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A inversão do encargo probatório e do ônus financeiro em demandas ambientais.

Análise crítica do acórdão proferido no REsp 972.902/RS

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A maioria defende a inversão do ônus da prova em demandas ambientais, mas ainda se discute a repercussão na instrução processual, a exemplo dos custos para produção da própria prova invertida.

1. Introdução

O direito positivo sempre foi tradicionalmente informado com base em conflitos de direitos individuais, tradição esta, inclusive, acentuada no século XIX com a Revolução Francesa. Não obstante, ao longo dos anos, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, grandes mudanças foram experimentadas pela sociedade, transformações essas lideradas pela Revolução Industrial, seguida de extraordinária revolução tecnológica.

Essa brutal transformação da situação social mudou radicalmente a ótica de análise dos temas de grandes conflitos de interesses, que não mais se adaptavam às situações eminentemente individuais, merecendo estudo, agora, sob o prisma do coletivo.

As demandas e litígios – agora massificados - não poderiam mais ser concebidos num contexto individualizado, mas sim corporativo, não havendo, por conseguinte, mais que se falar em solução dos problemas sociais a partir da dicotomia público-privado.

Segundo Celso Fiorillo: "a reflexão dos direitos que pairavam acima dos interesses individuais – os direitos metaindividuais – somente se fez presente com a existência de conflitos de massa, o que foi sensivelmente acentuado após a Segunda Guerra Mundial. Com isso somente passamos a considerar melhor os direitos metaindividuais a partir da necessidade processual de compô-los" [01].

Essa nova visão transindividual do direito orientou diversas normas do ordenamento jurídico brasileiro, ganhando força especialmente com a edição da Lei n° 6.938/81, que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, e da Lei n° 7.347/85, que dispõe sobre a Ação Civil Pública, instrumento processual de tutela do meio ambiente, do consumidor, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

O próprio legislador constituinte de 1988, recepcionando as leis acima citadas, reconheceu a existência de uma terceira espécie de bem: o bem ambiental, que não seria público, tampouco privado, mas sim de uso comum do povo, constituindo este, portanto, bem difuso.

Em face desse reconhecimento constitucional da existência de direitos metaindividuais, foi publicada a Lei n° 8.078/1990 – Código do Consumidor -, que tratou de definir os direitos transindividuais (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos), trazendo essa norma dispositivos garantidores desses direitos, a exemplo da própria previsão de inversão do ônus probatório em causas que versem sobre tais interesses coletivos lato sensu.

O instituto da inversão do encargo probatório foi concebido justamente para facilitar a prova em juízo dos lesados em demandas que versem sobre direitos transindividuais, que muitas vezes se viam impossibilitados de fazer valer seus direitos em razão da complexidade da produção da prova, ou mesmo do seu desconhecimento sobre o recurso tecnológico que ensejara a lesão.

Assim, no ordenamento pátrio, a inversão do ônus da prova está prevista no art. 6°, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor, contudo, como se verá, a sua aplicação não se restringe a relações consumeristas, vez que ela pode ser aproveitada em qualquer caso que verse sobre interesse transindividual (direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos), como é o caso do direito ambiental.

Em que pese a doutrina ser majoritária em relação à possibilidade de inversão do ônus da prova em demandas ambientais, muito ainda se discute, a nível jurisprudencial, sobre a repercussão que tal medida acarreta à instrução processual, a exemplo dos custos para produção da própria prova invertida. Ficariam eles a cargo de quem? Invertendo-se o ônus da prova se inverteria automaticamente o seu ônus financeiro?

Persistindo tais questionamentos, o presente artigo se propõe a analisar, ainda que brevemente, a visão privatista da atribuição do ônus da prova e sua distribuição dinâmica, chegando-se à análise do instituto da inversão do encargo probatório previsto no Código Consumerista, estudando-se, por fim, a sua aplicação às demandas ambientais e repercussões processuais desse instituto, que tem implicação direta na própria inversão do ônus financeiro.

Todo o trabalho será analisado à luz de decisões judiciais proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, especialmente do acórdão proferido no Recurso Especial n°. 972.902/RS (2007/0175882-0), de relatoria da Exma. Sra. Ministra Eliana Calmon, em julgamento ocorrido em 25 de agosto 2009, cuja ementa segue abaixo transcrita:


RECURSO ESPECIAL N° 972.902– RS (2007/0175882-0)

Processo

REsp 972902

UF: RS

Registro: 2007/0175882-0

Autuação

01/08/2007

Recorrente

Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul

Recorrido

Amapá do Sul S/A. Artefatos da Borracha

Relator(A)

Min. Eliana Calmon - Segunda Turma

Julgamento

:

25/08/2009

Publicação DJ

:

14/09/2009

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DANO AMBIENTAL – ADIANTAMENTO DE HONORÁRIOS PERICIAIS PELO PARQUET – MATÉRIA PREJUDICADA – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – ART. 6º, VIII, DA LEI 8.078/1990 C/C O ART. 21 DA LEI 7.347/1985 – PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO.

