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STF, aborto de fetos anencéfalos, ADPF 54 e legislador positivo

17/04/2012 às 11:18
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A decisão proferida na ADPF 54 acrescentou nova modalidade que exclui a hipótese de crime de aborto, qual seja, quando se tratar de feto anencéfalo. A tese abraçada pelo STF segue a linha adotada pela medicina, que considera o feto anencéfalo um natimorto cerebral.

RESUMO: O artigo aborda a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 que autorizou a interrupção de gestação com feto anencéfalo.

Anencefalia é a malformação congênita do feto, por ausência de crânio e de encéfalo. Segundo a ciência médica, causa morte em 100% dos casos. O feto, se alcançar o final da gestação, sobrevive minutos ou dias, no máximo.

A decisão, nas palavras do Ministro Cezar Peluso, foi a mais importante da história do STF.

A questão consistia em saber se a interrupção da gestação de feto sem cérebro caracteriza o crime de aborto, previsto no artigo 124 do Código Penal.

A Argüição de Descumprimento de Preceito fundamental – ADPF foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, cuja atuação foi representada por Luís Roberto Barroso e que aviou, em resumo, as seguintes alegações:

a)                  a hipótese em julgamento não configura aborto, que pressupõe potencialidade de vida do feto. A interrupção da gravidez de feto anencéfalo não configura hipótese prevista no artigo 124 do Código Penal;

b)                  o sistema jurídico pátrio não define o início da vida, mas fixa o fim da vida (com a morte encefálica, nos termos da Lei de Transplante de Órgãos). Na hipótese em julgamento não haveria vida e, portanto, não haveria aborto;

c)                  as normas do Código Penal que criminalizam o aborto são excepcionadas pela aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição).

O STF, por maioria de votos (8 x 2), julgou procedente o pedido veiculado na ADPF 45. Em resumo, foram utilizados os seguintes fundamentos:

  • Min. Marco Aurélio (relator): o feto anencéfalo é incompatível com a vida e por isso não é proporcional defender o feto – que não vai sobreviver – e deixar sem proteção a saúde da mulher – principalmente a mental;
  • Ministra Rosa Weber: deve-se proteger a liberdade individual e de opção da gestante, pois não há interesse jurídico na defesa de um feto natimorto;
  • Ministro Luiz Fux: o Código Penal é da década de 1940 e na época não era possível prever e identificar um feto anencéfalo. Atualmente, trata-se de uma questão de saúde pública que deve ser respeitada em prol da mulher.
  • Ministra Cármen Lúcia: considerando que o feto não tem viabilidade fora do útero, deve-se proteger a mulher, que fica traumatizada com o insucesso da gestação.
  • Ministro Ayres Britto: afirmou que todo aborto é uma interrupção da gestação, mas nem toda interrupção de gestação é um aborto, de modo que não se pode impor à mulher o martírio de gestar um feto anencéfalo.
  • Ministro Gilmar Mendes: a interrupção da gestação, no caso, tem por finalidade proteger a saúde da gestante e o legislador do Código Penal não possuía elementos para a identificação da anencefalia na gestação.
  • Ministro Lewandowski: votou pela improcedência do pedido, entendendo que o STF não possui legitimidade para deliberar sobre o caso, apenas o Congresso Nacional, por meio de lei.
  • Ministro Joaquim Barbosa: acompanhou o voto do relator.
  • Ministro Celso de Mello: não se trata do aborto previsto no Código Penal, pois o feto sem cérebro não está vivo e sua morte não tem por origem alguma prática abortiva.
  • Ministro Cezar Peluso: votou pela improcedência do pedido, afirmando que o feto anencéfalo é um ser vivo e, por conseguinte, a interrupção da gestação caracteriza o aborto.
  • Ministro Dias Toffoli: não participou do julgamento, pois atuara na condição de Advogado Geral da União.

A tese abraçada pelo STF segue a linha adotada pela medicina, que considera o feto anencéfalo um natimorto cerebral.

A decisão afasta, mais uma vez, o dogma do legislador negativo, segundo o qual o Judiciário tem legitimidade apenas para excluir do sistema jurídico normas incompatíveis com o texto da Constituição. Na ADPF 54, a decisão demonstra que o STF atuou como legislador positivo. Isto porque o Código Penal apenas prevê duas hipóteses de aborto sem a criminalização, nos termos do seu artigo 128 [Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal].

A decisão proferida na ADPF 54 acrescentou nova modalidade que exclui a hipótese de crime de aborto, qual seja, quando se tratar de feto anencéfalo.

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É verdade que o foro adequado para a análise da questão é o Congresso Nacional que, entretanto, omitiu-se na apreciação da matéria. E a inércia do órgão de representação democrática permite a intervenção judicial, pois a proteção de direitos fundamentais é tarefa indispensável do Estado, a exigir a tutela estatal, nos termos do que preconiza o artigo 5ª, inciso XXXV, da Constituição.

Sobre esta questão, é importante a lição de Luís Roberto Barroso:

“A vida na democracia é feita pelo processo político majoritário, que se desenrola no Congresso, e pela proteção e promoção dos direitos fundamentais via Constituição e Supremo Tribunal Federal. Quando o processo majoritário está azeitado, fluindo bem, com grande legitimidade, a jurisdição constitucional recua. E quando o processo político majoritário emperra ou enfrenta dificuldades para votar determinadas matérias, o STF tem seu papel ampliado.”[2]

Ainda, não se trata de uma obrigação ou dever da mulher de interromper a gestação. O STF apenas autoriza e faculta a prática da cessação da gestação, ao nuto de mulher grávida, em prol da sua dignidade e a fim de minorar seu sofrimento – de saber que o feto não terá viabilidade.

A partir da decisão, portanto, caberá ao SUS promover a política pública de saúde adequada (com apoio psicológico e obstétrico), orientando a mulher grávida de feto anencéfalo, para que tenha a liberdade, a coragem e a sabedoria de adotar uma decisão que melhor se ajuste ao seu sofrimento e à sua situação particular.

A posição manifestada pelo STF decorre da impossibilidade de proteger-se deficientemente a mulher. Vale dizer, não pode o Estado deixar de tutelar determinado titular de direito fundamental, sob pena de violar o princípio da vedação de proteção insuficiente, decorrente da cláusula Untermassverbot, implícita ao princípio da proporcionalidade.

Portanto, o STF decidiu com acerto.


Notas

[2] Entrevista concedida ao Jornal O Estado de São Paulo (08/04/2012, p. A4).

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Sobre o autor
Clenio Jair Schulze

Juiz Federal. Mestre em Ciência Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHULZE, Clenio Jair. STF, aborto de fetos anencéfalos, ADPF 54 e legislador positivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3212, 17 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21532. Acesso em: 25 nov. 2024.

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