5 CONSTITUIÇÃO ESTADUAL
5. 1 DIFERENÇAS ENTRE NORMAS DE IMITAÇÃO E NORMAS DE REPRODUÇÃO
A estruturação de uma Constituição Estadual, em razão da essência do sistema federativo, é modelada pelas normas constitucionais federais. Por consequência, o constituinte estadual não poderá desvirtuar o tratamento dispensado pela Lei Fundamental, infringindo os princípios por ela esculpidos, seja expressa ou implicitamente, sob pena de violação da supremacia da Constituição Federal.
Tal regra se aplica a todas as espécies de normas que compõem a Carta Estadual, ou seja, deve ser observada tanto pelas chamadas normas de imitação, quanto pelas denominadas normas de reprodução.
Segundo Raul Machado Horta[6], estudioso de maior referência no assunto, as normas de reprodução diferenciam-se substancialmente das normas de imitação. As primeiras são aquelas que compulsoriamente se inserem no texto constitucional estadual, como consequência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros. A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do Estado, por um processo de transplantação. Assim, as normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior. Diferentemente, as normas de imitação traduzem a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional, ou seja, pertencem à autonomia legislativa do Estado-membro. Estas exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior.
Em suma, as normas de imitação são efetivamente normas estaduais, já que a Constituição Federal as coloca sob a esfera de competência legislativa do Estado-membro. Sua reprodução em idênticos termos no âmbito estadual não lhe desnatura. Sendo norma estadual, o parâmetro de controle é estadual e a jurisdição a respeito da constitucionalidade em relação a essas normas só pode ser exercida pelo Tribunal de Justiça, não cabendo nem mesmo a interposição de recurso extraordinário à jurisdição constitucional federal, como acontece com as normas de reprodução, conforme será analisado a seguir, valendo a decisão do referido tribunal como definitiva na matéria.
Com base na respectiva distinção entre normas de imitação e normas de reprodução, percebe-se que a questão tormentosa acerca do assunto reside nestas últimas, já que surge o problema acerca de sua verdadeira natureza e eficácia no âmbito da jurisdição constitucional estadual. Melhor dizendo, nasce a dúvida se tal classe de normas, por ser mera reprodução obrigatória de dispositivos constitucionais federais, pode ser utilizada como parâmetro de controle pelo Tribunal Estadual ou, ao revés, só o Supremo Tribunal Federal tem competência para analisá-las.
Diante disto, e já com a breve estruturação delimitada da atual jurisdição constitucional estadual, está-se preparado para enfrentar o aprofundamento quanto à verdadeira eficácia dessas normas de reprodução obrigatória no controle de constitucionalidade estadual.
6 NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA
6. 1 POSICIONAMENTO INICIAL DO STF – RCL. 370-1/MT
A primeira definição dada pela Suprema Corte, ao se defrontar com a questão do controle de constitucionalidade estadual frente às normas de reprodução obrigatória, ocorreu com o julgamento da Reclamação nº. 370-MT, ajuizada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Nesta ação, era sustentado pela reclamante que o processamento de uma ADI perante o Tribunal de Justiça daquele Estado-membro implicaria usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, dado que a norma utilizada como parâmetro na Constituição Estadual limitava-se a reproduzir normas da Constituição Federal.
Acatando os fundamentos de tal reclamação, o Supremo afirmou que realmente faleceria aos Tribunais de Justiça estaduais competência para conhecer de representação de inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal em face de parâmetro (formalmente) estadual, mas substancialmente integrante da ordem constitucional federal. Em outras palavras, considerou que tais normas de reprodução eram eminentemente federais, de modo que a lei questionada estaria, na verdade, ofendendo a própria Constituição Federal, e não a Estadual. O Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, explanou que "as normas de reprodução só aparentemente são normas estaduais; a reprodução na Constituição Estadual de normas constitucionais obrigatórias, em termos estritamente jurídicos, é ‘ociosa’. Não obstante a forma de proposição normativa do seu enunciado, vale por simples explicitação da absorção compulsória do preceito federal, essa, a norma verdadeira, que extrai força de sua recepção pelo ordenamento local, exclusivamente, da supremacia hierárquica absoluta da Constituição Federal”. [7]
Portanto, afere-se que a Suprema Corte, através de seu posicionamento inicial, considerou as normas de reprodução obrigatória simples explicitação da absorção compulsória do preceito federal. Somente caberia a ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça na hipótese da lei questionada relacionar-se aos dispositivos autônomos da Carta Estadual (normas de imitação).