1. Fica prejudicado o recurso especial fundado na violação do art. 18 da Lei 7.347/1985 (adiantamento de honorários periciais), em razão de o juízo de 1º grau ter tornado sem efeito a decisão que determinou a perícia.

2. O ônus probatório não se confunde com o dever de o Ministério Público arcar com os honorários periciais nas provas por ele requeridas, em ação civil pública. São questões distintas e juridicamente independentes.

3. Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução.

4. Recurso especial parcialmente provido.

No exame das questões postas no julgado ver-se-á que, apesar das divergências e controvérsias sobre o assunto, e após a prolação de diversos acórdãos díspares, finalmente a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça uniformizou seu posicionamento acerca da matéria, no sentido de autorizar a inversão do ônus da prova em demandas ambientais quando presentes os requisitos para tanto, mantendo, contudo, o entendimento de não inverter o ônus financeiro para realização da prova, atribuindo, inclusive, ao Ministério Público, o dever de adiantar os honorários periciais nas provas por ele requeridas em ação civil pública.

Para sistematizar a presente análise, entende-se, primeiramente, necessário abordar os aspectos jurídicos da atribuição do ônus da prova previstos no Código de Processo Civil e a teoria da sua distribuição dinâmica, analisando, posteriormente, a previsão de inversão desse encargo probatório no Código Consumerista e sua aplicação às demandas ambientais, para, em seguida, chegar-se à discussão da inversão do ônus financeiro da prova e o adiantamento de honorários periciais pelo Ministério Público em ação civil pública, findando com a análise crítica do acórdão fundamentado no art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985 e no princípio da precaução.


2. Ônus da Prova no Código de Processo Civil

Segundo os ensinamentos de Nelson Nery Junior [02], "o conceito de prova está associado aos meios processuais ou materiais considerados idôneos pelo ordenamento jurídico para demonstrar a verdade, ou não, da existência e verificação de um fato jurídico".

No direito processual brasileiro, segundo orientação do art. 333, do Estatuto de Ritos, prevalece a regra de que incumbe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito e ao réu, a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Adota-se, portanto, a teoria estática do ônus da prova.

Por fatos constitutivos podem-se entender aqueles que têm a eficácia jurídica de constituir a relação jurídica litigiosa, ou seja, dão origem ao direito pretendido pelo autor.

Por sua vez, os fatos impeditivos, incumbência do réu,obstam a produção de efeitos do fato constitutivo alegado pelo autor. Fatos modificativos são os que operam uma alteração no fato constitutivo alegado pelo autor, tornando-o ilegítimo da forma como pleiteado. Por fim, fatos extintivos são aqueles que encerram, por completo, a relação jurídica material ou o direito invocado pelo autor.

Dessa forma, dentro das regras de distribuição do ônus probatório, as partes, no intento de saírem-se vitoriosas na causa, exercem suas atividades probatórias sempre visando formar a convicção do juiz, que deverá decidir consoante o apresentado nos autos.

Importante esclarecer, contudo, que "provar não é um dever jurídico, mas uma condição para alcançar a vitoria" [03]. Não há, portanto, nenhuma norma que obrigue a parte a produzir a prova das suas alegações; inobstante saber-se que, uma vez não produzida, corre o risco de ver o juízo chegar a uma decisão contrária aos seus interesses pela falta dos elementos probatórios reputados necessários.

Isso ocorre porque ônus não se confunde com obrigação. Sobre o tema, é de clareza solar os ensinamentos do professor Arruda Alvim [04], para quem a obrigação determina uma conduta cujo adimplemento ou cumprimento traz benefícios à parte que ocupa o outro pólo da relação jurídica, o que pode levar a uma coerção do sujeito ativo em adimpli-la, sendo possível, ainda, sua conversão em pecúnia de modo a permitir uma reparação dos prejuízos decorrentes da omissão do agente. A figura do ônus, ao contrário, estabelece prática que, se observada, favorecerá o próprio sujeito, não sendo possível impor sua observância ou conversão em valor econômico a este.

A regra da distribuição do ônus probatório, contida no art. 333, CPC, dirige-se também ao magistrado, pois a este não é permitido omitir-se em proferir uma decisão, ainda que os fatos não se encontrem satisfatoriamente provados.

