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Da possibilidade jurídica de alteração do prenome e do sexo no registro civil pelos transexuais

21/01/2010 às 00:00
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Recentemente, em questionamento que me fora dirigido, foi-me informado que entender-se-ia por transexual a pessoa que tem a forma de um sexo (masculino), mas a mentalidade de outro (feminino). Foi-me fornecida, também, a informação de que seria comum atualmente a realização da cirurgia de mudança de sexo em nosso país e que, tendo em vista o macroprincípio da dignidade da pessoa humana, não poderia haver discriminação quanto à opção sexual.  E, enfim, foi-me questionado se, relativamente ao transexual, que procedeu à cirurgia de mudança de sexo, seria possível ao juiz deferir a alteração de prenome e de sexo no assento de nascimento no registro civil.

Pelas informações colhidas nos dados fornecidos, já é possível, utilizando-se tão somente do bom senso despido de preconceitos, encontrar a resposta necessária. A imperiosa necessidade de se fazer a submissão de todas as normas perante a Constituição de 1988, ao lado da conscientização de que o Direito deixou de ser uma ciência autossuficiente – para se reconhecer o imprescindível papel da interdisciplinaridade – são o suficiente para se encontrar a forma privilegiada de alcançar o tão desejado valor da justiça nas decisões judiciais que, embora encerrem os processos, normalmente não são suficientes para encerrar os conflitos existentes entre as partes ou na parte consigo mesma.

Conscientiza-se mais a cada dia de que, para a implementação da efetiva dignidade da pessoa humana – princípio esse que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito sobre a qual a República Federativa do Brasil é erguida –, deve-se, entre outros, proteger o ser humano em sua intimidade, imagem, individualidade, igualdade, honra e vida privada, sendo o nome um dos direitos da personalidade por excelência.

Não se desconhece a existência de épocas em que expoentes doutrinadores defendiam que ao nome não se deveria outorgar qualquer proteção específica [01], mas não é esta a realidade dos dias atuais, onde o direito de se adquirir e proteger o nome está inserido em norma formalmente infraconstitucional – artigo 16, CC –, mas com garantia constitucional material garantida pela consagração do direito supremo à dignidade humana.

Assim posta a questão, resta abrir os olhos para a realidade e será possível concluir que a personalidade sexual não se encontra vinculada tão somente ao aspecto físico; que a sexualidade de uma pessoa não decorre da existência de órgão reprodutor masculino ou feminino. Utilizando a interdisciplinaridade, a sexualidade pertence à ordem do desejo e do inconsciente, como expressão parcial do ser humano, não se restringindo somente a sua genitalidade, criando-se às vezes uma sexualidade biológica diversa da sexualidade psicológica – embora, no presente caso, tal identidade já tenho sido alcançada.

No caso sugerido, não há mais tecnicamente um ser humano dotado de transexualismo (indivíduo em que sua sexualidade biológica é diversa de sua sexualidade física, caracterizada como um desvio permanente da personalidade sexual, pelo qual há tendência de automutilação e, eventualmente, de autoextermínio), haja vista a citada ocorrência da realização da cirurgia de transgenitalismo. Todavia, tenha ocorrido ou não a cirurgia em questão, a decisão permissiva para a adoção de novos prenome e sexo junto a um novo registro de nascimento representa dar vida e pleno respeito aos valores constitucionais acima transcritos, sendo que, especialmente nos casos dos transexuais, é medida acessória visando proteger também sua própria integridade física – como quando utiliza em si hormônios e materiais alopáticos altamente nocivos à saúde –, em marginalização constante de si mesmos advinda do desejo compulsivo de pertencer ao gênero sexual oposto.

O estudo da questão é tormentoso e recente não só no campo do Direito, mas até nas demais ciências, como, v.g., nos entendimentos do Conselho Federal de Medicina, os quais evoluíram desde a proibição plena da realização de cirurgia de transgenitalismo - Parecer nº 11/1991 (PORTAL MÉDICO. Brasília, 1991) até a sua autorização expressa - Resolução nº 1.652/2002 (PORTAL MÉDICO. Brasília, 2002) ocorrida após a publicação do novo Código Civil, cujo artigo 13 permite, em casos de exigência médica, atos de disposição de partes do próprio corpo, em virtude do bem estar físico ou psíquico do disponente, conforme Enunciados nº 06, da I Jornada de Direito Civil (PORTAL DA JUSTIÇA FEDERAL. Brasília, ago.2007) [02], e nº 276, da IV Jornada de Direito Civil [03], ambos do Conselho da Justiça Federal (PORTAL DA JUSTIÇA FEDERAL. Brasília, ago.2007).

