RESUMO
O presente estudo pretende analisar a diferença de tratamento nas ações que visam o devido ressarcimento quando o Estado é o autor e quando é réu, à luz da razoabilidade e com vistas à efetividade da satisfação desses créditos, sob o pálio do Estado Democrático de Direito.
Da mesma forma, investiga a posição atual do Supremo Tribunal Federal sobre a questão e a repercussão de suas decisões na relação entre o Estado e o cidadão, com enforque na diferença entre a expectativa do direito e sua efetivação.
Palavras-chave: Constituição. Estado Democrático. Razoabilidade. Efetividade. Intervenção. Precatórios. Ausência de dolo. Enriquecimento ilícito.
INTRODUÇÃO
As leis da física clássica remetem sempre ao equilíbrio: assim é na cinemática, na mecânica dos fluidos, na termologia. Também é assim na natureza, no chamado equilíbrio ecológico.
O homem - parte da natureza - tem essa mesma necessidade de equilíbrio em suas relações sociais: é uma necessidade inata, que se lhe impõe à razão.
Essa necessidade começa a ser satisfeita com o surgimento do direito, simultaneamente com o surgimento dos primeiros grupos sociais - ubi societas, ibi jus – e, em que pese sua evolução instrumental, suas bases permanecem as mesmas. No Digesto, ainda que Ulpiano acrescente uma terceira fonte à definição do jus gentium de Gaio – jus naturale -, dele não discrepa quanto à origem daquele, a naturalis ratio.
Dado seu caráter instrumental e em face da crescente complexidade das relações humanas e sociais, coube ao direito a solução dos conflitos com vistas ao retorno a um estado de equilíbrio.
Nesse trabalho procuraremos demonstrar que posições tomadas somente em função de necessidades imediatas no caso do pagamento de precatórios, subtraindo do prejudicado qualquer possibilidade de retomar esse estado de equilíbrio, a par de procrastinar a solução, cria um deletério efeito multiplicador ao deixar livre o endividamento desenfreado do Estado.
Como as relações estabelecidas entre o Estado e o cidadão repetem-se ao longo do tempo, é necessária criação de um “estado de confiança”, onde o particular tenha a convicção de que, violado seu direito, este será reparado, pois há efetiva proteção do Estado.
Ao contrário, quando esse “estado de confiança” não se estabelece ou é violado, as expectativas migram para o polo oposto, onde a regra é a não proteção.
Analisando a evolução dos Estados até hoje, culminando no Estado Democrático de Direito vigente no Brasil, temos que as expectativas do cidadão quanto aos seus direitos deve ser consolidada, e as ações que a contrariam causam insegurança jurídica e dão um péssimo exemplo.
2.ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E RESPEITO À LEI
Para chegarmos ao conceito hodierno de Estado Democrático de Direito, utilizado à larga sem, no mais das vezes, se atentar para sua devida importância, é de vital importância conhecermos suas origens.
Gestado a partir do Estado Liberal - laissez faire -, que privilegiava a liberdade, sua evolução passou pelo Estado Social de Direito, sendo o que conhecemos por Estado Democrático de Direito sua legitimação.
Estado de Direito, num contexto histórico, representa a migração da Monarquia Absolutista para a Constitucional. Em outras palavras, é um Estado Liberal – livre agora do absolutismo, e ao mesmo tempo Constitucional – onde há a supremacia da Lei, não mais da vontade do rei. As características desse novo Estado são, no escólio de SILVA (2011, p.112)
(a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente pelo poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais.
Podemos acrescer ainda a essas características uma Constituição rígida, suprema, e seu controle sobre as leis.
Já o Estado Liberal, por sua vez, primava pela abstenção de intervir na vida dos homens, privilegiando sua liberdade e bem estar. Como não é difícil de imaginar, o uso desmedido dessa condição deflagrou graves injustiças sociais, pois o Estado Liberal tende a ceder às pressões sociais, não à lei.
Disso decorreu a formação do Estado Social de Direito, submisso a leis que privilegiassem o bem estar social. Como exemplo, citamos a social-democracia de Weimar, instaurada na Alemanha logo após a Primeira Grande Guerra, e que almejava um planejamento econômico centralizado, mas com valores de um Estado de Direito, voltado para a justiça social - bandeira socialista -, procurando privilegiar a sociedade em face do indivíduo e tentando compatibilizar igualdade e liberdade.
