3.2 A HERMENÊUTICA PENAL APLICADA À PROBLEMÁTICA DA COMBINAÇÃO DE LEIS.
No esteio do raciocínio esposado até o momento, não se pode olvidar, com renovada menção às palavras do professor Aury Lopes, que “o sistema penal (material e processual) não pode ser objeto de uma análise estritamente jurídica”[18]. Vale dizer, não é possível contentar-se com argumentações derivadas de uma lógica formal, portanto, estanques, frias, do ordenamento penal, tal qual a vedação à criação da lex tertia, sob a tese de que não pode o Judiciário usurpar a função legislativa.
Como dito acima, a mesma disputa travada no que tange à admissibilidade da utilização da prova ilícita sob o princípio da proporcionalidade permeia a questão da combinação de leis. Aqui, não pode ser outro a conclusão senão a mesma à que se chega naquele ponto.
Deveras, a hermenêutica penal deve prevalecer sobre uma lógica formal para reconhecer a possibilidade de combinação de leis nos seus aspectos favoráveis. Até porque o mesmo ordenamento que não prevê expressamente a hipótese de combinação de leis, atesta, em sede constitucional, no art. 5º, XL que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”
O Código Penal, por sua vez, em seu art. 2º, parágrafo único, traz a previsão de que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
Assim, é o próprio ordenamento vigente, como afirma o ilustre professor Juarez Cirino dos Santos, que não só autoriza, como determina, ao se valer da expressão “de qualquer modo”, a combinação de leis já que não se conheceria exceção alguma no que tange à retroatividade mais benéfica.
Não resta dúvidas, destarte, que não se admite a leitura do sistema penal flexibilizando garantias constitucionalmente asseguradas, seja em face da singularidade da hermenêutica penal que deve, sempre, buscar a maximização dos aspectos de proteção do indivíduo, seja em vista da própria formatação do ordenamento que contém dispositivos que autorizam a aplicação da combinação de leis.
O festejado professor Luis Roberto Barroso traz à lume o princípio constitucional da interpretação efetiva, alertando que “deve ser dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso”[19].
Com efeito, ao invés de se admitir interpretações que limitam as garantias individuais, como a admissão da prova ilícita pro societate, e, notadamente, a vedação da combinação de leis, deve-se consolidar a índole constitucional do Direito Penal brasileito, sob pena de subverter a ordem jurídica e natural das coisas. No ponto, imperiosa a reprodução da advertência feita, novamente, por Luis Roberto Barroso, desta feita acompanhado da professora Ana Paula Barcellos[20]:
(...) deve-se ter em linha de conta os antecedentes de País, onde as exceções viram regra desde sua criação (vejam-se, por exemplo, as medidas provisórias). À vista da trajetória inconsistente do respeito aos direitos individuais e da ausência de um sentimento constitucional consolidado, não é nem conveniente, nem oportuno, sequer `de lege ferenda`, enveredar por flexibilizações arriscadas
Certo é, destarte, que a singularidade da principiologia e hermenêutica penais demandam do jurista muito mais do que a mera manipulação de dispositivos e a reprodução de ensinamentos consolidados em período pré-constituição de 1988.
Deve-se ter, sem sombra de dúvidas, humildade e arrojo científico bastante para ultrapassar barreiras e romper com (pre)conceitos, tudo com vistas a conferir efetividade a linhas de raciocínio amparadas, integralmente, com o norte constitucional.
4. CASUÍSTICA: O §4º DO ART. 33 DA LEI Nº 11.343/2008 E O CAPUT DO ART. 12 DA LEI 6.368/76
Os argumentos colacionados até o momento guardam relevância, como registrado linhas acima, quando do exame das circunstâncias em diploma posterior que, embora contenha dispositivo benéfico, não possa ser, em seu todo unitário, apontado como a lex mitior, o que tem sido debatido constantemente desde que entrou em vigor a Lei nº 11.343/06.
Deveras, a partir da edição da lei de drogas o debate sobre a combinação de leis encontrou raro espaço em nossos Tribunais.
A explicação deriva da constatação de que o §4º do art. 33 da nova lei de drogas trouxe causa de diminuição de pena que não havia sido positivada em nosso ordenamento até então, atribuindo à nova lei de drogas o caráter de lei parcialmente favorável. Afinal, em que pese a nova causa de diminuição de pena, a Lei nº 11.343/2006 elevou a pena mínima de 3 (três) anos do delito previsto no art. 12 da Lei nº 6.368/76 para 5 (cinco) anos, além de ter cominado pena de multa muito superior àquela antes prevista. Vejamos:
Lei nº 6.368/76
Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
Lei nº 11.343/2003
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - Reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
(...)
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Delineia-se, assim, a discussão jurisprudencial a respeito da aplicabilidade ou não da causa de diminuição da nova lei de drogas àqueles que praticaram o delito de tráfico de drogas quando ainda vigente da antiga lei de tóxicos.
