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A inconstitucionalidade da aplicação do programa de cotas raciais em concursos públicos

21/09/2011 às 11:03
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A pobreza é o verdadeiro entrave à efetivação dos direitos fundamentais no Brasil. O baixo nível do ensino público é que impede que todos sejam livres e iguais para atingirem seus sonhos e objetivos.

Ações afirmativas ou discriminações positivas são "medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas" [01].

Um dos modelos de ações afirmativas é o programa de cotas, que surgiu nos Estados Unidos da América, mas pouco durou. Houve um aumento da discriminação racial e da desigualdade republicana, o que fez com que a Suprema Corte daquele país barrasse o programa. Segundo Ronald Dworkin, as ações afirmativas visavam aumentar o número de membros de certas raças nas profissões e reduzir a importância da raça na vida social e profissional norte-americana. Elas vieram "eliminar os Iingering effects, isto é, os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam nas chamadas discriminações estruturais, espelhadas nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados" [02]. No entanto, o programa de cotas norte-americano, conforme citado, não conquistou os efeitos almejados.

O art. 3º, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil enfatiza que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O art. 19, III, diz que é vedado aos entes federativos "criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si". Além disso, o art. 37, VIII, da Lei Maior, prevê, literalmente, apenas um tipo de discriminação positiva voltada para seleção de servidores da Administração Pública, qual seja: "a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão". Conclui-se, dessa análise do texto constitucional, que é proibido criar distinções irrazoáveis entre brasileiros. Observa-se, igualmente, que em momento algum a Constituição destinou reserva de vagas aos afro-descendentes. A discriminação positiva para o ingresso no serviço público trazida pela Carta destina-se, exclusivamente, às pessoas portadoras de necessidades especiais, visto existir, aí, efetiva incapacidade do grupo beneficiado.

Vê-se, desde logo, que o programa de cotas raciais em concursos públicos fere os princípios da igualdade e da proporcionalidade (razoabilidade). "O direito à igualdade é o direito que todos têm de ser tratados igualmente na medida em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem, quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante a oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade material), pois todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos" [03]. O princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, por sua vez, não está expresso na Constituição, mas encontra base no devido processo legal e no ideal de justiça. Esse princípio de interpretação constitucional afirma que deve haver adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; que uma determinada medida não se fará necessária se houver meio menos gravoso para se chegar ao mesmo resultado e que os custos devem superar os benefícios.

É fato que as leis podem discriminar. No entanto, "segundo leciona Celso Antônio Bandeira de Melo, só se coadunam com o dogma da igualdade se existir uma pertinência lógica entre a distinção inserida na lei e o tratamento distintivo dela consequente" [04]. Exemplo típico dessa correlação seria uma lei que limita às mulheres o acesso a cargo público de policial feminino. Já no caso das cotas raciais para o ingresso no serviço público, não há justificativa racional ou fundamento lógico para proclamar-se uma desigualdade e criar uma política de discriminação positiva.

Surge, ainda, a pergunta: os negros são efetivamente incapazes de alcançarem vagas no serviço público? Se a resposta para essa pergunta fosse sim, estaríamos afirmando a inferioridade intelectual dessas pessoas e aí sim criando preconceito e discriminação. Mas a resposta para essa pergunta é não. O problema não é ser negro ou branco. Se não há igualdade de condições na disputa por trabalho é porque a base educacional está prejudicada. A educação fundamental e média públicas encontra-se frágil, pois a maioria de seus formandos não sai minimamente aptos para o mercado de trabalho. Cumpre lembrar que esse problema é enfrentado pela classe pobre, seja ela negra ou branca. Porém, por 70% da população pobre ser negra, devido à história do País, coincidem a imagem da cor da pele negra e uma condição social de pobreza. Não se pode negar, também, que há racismo nesse País. Todavia, para combatê-lo, existe o Código Penal, que pune aquele que age com discriminação. Cotas, pelo contrário, podem é piorar o quadro de preconceito ou discriminação existente, criando uma espécie de estigmatização de raças.