Por outro lado, ao juiz não compete indicar quais fatos as partes deverão provar, exceto na hipótese de inversão do ônus probatório, cabendo-lhe apenas, na fase do saneador, fixar os pontos controvertidos da lide, sobre os quais deverá ater-se a produção de provas, e, entendendo impertinente ou inútil o meio de prova requerido, denegar o seu pedido [05].

Apesar de não poder indicar propriamente os fatos que as partes deverão provar, é certo que poderá o juiz, de ofício, ordenar a produção de provas que entenda indispensáveis ao esclarecimento dos fatos, sem o objetivo de favorecer quaisquer das partes, sempre no intuito de encontrar a verdade material do caso e solucionar a lide.

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Conclui-se, portanto, que o onus probandi representa gravame que recai sobre as partes, incumbindo-lhes o encargo de apresentar o material probatório necessário ao convencimento do juízo, para que este forme a sua convicção sobre os direitos alegados pelas mesmas, constituindo, ao mesmo tempo, uma faculdade das partes de expor ao julgador os elementos que consideram mais eficazes para formar sua convicção.

2.1. Teoria da Distribuição Dinâmica do Ônus Probatório

Como já visto, prevalece no Código de Processo Civil a teoria estática da distribuição do ônus da prova pela qual, cada parte, deve provar as alegações realizadas.

Ocorre que nem sempre autor e/ou réu têm condições de se desincumbir do seu encargo de provar, tendo em vista que, muitas vezes se vêem diante de uma prova muito difícil ou impossível de ser produzida, findando o juiz por proferir uma decisão muitas vezes injusta, mostrando-se, portanto, nesses casos, ineficiente a teoria adotada para distribuição do ônus probatório.

Procurando-se fazer uma melhor adaptação dessas situações, surgiu o que a doutrina denominou de teoria dinâmica do ônus probatório, segundo a qual a maneira mais acertada e justa de provar o direito alegado pela parte seria atribuir o ônus da prova não a quem alega, mas a quem tem melhor condições de produzi-la de acordo com o caso concreto. Trata-se de verdadeira flexibilização da regra da distribuição do onus probandi previsto no Estatuto de Ritos.

Segundo Márcia Azário [06], "essa nova teoria não desconhece as regras clássicas do ônus da prova, mas trata de completá-las ou aperfeiçoá-las, flexibilizando sua aplicação e todas aquelas hipóteses nas quais quem devia provar segundo a regra tradicional, vê-se impossibilitado de fazê-lo por motivos completamente alheios a sua vontade".

Em verdade, essa teoria defende que apenas no caso concreto poderá se decidir sobre a distribuição do encargo de produção da prova, abandonando-se a prefixação de modelos abstratos e estáticos para a divisão desse ônus em prol de um sistema dinâmico [07].

Essa teoria já vem sendo aplicada pelos tribunais brasileiros, que vêm reconhecendo, em reiteradas oportunidades, a necessidade de se afastar a predefinição estática da distribuição do ônus da prova, em prol do alcance de uma decisão mais justa, imputando o onus probandi à parte que tem melhores e maiores condições de fazê-lo [08].

Importa dizer que o Projeto de Lei 5.139/2009, em trâmite no Congresso Nacional (que disciplina a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos) procura também incorporar a teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório ao disciplinar em seu art. 20, inc. IV, in verbis:

"Art. 20. Não obtida a conciliação ou quando, por qualquer motivo, não for utilizado outro meio de solução do conflito, o juiz, fundamentadamente:

(...)

IV - distribuirá a responsabilidade pela produção da prova, levando em conta os conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos detidos pelas partes ou segundo a maior facilidade em sua demonstração".

Percebe-se, assim, que a tendência processual moderna volta-se à relativização do art. 333, do CPC, procurando atribui o ônus probatório sempre a quem tem melhores condições de produzir a prova.


3. Inversão do Ônus Probatório no Código de Defesa do Consumidor

A regra de inversão do ônus da prova se encontra positivada no Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6º, inc. VIII. Segundo ela, em se tratando de relações de consumo, o magistrado deverá redistribuir o ônus probatório em duas situações: (i) quando for verossímil a alegação do consumidor, segundo as regras ordinárias de experiência; (ii) quando o consumidor for hipossuficiente.

Para a Cecília Matos [09], as normas de distribuição do ônus da prova são regras de julgamento utilizadas para afastar a dúvida do magistrado quando do exercício de seu poder decisório, complementando:

"Neste enfoque, a Lei 8.078/90 prevê a facilitação da defesa do consumidor através da inversão do ônus da prova, adequando-se o processo à universalidade da jurisdição, na medida em que o modelo tradicional mostrou-se inadequado às sociedades de massa, obstando o acesso à ordem jurídica efetiva e justa".