Pois bem, como alinhavado na introdução do estudo, o posicionamento prevalente nos Tribunais Estaduais, bem como no Superior Tribunal de Justiça, vem sendo no sentido de que não é possível a aplicação isolada da causa de diminuição da nova lei de drogas, uma vez que se estaria em face de lex tertia e da usurpação pelo Judiciário da função legislativa. Acolhe-se, portanto, os argumentos da doutrina clássica, capitaneada pelo mestre Nelson Hungria. A propósito:
PROCESSO PENAL - ENTREVISTA RESERVADA COM O DEFENSOR ANTES DO INTERROGATÓRIO - OPORTUNIDADE NÃO CONCEDIDA - NULIDADE - INOCORRÊNCIA - AUSÊNCIA DE PROTESTO OPORTUNO - PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO - TRÁFICO DE DROGAS - CRIME CONFIGURADO - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - RÉU SURPREENDIDO VENDENDO DROGASPARA USUÁRIO - DEPOIMENTO DE POLICIAIS - VALIDADE - § 4º, ARTIGO 33 LEI 11.343/06 - APLICAÇÃO IMPOSSIBILIDADE - PENA - SUBSTITUIÇÃO DA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS - INVIABILIDADE. - (....). - A aplicação da causa de diminuição prevista no § 4º, do artigo 33 da Lei 11.343/06, aos condenados pelo delito de tráfico cometido sob a égide da Lei 6.368/76, mostra-se inviável, por importar em indevida combinação de leis. - (TJMG - AC n° 1.0024.06.026880-2/001(1) – Rel. Desa. Beatriz Pinheiro Caires – j. 29.01.2009)
APELAÇÃO CRIME. TRÁFICO DE DROGAS. LEI 6.368/76. PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. (...) MINORANTE DO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/06. INAPLICABILIDADE. VEDAÇÃO DE COMBINAÇÃO DE LEIS. (...) - (TJRS - Apelação Crime Nº 70035375526, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marlene Landvoigt, Julgado em 31/05/2011)
STJ - Informativo 432. Como consabido, vem do art. 5º, XL, da CF/1988 o reconhecimento do princípio da retroatividade da lei mais benéfica como garantia fundamental, aplicando-se, imediatamente, a nova norma mais favorável ao acusado até mesmo após o trânsito em julgado da condenação. Contudo, a verificação da lex mitior no confronto de leis é feita in concreto, pois a norma aparentemente mais benéfica em determinado caso pode não sê-lo em outro. Daí que, conforme a situação, há retroatividade da norma nova ou a ultra-atividade da antiga (princípio da extra-atividade). Isso posto, o § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 (nova lei de tráfico de drogas), que, ao inovar, previu causa de diminuição de pena explicitamente vinculada ao novo apenamento constante no caput daquele mesmo artigo, não pode ser combinado ao conteúdo do preceito secundário do tipo referente ao tráfico previsto no art. 12 da Lei n. 6.368/1976 (antiga lei de tráfico de entorpecentes), a gerar terceira norma, não elaborada e jamais prevista pelo legislador. A aplicação dessa minorante, inexoravelmente, aplica-se somente em relação à pena prevista no caput do art. 33 da nova lei. Dessarte, há que se verificar, caso a caso, a situação mais vantajosa ao condenado, visto que, conforme apregoam a doutrina nacional, a estrangeira e a jurisprudência prevalecente no STF, jamais se admite a combinação dos textos para criar uma regra inédita. Precedentes citados do STF: RHC 94.806-PR, DJe 16/4/2010; HC 98.766-MG, DJe 5/3/2010, e HC 96.844-MS, DJe 5/2/2010. EREsp 1.094.499-MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgados em 28/4/2010.
5. A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 596152/SP
Como não poderia deixar de ser, a controvérsia chegou ao Supremo Tribunal Federal, sendo que, após diversos julgados tanto em um sentido, quanto em outro, a matéria foi vinculada ao pleno da Corte Suprema em sede do Recurso Extraordinário 596152/SP. Encontra-se acirrada a discussão entre os Ministros e pendente a matéria de julgamento definitivo. É o que se passa a demonstrar.
O Supremo Tribunal Federal já enfrentou a questão da possibilidade ou não de combinação de leis incriminadoras, como ocorreu, v.g., quando do julgamento do HC 68416, da relatoria do Min Paulo Brossard, quando assentou que “os princípios da ultra e da retroatividade da "lex mitior" não autorizam a combinação de duas normas que se conflitam no tempo para se extrair uma terceira que mais benefície o réu”, nos idos do ano de 1992.
Extrai-se, outrossim, do informativo 432 do STJ colacionado linhas acima, que até muito recentemente, o posicionamento do Suprema era na mesma linha de raciocínio.
Não é demais destacar, portanto, que a posição da Corte Suprema, historicamente, sempre foi no sentido de inadmitir a conjugação de leis penais.