No campo da jurisprudência, não obstante todos os interesses a serem protegidos, ainda existe uma letargia que lhe é inerente e os Tribunais têm criado entendimentos divergentes, ora autorizando as mudanças de prenome e sexo no registro civil [04], ora negando-as [05], existindo inclusive decisões que só as autorizam após a realização da citada cirurgia de transgenitalismo [06], estas últimas, a meu ver, sendo uma das formas mais violadoras da privacidade, intimidade e do livre arbítrio do indivíduo.

Espera-se, todavia, que a jurisprudência se pacifique com a decisão a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direita de Inconstitucionalidade Com Pedido Sucessivo de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADI 4275-1) em que se pleiteia a interpretação, conforme a Constituição, do artigo nº 58 da Lei nº 6.015/73, de modo a reconhecer aos transexuais que assim o desejarem, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização, o direito à modificação de prenome e sexo no registro civil; ou, então, com a aprovação do projeto de lei nº 6.655-6, de autoria do Deputado Federal Luciano Zica, de mesmo objetivo.

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Concluindo, em meu entendimento, é constitucional, legal, moral e eticamente possível, além de recomendável, que os magistrados defiram a alteração do prenome e do sexo tanto dos transexuais, quanto dos que já realizaram a cirurgia de transgenitalização, devendo-se proceder a um novo registro de nascimento – e não a uma mera averbação no registro existente – a fim de preservar, em grau máximo, a intimidade e os demais diretos do interessado, gerando, todavia, efeitos "ex nunc" para preservar interesses de terceiros.


BIBLIOGRAFIA:

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e sexo: mudanças no registro civil. 1. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

PORTAL MÉDICO. Parecer n. 11/1991 do Conselho Federal de Medicina. Brasília. 1991. Disponível em:<http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1991/11_1991.htm>. Acesso em 19 set. 2009.

PORTAL MÉDICO. Resolução n 1652/2002 do Conselho Federal de Medicina. Brasília. 2002.Disponível em:<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm>.

Acesso em 19 set. 2009.


Notas

  1. Outra teoria é a negativista, defendida por Savigny e Ihering, segundo a qual o nome não apresenta as características de direito, não merecendo guarida jurídica. Justifica o primeiro asseverando que o direito ao nome está ligado à própria pessoa; o segundo chega a distinguir o nome de seu significado e a afirmar que não apresenta qualquer interesse, a não ser quando se trata da identidade da pessoa.(SAVIGNY, Friedrich Karl von; IHERING, Rudolf von. apud AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 7-8).
  2. Enunciado n. 06: Art. 13. A expressão ‘exigência médica’ contida no artigo 13 refere-se tanto ao bem estar físico quanto ao bem estar psíquico do disponente.
  3. Enunciado n. 276: Art. 13. O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos expedidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no registro civil.
  4. SÉTIMA CÂMARA CÍVEL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Alteração do nome e averbação no registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte. Apelação cível n. 70013909874. Relatora: Maria Berenice Dias. Porto Alegre, j. 05.04.2006.
  5. QUARTA CÂMARA CÍVEL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Retificação. Registro Civil. Estado individual da pessoa. Competência. Vara de Família. Nome. Conversão jurídica do sexo masculino para o feminino. Incide a competência da Vara de Família para julgamento de pedido relativo a estado da pessoa que se apresenta transgênero. A falta de lei que disponha sobre a pleiteada ficção jurídica à identidade biológica impede ao juiz alterar o estado individual, que é imutável, inalienável e imprescritível. Rejeita-se a preliminar e dá-se provimento ao recurso. Apelação n. 1.0000.00.296076-3/000. Relator: Almeida Melo. Belo Horizonte, j. 20.03.2003.
  6. OITAVA CÂMARA CÍVEL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Transexual. Retificação de Registro Civil. Cirurgia realizada no exterior. Mero atestado médico constatando sua realização. Ausência de cumprimento das normas brasileiras sobre o tema. Procedimento que precede a análise da mudança de sexo no registro civil. Indeferimento da alteração do sexo no assento de nascimento. Recurso a que dá provimento. Apelação cível n. 1.0543.04.910511-6/001. Relator: Roney Oliveira. Belo Horizonte, j. 23.02.2006.
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Sobre o autor
Roberto Lins Marques

Advogado militante. Pós-graduando em Direito Civil. Ex-membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG .Graduado no Curso de Formação de Governantes da Escola de Governo do Triângulo Mineiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Roberto Lins. Da possibilidade jurídica de alteração do prenome e do sexo no registro civil pelos transexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2395, 21 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14217. Acesso em: 29 mar. 2024.

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