É certo, entretanto, que a inversão do ônus da prova, transferindo-o do consumidor para o fornecedor, não exime aquele do encargo de provar o fato constitutivo do direito por ele alegado, até porque a inversão do ônus da prova no direito do consumidor não é sempre automática, dependendo de manifestação judicial.

Como já referido, a lei condiciona a inversão a determinados requisitos, quais sejam: a verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor. Essa verificação, por sua vez, deve ser feita com base no mínimo de material probatório que deverá existir precipuamente no processo que ateste um requisito ou outro.

Zelmo Denari [10] adverte, ainda, que a inversão do encargo probatório não é postulado aplicável a todas as situações jurídicas derivadas do consumo ou bens de serviços, pois supõe justamente o juízo de verossimilhança das alegações do consumidor.

A Lei Consumerista prevê também hipótese de inversão obrigatória do ônus da prova na relação de consumo, quando esta envolva veracidade e correção de matéria publicitária (art. 38). Nesses casos, ao contrário do previsto no art. 6°, inc. VIII, a inversão do encargo probatório não está na esfera da discricionariedade do juiz, sendo, portanto, obrigatória a inversão, operando, nesse caso específico, ope legis.

Alguns doutrinadores, a exemplo do jurista Antonio Gidi, sustentam que a inversão prevista no art. 6°, inc. VIII do CDC se daria ope legis, em virtude da ausência de real discricionariedade do magistrado na aferição dos requisitos para a concessão da medida. Ou seja, presentes os requisitos, o juiz deveria inverter o ônus probatório; ausentes, não poderia fazê-lo.

A maioria dos autores, entretanto, diferencia inversão ope legis de ope judicis verificando se a inversão se opera automaticamente, por expressa determinação legal – como ocorre no caso do art. 38 do CDC -, ou se esta dependeria de pronunciamento do juiz, critério este aqui adotado.

Neste contexto, entende-se que a inversão do ônus da prova prevista no art. 6°, inc. VIII, do CDC, não atua ope legis, mas, sim, ope judicis, pois apenas terá incidência no caso concreto quando assim determinado expressamente pelo magistrado [11].

3.1. Momento Processual da Inversão

Outro aspecto relevante a ser considerado sobre a matéria diz respeito ao momento processual adequado para operar-se a inversão do ônus da prova, já que o Código Consumerista se mostra silente sobre o assunto.

Podem-se encontrar na doutrina e jurisprudência posicionamentos bastante distintos, defendendo momentos diversos como os mais adequados para a inversão do ônus da prova, como, por exemplo, o saneamento do processo, durante a fase instrutória ou mesmo na sentença.

O primeiro entendimento se fixa no sentido de que a inversão do ônus probatório representaria, exclusivamente, uma regra de julgamento para o magistrado, e não uma regra de procedimento. Assim, a inversão deveria ser anunciada apenas no momento da sentença e, ainda assim, apenas se permanecer o non liquet sobre o direito.

Para essa corrente, somente após a instrução da causa e permanecendo fatos pertinentes e relevantes sem demonstração, deve o magistrado anunciar se irá operar-se ou não a inversão do ônus da prova em beneficio do consumidor, como fundamento para o dispositivo da sentença [12].

Por sua vez, alguns doutrinadores entendem que as normas sobre ônus da prova não constituem exclusivamente regras de julgamento, mas indicam também regras de comportamento dirigidas aos litigantes, que devem ter ciência prévia dos encargos processuais dos quais lhes compete eximir-se.

De acordo com esse posicionamento, as partes devem ter conhecimento prévio, anterior à fase instrutória, dos critérios a serem adotados pelo juiz para a distribuição do ônus probatório [13]. Nesse toar, admitir que as partes somente tenham acesso aos critérios adotados para a distribuição do ônus após a instrução da causa representaria um cerceamento do direito de defesa, pois a parte já não poderá, na sistemática processual vigente, produzir novas provas.

Outro posicionamento é o de que a inversão seja decretada no saneamento do processo, ao final da fase postulatória e precedendo a fase instrutória, não existindo, entretanto, impeditivos legais que obstruam a concessão da medida em outras fases processuais. Esse momento processual ofereceria ao magistrado um acesso mais amplo aos argumentos de ambas as partes sem, entretanto, cercear-lhes o conhecimento dos ônus probatórios que lhes são impostos durante a oportunidade de produção de provas para influir na formação do convencimento do juiz.