Sucede que a atual composição do Supremo, tem editado julgados que revelam a possibilidade de mudança nessa postura. Para tanto, é mister notar que existem posicionamentos díspares nos julgamentos realizados em sede da competência de suas 2 (duas) turmas, por vezes acolhendo a tese da combinação de leis, por outras afastando. Vejamos:
1ª Turma
Não admitindo a combinação: (Informativo 594)
A Turma indeferiu habeas corpus em que condenada por crime de tráfico de drogas praticado sob a vigência Lei 6.368/76 pretendia fosse aplicada à sua pena-base a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º da Lei 11.343/2006 (“§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”). Aduziu-se, de início, que a sentença condenatória considerara diversos fatores que afastariam a diminuição da pena, tais como maus antecedentes, quantidade de droga apreendida, entre outros. Destacou-se, ademais, que a nova lei majorou a pena mínima aplicada a tal crime de três para cinco anos, daí o advento da referida causa de diminuição. Por fim, considerou-se não ser lícito tomar preceitos isolados de uma e outra lei, pois cada uma delas deve ser analisada em sua totalidade, sob pena de aplicação de uma terceira lei, criada unicamente pelo intérprete. Declarou-se, ainda, o prejuízo do pedido de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (HC 103153/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, 3.8.2010)
2ª Turma
Não admitindo a combinação: (Informativo 570 do STF)
A Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenada à pena de 4 anos de reclusão por tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12) em que pleiteada a diminuição da pena para o mínimo legal (3 anos), tendo em vista ser ela primária e preponderarem circunstâncias judiciais favoráveis. Requeria-se, também, por idênticas razões, a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, que possibilita a redução da pena de um sexto a dois terços em tais casos. Considerou-se que a sentença condenatória estaria devidamente fundamentada, com motivação suficiente para a elevação da pena-base acima do mínimo legal. Rejeitou-se, de igual modo, o pleito de incidência do novo dispositivo da Lei 11.343/2006, pois a causa especial de diminuição nele estabelecida tem como parâmetro a nova pena imposta ao crime de tráfico de entorpecentes pelo diploma legal em questão, que parte do mínimo de 5 anos. Assim, combinar referida norma com a pena imposta à paciente, sob a égide da Lei 6.368/76, significaria criar uma terceira pena, não estabelecida em lei, o que seria vedado ao órgão julgador, por força dos princípios da separação dos poderes e da reserva legal. (HC 96844/MS, rel. Min. Joaquim Barbosa, 4.12.2009).
Admitindo a combinação: (Informativo 574 do STF)
A Turma deferiu habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de condenado por tráfico ilícito de entorpecentes na vigência da Lei 6.368/76 para determinar que magistrado de 1ª instância aplique a causa de diminuição de pena trazida pelo § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, bem assim para que fixe regime de cumprimento compatível com a quantidade de pena apurada após a redução. Consignou-se que a Constituição Federal determina que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (CF, art. 5º, XL) e, tendo em conta que o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 consubstancia novatio legis in mellius, entendeu-se que ele deveria ser aplicado em relação ao crime de tráfico de entorpecentes descrito em lei anterior. (HC 101511/MG, rel. Min. Eros Grau, 9.2.2010. (HC-101511)
Diante da divergência em destaque, a matéria foi afetada ao pleno da Corte Suprema no julgamento do Recurso Extraordinário 596152/SP interposto pelo Ministério Público Federal em face de acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a possibilidade de combinação de leis em sede de Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, cuja autoridade indigitada coatora foi o Tribunal de Justiça paulista.
A repercussão geral foi reconhecida, encontrando-se os autos do recurso extremo, atualmente, em conclusão ao Ministro Luiz Fux após pedido de vista.
Até o momento 6 (seis) foram os votos emitidos. Os Ministros Joaquim Barbosa e Carmem Lúcia acompanharam o Ministro Ricardo Lewandowski, relator, que entendeu não ser possível a conjugação de leis incriminadoras (v. Informativo 611 do STF).
Já os Ministros Dias Toffoli e Ayres Britto acompanharam a divergência suscitada pelo Ministro Cezar Peluso em voto-vista, que, por sua vez, reiterou as razões lançadas no julgamento do HC 95435 acima ementado, aduzindo que “aplicar a causa de diminuição não significaria baralhar e confundir normas, uma vez que o juiz, ao assim proceder, não criaria lei nova, mas apenas se movimentaria dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível” (v. Informativos 611 e 626 do STF).
Deflui-se, assim, que a matéria encontra-se pendente de julgamente definitivo no Supremo, o qual deve ser realizar ainda neste ano de 2011, haja vista que mais da metade dos votos já foram proferidos no julgamento do mencionado RE 596152/SP.
Espera-se que a atual composição da Corte Suprema siga realizando julgamentos históricos na esfera penal, concretizando os ideais constitucionais no intuito de afastar interpretações que não encontram respaldo na singularidade da hermenêutica criminal como foi o julgamento do Habeas Corpus 82.959-7/SP, que afastou o erro histórico de mais de 15 (quinze) anos da redação originária da Lei de Crimes Hediondos, autorizando a até então vedada progressão de regime.