A verdade, contudo, vai mais além. O Brasil é um país miscigenado, de difícil comprovação quanto à raça, se é que podemos falar em raças, já que estudos científicos comprovam existir apenas uma raça: a raça humana. Muitos dos aparentemente negros possuem genética europeia predominante e muitos dos aparentemente brancos têm genes africanos como os predominantes em sua genética. O real problema brasileiro é a discriminação que ocorre entre ricos e pobres. Pesquisas mostram ano a ano que a concentração de renda no Brasil continua imensa. A população brasileira 10% mais rica concentra cerca de 75% das riquezas do país. Os ricos, proporcionalmente, pagam bem menos impostos que os mais necessitados e investem em ativos, enquanto a classe pobre compra os passivos do mercado, fatos esses que só ajudam a manter a concentração de renda.

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A educação fundamental e média públicas encontra-se aquém do nível ideal para fazer com que seus formandos disputem igualmente com os que provêm da rede particular de ensino. O artigo 205, caput, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (grifos nossos)

Fica claro que a educação de qualidade é direito subjetivo da pessoa e o Estado tem o dever de assegurar a todos esse direito. O meio menos gravoso a ser adotado pelo poder público, então, seria um ensino público qualificado para toda a população brasileira. A partir daí, todas as classes sociais estariam em iguais condições para enfrentar o mercado de trabalho público ou privado.

Nos Estados Unidos houve segregação racial promovida pelo Estado, por isso viu-se a necessidade da implantação, por eles, do modelo de cotas. O Brasil, como já foi transcrito, é um país miscigenado, onde as desigualdades ocorrem por questões econômicas e sociais e não por cor de pele. Assim, não há dúvidas de que cotas raciais para o ingresso no serviço público são desproporcionais e ferem a isonomia, podendo reforçar estereótipos nefastos. A pobreza é que entrava a efetivação dos direitos fundamentais no Brasil. O baixo nível do ensino público é que impede que todos sejam livres e iguais para atingirem seus sonhos e objetivos. A função do Estado, então, é não se omitir diante do real problema e buscar alternativas para solucionar de uma vez por todas as injustiças sociais, sem que haja necessidade de sacrifícios ou limitações a direitos fundamentais de pessoas em detrimento de outras. Uma transformação no modelo da educação pública e uma reforma tributária seriam bons primeiros passos.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. – São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa.

CENPAH. Negros são 70% dos pobres, diz IPEA. Disponível em: <http://cenpah.blogspot.com/2010/03/negros-sao-70-dos-pobres-diz-ipea.html>. Acesso em 02/07/2011.

Dworkin, Ronald.A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes. Capítulo 11 (Ação afirmativa: funciona?). Páginas 543 a 579.

MARTINS, Josiel. Dez mais ricos tem metade do patrimônio no Congresso. Disponível em: < http://www.portalodia.com/noticias/politica/dez-mais-ricos-tem-metade-do-patrimonio-no-congresso-101625.html>. Acesso em 06/07/2011.

MELO, Osias Tibúrcio Fernandes de. Ação afirmativa: o problema das cotas raciais para acesso às instituições de ensino superior da rede pública. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5301>. Acesso em 25/10/2008.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. – 4. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2009.

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. – 5ª ed. rev. ampl. e atual. – Bahia: JusPodivm, 2011.

RODRIGUES, Jorge Arthur Moojen. Políticas públicas afirmativas e o princípio da igualdade em face do preconceito e da discriminação no Brasil. Disponível em:<http://www.unisc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/direito/corpo_discente/2006_dissertacoes/moojen.pdf >. Acesso em 25/10/2008.


Notas

1. MENEZES, 2001, p.25. Apud Jorge Arthur Moojen Rodrigues. Políticas Públicas Afirmativas e o Princípio da Igualdade em face do Preconceito e da Discriminação no Brasil.

2. GOMES, 1982, p.47. Apud Ibidem.

3. JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. – 5ª ed. rev. ampl. e atual. – Bahia: JusPodivm, 2011, p. 676.

4. Ibidem, p. 681.

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Sobre o autor
João Pedro da Silva Rio Lima

Advogado / Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí - UFPI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, João Pedro Silva Rio. A inconstitucionalidade da aplicação do programa de cotas raciais em concursos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3003, 21 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20033. Acesso em: 4 nov. 2024.

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