O sistema proposto por Weimar era corporativista, buscando o diálogo com empresas e sindicatos, onde cabia ao Estado socializar o resultado do trabalho, culminando no aparelhamento da sociedade a exigir tais resultados como direitos.
Diante desse quadro e à míngua de mecanismos de controle e dinheiro suficiente para tais demandas, o Estado entrou em colapso, permitindo a ascensão das ideias de Adolf Hitler. O mesmo se deu com o fascismo na Itália, soba a batuta de Benito Mussolini.
Não é difícil deduzir, portanto, que a ascensão do ditador consubstancia uma falta de legitimidade para o exercício do poder político, o que se pretende resolver com o Estado Democrático de Direito. A legitimidade para o exercício do poder era o elemento faltante.
Daí que a definição clássica de democracia - governo do povo, para o povo e pelo povo – exercido de forma direta ou por intermédio de representantes, implica na necessidade de respaldo, da autorização do povo para o qual se governa, o que chamamos de legitimidade.
A legitimidade é pressuposto da democracia, e na organização do Estado Democrático a vontade popular prepondera.
Alfim podemos chegar a um conceito de Estado Democrático de Direito como sendo o que persegue o bem estar social sob o pálio de uma lei justa, numa organização tal que a participação do povo no processo político seja a mais extensa possível.
Ao analisarmos o processo evolutivo que culminou no Estado Democrático de Direito, percebemos que sua criação se deu a partir da consciência de que, mesmo baseado na Lei e operando com vistas à justiça social, o Estado Social de Direito não conseguiu assegurar a democracia, que já era, há tempos, o desejo de muitas sociedades do século XX, principalmente no pós-guerra. A opinião popular em questões de relevante interesse nacional nunca fora tão importante, malgrado ainda haver um resistente atavismo ditatorial.
No Brasil passamos por essa fase, consagrando o tão esperado Estado Democrático de Direito na Constituição da República de 1988, de onde extraímos já em seu artigo 1º essa denominação, seguida, nos artigos 2º e 3º, dos objetivos desse novo Estado.
À luz da Constituição da República, o Estado brasileiro tem por supedâneo o princípio da legalidade (art. 5, II), legalidade essa que é material, pois que serve ao descrito nos incisos do art. 3º:
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
São essas as premissas do Estado Democrático de Direito brasileiro, assegurando a Constituição no parágrafo único do artigo 1º que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Para a construção dessa sociedade livre, justa, solidária e desenvolvida, mais do que o respeito à lei, é necessário que os poderes, que foram instituídos pelo povo, respeitem essa premissa, pois do povo são mandatários. E por seu caráter institucional, espera-se que deem sempre o exemplo.
Essa pequena digressão histórica, servil a demonstrar a evolução do Estado Absolutista ao Estado Democrático de direito bem ilustra a importância dessa conquista, que não se deu senão a um custo muito alto para a sociedade, e denota que a relação entre Estado e cidadão deve ser pautada, além de todos os pressupostos inerentes à democracia, pela confiança de que os atos de um e de outro serão pautados pela lei e, por essa razão, previamente conhecidos.
3.PRECATÓRIOS: PAGAMENTO EFETIVO OU MERA EXPECTATIVA?
De acordo com o previsto no artigo 100 da Constituição da República e no artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o pagamento da dívida da Fazenda Pública será realizado por meio de precatórios.
Precatórios podem ser definidos como formalizações de requisições de pagamento de quantia determinada, devida pela Fazenda Pública por conta de condenação judicial transitada em julgado, com exceção das definidas em lei como de pequeno valor conforme o art. 100, § 3º da Constituição da República.
Em verdade, a previsão constitucional desse sistema de liquidação de valores devidos pela Fazenda Pública é bastante abrangente.