Marcelo Abelha [14] tem firmado opinião de que a regra da inversão do ônus da prova deve ser feita no saneador e não no momento de julgar, evitando-se, assim, o "abominável processo de surpresa". Para ele, a adoção da técnica de inversão no saneador em nada prejudica o beneficiado pela inversão, e evita-se a utilização desta técnica como penalidade àquele que teve que suportar o ônus invertido, permitindo o enriquecimento da produção da prova, possibilitando, assim, ao juiz uma maior aproximação da verdade e, por conseguinte, de uma decisão mais justa.

Interessante colacionar a posição do jurista Hugo Nigro Mazzilli sobre a matéria, para quem a inversão deve ocorrer, ou antes, ou durante a fase probatória, nunca na sentença. E complementa: "se no momento da sentença o juiz ainda tiver dúvidas sobre os fatos e perceber que é o caso de inversão do ônus da prova, deve converter o julgamento em diligência, facultando à parte contra quem possa pesar o ônus a possibilidade de produzir a prova" [15].

Assim como ocorre com a doutrina, a jurisprudência ainda não se mostra pacificada sobre o momento processual em que deva ocorrer a inversão:

EMENTA: PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - CONSUMIDOR - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - MOMENTO OPORTUNO - INSTÂNCIA DE ORIGEM QUE CONCRETIZOU A INVERSÃO, NO MOMENTO DA SENTENÇA - PRETENDIDA REFORMA – ACOLHIMENTO - RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO.

- A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor, como exceção à regra do art. 333 do Código de Processo Civil, sempre deve vir acompanhada de decisão devidamente fundamentada, e o momento apropriado para tal reconhecimento se dá antes do término da instrução processual, inadmitida a aplicação da regra só quando da sentença proferida.

- O recurso deve ser parcialmente acolhido, anulando-se o processo desde o julgado de primeiro grau, a fim de que retornem os autos à origem, para retomada da fase probatória, com o magistrado, se reconhecer que é o caso de inversão do ônus, avalie a necessidade de novas provas e, se for o caso, defira as provas requeridas pelas partes.

- Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, provido. (STJ. REsp 881651/BA. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. Quarta Turma. Julg: 10/04/2007)

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC. REGRA DE JULGAMENTO.

A inversão do ônus da prova, prevista no Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, é regra de julgamento. Ressalva do entendimento do Relator, no sentido de que tal solução não se compatibiliza com o devido processo legal. (STJ. REsp 949.000 / ES. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Terceira Turma. Julg: 27/03/2008)

Interessante registrar nesse último acórdão (REsp 949.000/ES) o voto do próprio relator Min. Humberto Gomes, segundo o qual inversão do ônus da prova seria regra de procedimento (não de julgamento) e que, portanto, a inversão só poderia ocorrer antes do início da fase instrutória. Segundo ele, a tese de que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento não seria compatível com o devido processo legal. De acordo com o seu entender, a adoção dessa tese permitiria que o processo corresse sob clima de insegurança jurídica, colocando ao menos uma das partes em dúvida sobre seus encargos processuais. Apesar de registrado seu posicionamento, o Ministro Relator se rendeu à orientação da maioria da Turma para negar provimento ao recurso.

Sobre a matéria, conveniente ainda mencionar comentário do jurista Kazuo Watanabe [16], que, citando a promotora Cecília Matos, assim se posiciona:

"É todavia, medida de boa política judiciária, na linha evolutiva do processo civil moderno, que confere ao juiz até mesmo atribuições assistenciais, e na conformidade da sugestão de Cecília Matos, que, no despacho saneador ou em outro momento que preceda a fase instrutória da causa, o magistrado deixe advertido às partes que a regra da inversão do ônus da prova poderá, eventualmente, ser aplicada no momento do julgamento final da ação. Com semelhante providência ficará definitivamente afastada a possibilidade de alegação de cerceamento de defesa".

Afiliamo-nos à corrente que entende se tratar a inversão do onus probandi de regra de julgamento, e que o momento apropriado para ela operar-se deveria ser antes do proferimento da sentença, dando-se, de qualquer forma, às partes a oportunidade de se manifestarem no sentido de provar plenamente suas alegações.

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Sobre a autora
Laura Lícia de Mendonça Vicente

Advogada. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Especialista em Direito Ambiental pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTE, Laura Lícia Mendonça. A inversão do encargo probatório e do ônus financeiro em demandas ambientais.: Análise crítica do acórdão proferido no REsp 972.902/RS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2845, 16 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18919. Acesso em: 4 mai. 2024.

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