCONCELOS; RAMOS, 2007, p. 7-8).

Em 2013, surge o acordo criado pela Lei nº 12.846 (Lei Anticorrupção – LAC), de 1º de agosto de 2013, o qual colocou a Controladoria-Geral da União (CGU) na condição de protagonista do processo de negociação entre os envolvidos: de um lado, a empresa infratora e, de outro, a União (GABARDO; ORTOLAN, 2014, p.1).

Assim, o acordo é como a confissão do acusado jungida com a colaboração junto aos órgãos investigatórios para identificação dos demais participantes do ato ilícito e elucidação dos fatos e, por isso, recebe benefícios pela sua contribuição (Santos, 2016).

Para Xavier (2015, p. 46), “o instituto da leniência é um indispensável mecanismo em função de criar incentivos para alcançar a celebração do maior número de acordos possível”. Até o momento, são poucos os acordos firmados com base na LAC, que nos leva a investigar se há conflito de competências entre os responsáveis.

A Carta Magna estabelece, em seu artigo 2º, a harmonia entre os Poderes e a independência, sob a regra dos freios e contrapesos. O exercício dessa relação se dá por intermédio das instituições (órgãos), cujas atribuições estão definidas na própria Constituição e nos regramentos legais.

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No caso da leniência, há um complicador, pois existem vários dispositivos sobre o tema. A título de exemplo, o Banco Central possui regramento recente estabelecido pela Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017. Além disso, observa-se que a Lei 12.846, de 2013, deixou lacunas que geraram dúvidas sobre as competências dos órgãos, a exemplo da definição clara dos papéis a serem desempenhados pelos órgãos integrantes do Sistema de Controle Externo e Interno.

A Lei Anticorrupção não estabeleceu de forma inequívoca as atribuições dos órgãos, permitindo o questionamento e o uso de outras leis. O desenho do sistema de controle estabelecido pela Constituição parece não ter sido levado em consideração. De acordo com a lei, a Administração está habilitada a negociar os termos do acordo, sob a coordenação da CGU (art. 16 da Lei 12.846/2013).

Assim, a Controladoria-Geral da União - CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira (ROSILHO, 2016, p. 1).

Não se faz menção, nesse normativo, a dois importantes órgãos: o Ministério Público e o Tribunal de Contas. Porém, essas instituições defendem que possuem competência acerca da matéria. Portanto, esse é o primeiro indício do conflito, que vai sendo confirmado no decorrer desse texto.

Ademais, essa situação pode envolver ainda os órgãos do Judiciário, a Defensoria Pública, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e o Banco Central do Brasil (Bacen), pois eles também podem alegar a necessidade de participar das negociações, pois os termos da concertação conteriam matérias afetas a eles.

A Teoria dos Jogos procura explicar a ocorrência de eventos oriundos da interação entre dois ou mais agentes de decisão, denominados jogadores.  Ela estuda as interações entre jogadores cujas recompensas dependem da escolha do outro e que levam em conta essa interdependência ao tentar maximizar seus respectivos retornos (SOUZA, 2003, p. 13-18; GHEMAWAT, 1997, p. 1).

Nessa linha, a teoria é o estudo do comportamento racional em situações que envolvem a interdependência. Qualquer participante do jogo é afetado pelo que os outros fazem: dito de outra forma, as ações dos jogadores afetam os outros. Assim, os desempenhos são resultados de todas as decisões e nenhum indivíduo tem controle completo sobre o que acontece (MCMILLAN, 1992, p. 6).

O jogo é a situação onde o resultado é determinado pelas interações entre agentes que tomam decisões estratégicas (e possíveis interações com agentes externos). A proposta é reunir as ações dos órgãos e enquadrá-las como um jogo, representando na matriz as recompensas.

Vale lembrar que um dos motivos da popularização dessa teoria e sua inserção no dia a dia das pessoas foi o filme Uma Mente Brilhante, no qual o ator Russel Crowe interpreta John Nash, o matemático, prêmio Nobel e estudioso.

Em 1944, o matemático John Von Neumann, juntamente com o economista Oskar Morgenstern, publicaram o livro “Theory of Games and Economic Behavior” sendo este considerado a gênese da Teoria dos Jogos (ABBADE, 2009, p. 36). Ainda em relação à evolução da Teoria dos Jogos, menciona-se o quadro elaborado por Souza (2016, p. 26) que apresenta a contribuição de vários autores, do ano de 1713, portanto, antes de Von Neumann, até 1950. A cronologia da teoria também está registrada no apêndice do livro Game Theory for Managers de Luiz Fernando Barrichelo (2002, p. 49-55).

