APONTAMENTOS FINAIS
Nos casos de transexualdiade, na grande maioria dos casos, é na cirurgia de transgenitalização que se busca alento no afã de se proceder à fusão entre físico e psíquico. Com esta fusão se atenderia parcela essencial dos Direitos da Personalidade, notadamente a intimidade. A partir desta o transexual conseguiria ser no plano jurídico o que acredita ser no plano interno.
Ao se pensar que o direito é disciplina autônoma, mas que se comunica com outras disciplinas de alguma maneira, ter-se-ia que, uma vez realizada a operação, cuja autorização parte de supostos bem definidos em resoluções médicas, a situação do transexual restaria resolvida. É de se ter, contudo, que não é isto que ocorre.
A assimilação da nova realidade pelo direito se dá de forma distinta e peculiar porque é o direito quem diz o direito, no sentido anunciado por Bourdieu. Sendo assim, uma vez ocorrida a cirurgia de transgenitalização, várias consequências podem ser suscitadas.
Em nosso sentir deve o direito autorizar a mudança de nome e de sexo no Registro Civil de Pessoas Naturais, pois a partir desta a pessoa transexual teria um meio de fomente da vida digna, tendo preservados direitos que lhes são ínsitos, sobretudo intimidade, honra, imagem e nome. Não é isto, contudo, que ocorre. Quando ocorre, aliás, ocorre dentro dos limites da força do direito. Uma força que permitiu a criação do "transexual verdadeiro", na licao de Berenice Bento, ou, ainda, do "transexual primário".
Na leitura de Berenice Bento há uma construção clara no sentido de rechaçar a idéia de "transexual verdadeiro". A autora parte de uma reflexão antropológica, superando, por isto mesmo, o discurso legista. Propõe, então, se pensar na transexualidade como uma construção da realidade antropológica, e não como uma realidade determinada a priori.
Conquanto nos pareça producente a superação do conceito, como aponta Berenice Bento, não podemos ignorar que, como é o direito quem diz o que é direito, o discurso do "transexual verdadeiro" tem tudo para ser mantido. Assim, ainda que neste artigo não se tenha feito uma análise de cunho notadamente jurisprudencial, o que se vê na prática é a manutenção do discurso autorizador. Um discurso a partir do qual os interessados dizem o que o direito quer ouvir para poderem ser ouvidos pelo direito.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
Exclusão do crime
§ 9º Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica."
§ 1º Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.
§ 2º Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.
§ 3º No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao registro de nascimento e no respectivo documento de identidade ser pessoa transexual."
- LAQUER, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
- O nome é percebido como Direito Fundamental da Pessoa Humana, porque "humaniza", representando defesa do amor próprio.Cf.: MORAIS, Maria Celina Bodin. Sobre o Nome da Pessoa Humana. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 12, p.48-74, 2000.
- O avanço da antropologia permite-nos uma visão de gênero que em mundo supera a noção biológica do termo: o gênero como uma construção que se dá a partir do intercâmbio do eu com o mundo. Uma noção que se faz a partir dos valores assimilados pelo processo de sedimentação cultural, e não determinada cromossomicamente. Nada obstante, ainda hoje a lógica do Registro Civil conta com a perspectiva da biologia para a questão do nome, daí se ter usado a expressão com este sentido.
- BOURDIEU, Pierre. Usos Sociais da Ciência. São Paulo: UNESP, 2004.
- LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
- ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 135.
- Em matéria de transexualidade impera o pensamento essencialista, pelo qual se diz que esta é da condição da pessoa e só pode ser tratada através da cirurgia de transgenitalização, com a qual a pessoal transexual pode assumir sua condição psíquica no plano físico e social.
- Na leitura de Berenice Bento há uma construção clara no sentido de rechaçar a idéia de "transexual verdadeiro". Para tanto a autora parte de uma reflexão antropológica, no que supera o discurso meramente legista, e chega à conclusão de que o discurso do "transexual verdadeiro" ainda se mantém porque os transexuais tomaram consciência de que esta fala é um pressuposto para que se autorize a cirurgia de transgenitalização. O discurso seria mantido tão-somente como um suposto de comunicação, à medida que falar diferente importaria em ser ignorado pelo sistema. Importaria em não ser ouvido pelo saber medido e, portanto, também ser abstraído pelo direito e seu "poder de dizer o que é direito", na perspectiva de Pierre Bourdieu. Cf.: BENTO, Berenice. A reinvenção do Corpo. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, passim.
- A noção de Dignidade Humana pode ser vista em muitas passagens do texto sagrado. Destacamos aqui a seguinte inscrição no evangelho de São João, onde se lê no capítulo 10, versículo 10 a fala de Cristo: "vim para que tenha vida, e vida em abundância". Não importaria, nesta perspectiva, apenas a vida. É preciso vida em abundância. É preciso uma vida digna, e a dignidade não é percebida nas privações, sobretudo as privações que invadam a esfera psicofísica.
- Cf.: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad.: Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.
- O Homem indivíduo é uma marca do ocidente que decorre da compreensão judaico-mediterrânea de mundo. Uma compreensão que foi desenvolvida e encampada pelo cristianismo. Sendo assim, é preciso se estabelecer que o conceito apresentado por Boécio não tem a pretensão de encampar realidades que fogem deste padrão, como as culturas tribais e anímicas. Nestas realidades a noção de indivíduo não se faz presente como ocorre no mundo ocidental como um todo.
- BOURDIEU, Pierre. Usos Sociais da Ciência. São Paulo: UNESP, 2004.
- Cf.: LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983
- Estas se justificam em sua perspectiva porque a convivência do novo e do velho, do comum e do diferente é própria do direito. Trata-se de uma convivência que não ocorre sem conflitos. O novo existe na coexistência do velho. O comum se mantém com a ocorrência do diferente.
- LAQUER, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
- Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97.
- Esses apontamentos decorrem dos estudos do professor Pedro Jorge Daguer em sua dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Pós-Graduação Psiquiátrica da UFRJ, referenciados por CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualismo, transexualismo, transplante. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 141. Verbis: "por transexualismo masculino entende-se a condição clínica em que se encontra um indivíduo biologicamente normal (...) que, segundo sua história pessoal e clínica, e segundo o exame psiquiátrico, apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático."
- KLABIN, Aracy. Aspectos Jurídicos do Transexualismo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, vol. 90, 1995, p. 197.
- Ibidem.
- O desenvolvimento científico e tecnológico impõe, contudo, que estes conceitos sejam repensados. Deste postulado Tereza Rodrigues Vieira propugna alguns critérios de identificação sexual: "o cromossômico ou genético; o cromantínico, o gonádico, o anatômico, o hormonal, o social, o jurídico e o psicológico." VIEIRA, Tereza Rodrigues Direito à adequação de sexo do transexual. Repertório IOB de Jurisprudência. São Paulo, n. 3, 1996, p. 51.
- Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97.
- Art. 129 (...)
- Art. 58 O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.
- "A primeira operação brasileira foi realizada em São Paulo em 1971 pelo médico Roberto Farina, que acabou preso por lesões corporais. Farina foi absolvido. A Justiça concluiu que a cirurgia era o único meio de aplacar a angústia do transexual". SEGATTO, Cristiane. Nasce uma mulher: Transexuais saem do armário e a ciência mostra que a mudança de sexo não é perversão. Rio de Janeiro: Época. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT441567-1664-1,00.html> Acesso: 30 novembro 2007.
- SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 190-191.