Estabelecida a divisão entre dívidas de pequeno valor e os demais, a Carta estabelece que os pagamentos deverão ser realizados em ordem cronológica (Art. 100, caput, CRFB), estabelecendo um discrímen entre precatórios oriundos de verbas salariais, indenizações e pensões e fundadas em responsabilidade civil, a que chama de precatórios de natureza alimentícia, e os oriundos dos demais casos, aqueles preferindo a estes quando de sua liquidação; e dentre os de natureza alimentícia, preferem aqueles cujo titular tenha mais de 60 anos na data de sua expedição, ou seja portador de doença grave – assim prevista em lei. (Art. 100, §§ 2º e 3º, CRFB)
A seguir, a CRFB estabelece, ainda no artigo 100, a forma de cálculo dos débitos de pequeno valor (§ 4º); forma de empenho e pagamento (§§ 5º e 6º); pena pelo retardo ou frustração de liquidação regular (§ 7º); vedação à emissão de precatórios complementares e fracionamento dos existentes para efeito de enquadramento na previsão do § 3º do artigo 100 (§ 8º); forma de compensação e de utilização para compra de imóveis públicos (§§ 9º, 10º e 11º); atualização de valores (§ 12º); cessão a terceiros (§§ 13º e 14º); instituição de regime especial de pagamento de débitos de precatórios dos Estados, Distrito Federal e Municípios (§ 15º) e forma de assunção dos débitos e refinanciamento dos precatórios desses entes (§ 16º).
Já a previsão do artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias trata da liquidação pelo valor real mais juros, em um prazo máximo de 10 anos e permitida a cessão dos créditos, dos precatórios pendentes de pagamento na data da promulgação da Emenda que o alterou, 13 de setembro de 2000, e os que decorram de ações ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, à exceção dos de natureza alimentícia e dos de pequeno valor, prevendo o sequestro de recursos da entidade executada em casos de vencimento do prazo de pagamento ou omissão no orçamento.
É de clareza solar que a extensão da regulamentação dos precatórios e sua colocação no texto constitucional denota, a par da preocupação do legislador, a extraordinária relevância da matéria. Disso decorre que o próximo passo seria obrigatoriamente assegurar o efetivo cumprimento do quanto disposto no texto constitucional, em homenagem ao princípio da segurança jurídica.
4.SEGURANÇA JURÍDICA E PROTEÇÃO À CONFIANÇA
Ensina SILVA (2011. p. 433), dentro da temática da “estabilidade dos direitos subjetivos”, referindo-se “à sucessão de leis no tempo”, que é necessário “assegurar o valor da segurança jurídica”.
O autor define segurança jurídica como sendo o “conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida”. Dessa lição, de onde se extrai a necessidade de se respeitar o limite temporal das leis, assegurando o cumprimento do quanto nelas estabelecido, outra questão de grande importância exsurge: a certeza relativa de que as relações realizadas sob o império da lei devem ser respeitadas.
A ideia de segurança, de natureza objetiva, desagua na ideia de confiança, de caráter mais particular. Ainda que não expresso, essa ideia repousa no princípio da proteção à confiança.
A importância de tais princípios é tamanha que foram de há muito considerados elementos constitutivos do Estado de Direito, como ensina com clareza solar CANOTILHO (2000, p. 256):
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos acto.
Calculabilidade e previsibilidade dos efeitos jurídicos das normas e dos atos são, dessa arte, comuns aos sistemas democráticos, baseados no valor dado ao respeito ao direito de propriedade, ao cumprimento dos contratos e das leis, bem como das decisões judiciais. É a relativa certeza dessa estabilidade que leva o cidadão a “assinar” o contrato social de ROUSSEAU.
5. INTERVENÇÃO
A intervenção é a medida cabível quando feridos os chamados princípios constitucionais sensíveis, definidos por MIRANDA (1970, p. 254) como sendo “aqueles cuja inobservância desencadeia a intervenção federal nos Estados componentes da federação”.
O instituto da intervenção é previsto na Constituição da República, e tem por objetivo a preservação do pacto federativo – e da própria existência da Federação -, mediante uma supressão temporária e taxativamente definida da autonomia dos Poderes Executivos estaduais e municipais, a exemplo dos incisos I (manter a integridade nacional) e II (repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra) do artigo 34 da CRFB.
Sendo medida de exceção – a regra é a autonomia -, é somente cabível nos casos definidos no texto constitucional, e sua aplicação deve ser sempre interpretada de maneira restritiva.
A intervenção foi consagrada nas Constituições Republicanas por ser elementar ao federalismo, protegendo sua própria integridade, como se depreende da leitura do artigo 34 da CRFB, podendo ocorrer quando a União interfere nos Estados, Distrito Federal e Municípios localizados em território Federal (Artigos 34 e 35 da CRFB) e quando os Estados intervêm em seus municípios (Art. 35, CRFB).
Para efeito do presente trabalho, importa destacarmos o quanto insculpido nos incisos V, a; VI e, por corolário, o inciso VII, b, do artigo 34, abaixo transcritos:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - ....