Para exemplificar o uso da teoria, cita-se o “Dilema do Prisioneiro”, quando dois presos estão em celas diferentes, sem contato com o parceiro de crimes. A eles são apresentadas as alternativas, confessar o crime e comprometer o outro prisioneiro, com isso será beneficiado com a soltura, caso o parceiro se mantenha calado. Se os dois se mantiverem em silêncio, a acusação não terá como aprisioná-los. Se os dois confessarem, terão a pena reduzida (Equilíbrio de Nash). A decisão é cooperar ou entrar em conflito com o parceiro, buscar a maior das recompensas, diminuir as perdas ou alcançar o equilíbrio.

Neste ponto, Filipe Costa de Souza (2012) conceitua Equilíbrio de Nash como sendo o delimitador de um conjunto de perfis de estratégias mistas as quais, suportadas pelo critério de racionalidade poderiam ser escolhidas pelos jogadores como possíveis soluções para o jogo; ou seja, o equilíbrio de um jogo pode ser visto como o comportamento de um conjunto de jogadores em que todos (agindo individualmente) se comportam de forma racional.

A situação está representada em uma matriz (Tabela 1), contendo as recompensas (no caso, as penas) dos dois prisioneiros. Do lado esquerdo da vírgula, as referentes ao prisioneiro “A” e, do lado direito, as relativas ao “B”. A leitura é feita da seguinte forma, se “A” e “B” permanecerem em silêncio, serão penalizados por apenas um ano. Se “A” permanecer em silêncio e “B” confessar, ou seja, trair o companheiro, terá sua pena reduzida a zero, enquanto que “A” ficará com a maior pena, a de dez anos. Então, a melhor resposta se o outro “Permanecer em silêncio” é “Confessar”. Do contrário, a melhor resposta se o outro “Confessar”, é “Confessar”. Enfim, se forem racionais, ambos irão “Confessar” e serão penalizados em cinco anos. A configuração da matriz, a disposição de jogadores e a forma de fazer a leitura serão utilizadas também para expor o jogo disputado entre os órgãos, exceto os valores atribuídos as recompensas que serão diferentes.

É preciso conhecer mais um conceito, o da estratégia dominante (a que apresenta o melhor resultado), sem levar em consideração a decisão do outro. Então, “Confessar” é a melhor solução, pois não se corre o risco de “Permanecer em silêncio” e o outro “Confessar”, o que acarretaria a maior pena. Quando, em certo jogo, devido ao esquema de incentivos (a matriz de resultados), o jogador não precisa se preocupar com a decisão alheia porque existe uma opção melhor, independente do seu competidor, então o jogador deve escolher a estratégia dominante (BARRICHELO, 2017, p. 20-22).

Não se pode esquecer-se da teoria da escolha racional, em que o agente racional ou tomador de decisão, podendo ser individual ou coletivo, que almeja objetivos definidos, segue em seus propósitos com coerência entre o planejado e os meios de atingi-lo. Um ato racional é um ato que foi escolhido porque está entre os melhores atos disponíveis para o agente, dadas as suas crenças e os seus objetivos (FEREJOHN; PAQUINO, 2001, p. 7). Já Fiani (2006, p. 23) acrescenta que a teoria da escolha racional parte das preferências dos jogadores para entender suas escolhas, assumindo como princípio básico a ideia de que os jogadores são racionais.

Por fim, um homem racional, portanto, sempre opta pela alternativa que lhe proporciona maior utilidade, segundo Downs (1999).

Sobre o autor
Ronaldo Quintanilha da Silva

Mestre em Poder Legislativo pelo Cefor/CD. Especialista em Orçamento Público pelo ISC/TCU. Participa de grupos de pesquisas na Câmara dos Deputados. Professor do Cefor e cursos preparatórios para concursos. É Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (ex-CGU, ex-TCU). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5699283809757563

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUINTANILHA, Ronaldo Silva. O conflito de competências no acordo de leniência à luz da teoria dos jogos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6202, 24 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83405. Acesso em: 2 nov. 2024.

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