...
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
...
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
...
b) direitos da pessoa humana;
....
Assim, suspenso o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, a Constituição prevê a intervenção como meio hábil a reorganizar as finanças da unidade da federação que assim agiu (CRFB, art. 34, V, a).
6.DÍVIDA FUNDADA E PRECATÓRIO
Estabelecidas tais premissas, cumpre noticiar que o conceito de dívida fundada é jurídico-legal, disposto no artigo 98 da Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964, e são “os compromissos de exigibilidade superior a doze meses, contraídos para atender a desequilíbrio orçamentário ou a financeiro de obras e serviços públicos”.
Essa definição foi complementada pelo artigo 115, § 2º do Decreto 93.872/86, que declara ser a dívida fundada a que
compreende os compromissos de exigibilidade superior a 12 (doze) meses contraídos mediante emissão de títulos ou celebração de contratos para atender a desequilíbrio orçamentário, ou a financiamento de obras e serviços públicos, e que dependam de autorização legislativa para amortização ou resgate.
Por derradeiro, essa definição é concluída pelo § 7º do artigo 30 da Lei Complementar nº 101/00, que estabelece estarem compreendidos no âmbito da dívida fundada “Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites”.
7.O STF E A INTERVENÇÃO PELA RECUSA DO PAGAMENTO DE PRECATÓRIOS
Estando os precatórios judiciais expressamente inseridos no conceito de dívida fundada pelo § 7º do artigo 30 da Lei Complementar nº 101/00 e, consectariamente, passíveis de ensejar a intervenção, não tardaram as recusas ao seu adimplemento chegarem ao Supremo Tribunal Federal.
Dentre as diversas intervenções requeridas e julgadas, destacamos a IF nº 164-1/SP por conta da forma abrangente com que a questão fora enfrentada.
A ementa daquele julgado dá a exata dimensão da posição que até hoje perdura no Supremo Tribunal Federal, consubstanciada, em suma, no indeferimento da intervenção quando não comprovado atuação dolosa e deliberada com finalidade de não pagamento:
EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6.6 Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido.
(STF, IF nº 164-1/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 14.11.2003)
Quanto ao julgado, é interessante notar que o Ministro Marco Aurélio se referiu a voto de sua lavra no julgamento da IF nº 2.953-8, onde teve o cuidado de demonstrar à Corte a dimensão e importância da questão, relacionando quantos processos existiam no STF à espera do deferimento de intervenção por conta da recusa ao pagamento de precatórios. Não era, já naquela época, pouca coisa:
Alagoas - 1 processo;
Ceará - 17 processos;
Distrito Federal - 48 processos;
Espírito Santo - 10 processos;
Goiás - 10 processos,
Mato Grosso - 10 processos;
Pará - 11 processos;
Paraná - 10 processos;
Rio de Janeiro - 8 processos;
Rio Grande do Sul - 76 processos;
Rondônia - 2 processos;
Santa Catarina - 111 processos;
São Paulo - 2.822 processos;
Tocantins - 16 processos.
(STF, IF nº 164-1/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 14.11.2003)
Dada a pujança do Estado de São Paulo, o volume de pedidos de intervenção naquele Estado, em comparação com os demais, não chega a causar espanto.
Diferentemente, causa espanto o número de pedidos de medida tão extremada, sinalizando a contumácia do Estado em não honrar seus compromissos.
Voltando ao julgado apontado como paradigma, houve oposição entre os ministros Marco Aurélio, de um lado; e Gilmar Mendes e Celso de Mello de outro, sendo esse último o vencedor, por maioria, indeferindo a intervenção.
A linha de pensamento do Ministro Marco Aurélio, a favor da intervenção, baseou-se em percuciente análise da gênese da questão, de criação tendenciosa, não descuidando do direito reconhecido em sentença transitada em julgado, culminando seu voto na imperiosa necessidade de se manter a ordem jurídica.
Assim é que reconhece o ministro que “A insolvência dos Estados da Federação é flagrante. Nem por isso tem-se como aberta a porta ao menoscabo dos princípios insertos na Carta de 1988”, e que
Ao Estado-juiz, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, cumpre, em razão de compromisso maior - e a história é uma cobradora infatigável - zelar pela intangibilidade da ordem jurídico-constitucional, pouco importando que, assim o fazendo, seja incompreendido. É de se ter presentes as palavras de Calamandrei, citado por Edgar de Moura Bittencourt em “O Juiz”, segundo as quais há mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto para salvaguardar as aparências de justiça. Os incautos, os míopes, os pobres de espírito democrático, não esperem do Supremo Tribunal Federal atitude acomodadora, por mais convidativa que lhe seja a quadra, já que se afigura, na concepção da Carta da República, como o Juiz Maior da Federação, não se lhe sendo opostos óbices ao cumprimento do dever constitucional de assegurar a intangibilidade da ordem jurídica.
A posição do Ministro Marco Aurélio pela mantença da ordem jurídica não comporta desvios, como se depreende da parte final de seu voto, agora de volta à IF 164/SP, merecendo destaque a parte final, que grifamos:
Da mesma forma, descabe agasalhar o elemento subjetivo, ou seja, a óptica segundo a qual não basta o simples descumprimento de decisão judicial para ter-se como aberta a via da intervenção, sendo necessário demonstrar a culpa ou o dolo na ausência de liquidação do precatório. Essa condição é estranha à ordem jurídica, mesmo porque não é crível que, havendo numerário para o pagamento, deixe a pessoa jurídica de direito público de implementá-lo. Prevalece o critério objetivo, o não-cumprimento da ordem judicial, a inobservância do título executivo judicial, pouco importando saber a causa. Entendimento diverso implica, diante de definições políticas de gastos, ofensa ao primado do Judiciário, à certeza da valia dos julgamentos. O Estado vê-se sempre diante de dificuldades de caixa, sendo presumível, assim, a contumácia no descumprimento das obrigações pecuniárias estampadas em sentença.
É como voto.
Doutra banda, a posição dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, vencedores, tem por supedâneo a necessidade da comprovação da ausência de dolo e vontade deliberada de não efetuar o pagamento do precatório, e a premissa de que, para a efetividade da intervenção, deve existir a possibilidade material para o interventor resolver a situação como pressuposto para o deferimento da intervenção.
O Ministro Gilmar Mendes se referiu a seu voto proferido na IF-2915/SP, o qual integrou ao seu voto na IF-164/SP, onde pugnou pela relativização dos direitos fundamentais propugnada por ALEXY (2011), invocando para tanto o princípio da proporcionalidade, também chamado por esse último como “proibição do excesso”.
Raciocinando no sentido de que a proporcionalidade deve ser utilizada para dirimir conflitos entre princípios constitucionais, ancorado na prevalência da mantença de um Chefe do Executivo democraticamente eleito quando não comprovado o dolo no inadimplemento, segue o Ministro Gilmar Mendes por um raciocínio que, da mesma forma, evita a intervenção quando sua implementação não poderia ser levada a efeito por falta de condições materiais:
Com efeito, não se pode exigir o pagamento da totalidade dos precatórios relativos a créditos alimentares sem que, em contrapartida, se estabeleça uma análise sobre se tal pagamento encontra respaldo nos limites financeiros de um Estado zeloso com suas obrigações constitucionais. Tanto é verdade que, ainda que ocorra urna intervenção no Estado de São Paulo, o eventual interventor terá que respeitar as mesmas normas constitucionais e limites acima assinalados pelo referido Estado, contando, por conseguinte. com apenas 2% das receitas liquidas para pagamento dos precatórios judiciais. Ao interventor também será aplicável a reserva do financeiramente possível.
Com base nessa argumentação, Gilmar Mendes assim define seu voto:
Desse modo, enquanto o Estado de São Paulo se mantiver diligente na busca de soluções para o cumprimento integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes os pressupostos para a intervenção federal ora solicitada. Em sentido inverso, o Estado que assim não proceda estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judicial, atitude esta que não encontra amparo na Constituição Federal.
Indefiro, pois, o pedido.
O Ministro Celso de Mello, por sua vez, concorda com a necessidade de se respeitar as decisões judiciais, mas admite a relativização dessa necessidade, como se depreende de seu voto:
o dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornáve1 obrigação institucional a que não se pode subtrair, sem justa razão, o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República, consoante esta Suprema Corte já teve o ensejo de advertir (RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).
Alfim indefere o pedido, sob o argumento de que
Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento, na execução de ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução" (IF 20/MG, Rel. Min. NELSON HUNGRIA, "in" Arquivo Judiciário, vol. 112/160-161 - grifei).