Ocorre, porém, que, em posterior julgamento, o Supremo Tribunal modificou diametralmente seu entendimento acerca do assunto, afirmando a possibilidade de ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual, mesmo se tratando de normas de observância obrigatória.
6. 2 POSICIONAMENTO ATUAL DO STF – RCL. 383/SP
O precedente consubstanciou-se com a Reclamação nº. 383, julgada em 10.06.1992, cujo acórdão da lavra do Ministro Moreira Alves foi assim ementado: “Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente”. [8]
Dessa forma, foi fixado o entendimento a respeito da matéria, reconhecendo a competência dos Tribunais de Justiça para julgar casos de inconstitucionalidade reflexa, sem por isso abdicar de sua própria competência nesses mesmos casos. Assim, através do novo entendimento, quando houver uma suposta ofensa a normas que seriam consideradas “de reprodução”, em que o parâmetro de controle é evidentemente a Constituição Federal, que apenas se repete na Estadual, cabe ao Tribunal de Justiça do Estado exercer sua jurisdição e manifestar-se a respeito da inconstitucionalidade alegada.
Passou-se a entender neste sentido, haja vista serem os Estados-membros entidades autônomas, bem assim terem recebido essa competência para controlar as leis que afrontem suas Constituições locais do texto da própria Constituição Federal, sem qualquer exceção.
Atualmente, esse ainda é o posicionamento preconizado perante o Supremo Tribunal Federal, conforme se pode denotar através de um recentíssimo julgamento proferido na Reclamação nº. 4432/TO, publicada no DJU de 10/10/2006. [9]
6.2.1 Cabimento de recurso extraordinário
De acordo com o texto da ementa acima transcrito (Rcl. 383/SP), afere-se que, além do Pretório Excelso ter admitido a competência dos Tribunais Estaduais para julgarem uma ação direta com base em normas de reprodução – nos termos já delineados -, permitiu-se, outrossim, a possibilidade de interposição de recurso extraordinário, caso a interpretação adotada pelo Tribunal de Justiça de tais dispositivos contrarie o sentido ou o alcance da Constituição Federal. Este cabimento é embasado no artigo 102, inciso III, alíneas a ou c, conforme o caso.
Diferentemente do que ocorre com o controle de constitucionalidade estadual frente às normas de imitação, em que a competência para apreciar a ADI é exclusiva do Tribunal de Justiça, o controle baseado nas normas de reprodução obrigatória dá ensejo ao reexame da questão de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, verifica-se que a jurisdição constitucional para esta classe de normas não se esgota com o pronunciamento do Tribunal local.
Não poderia ser outro o posicionamento adotado, uma vez que, se existem princípios de reprodução obrigatória a serem observados pelo Estado-membro, não só a sua positivação no âmbito do ordenamento jurídico estadual, como também a sua aplicação por parte do Judiciário local pode-se revelar inadequada, desajustada ou incompatível com a ordem constitucional federal. Desta feita, não há como deixar de reconhecer a possibilidade de que se submeta a controvérsia constitucional estadual ao Supremo, mediante recurso extraordinário.
Não há dúvida, pois, de que será cabível o recurso extraordinário contra a decisão do Tribunal de Justiça que, sob pretexto de aplicar o direito constitucional estadual, deixa de aplicar devidamente a norma de reprodução obrigatória por parte do Estado-membro.
É interessante notar, a mais disso, que a decisão proferida em sede de recurso extraordinário no Supremo Tribunal, a qual implica o reconhecimento da procedência ou da improcedência da ação direta proposta no âmbito estadual, será igualmente dotada de eficácia erga omnes, na medida em que os efeitos produzidos por um recurso interposto devem ter a mesma abrangência que se é alcançada com a decisão recorrida. Assim já decidiu a Suprema Corte:
“A decisão em recurso extraordinário tem eficácia ‘erga omnes’, por se tratar de controle concentrado ainda que a via do recurso extraordinário seja própria do controle difuso, eficácia essa que se estende a todo o território nacional” (RE 187.142 – RJ, rel. Min. Ilmar Galvão, 13.08.1998).
Diante disto, é visível esta clara peculiaridade na situação de inevitável convivência entre os sistemas difuso e concentrado de controle de constitucionalidade no direito brasileiro.
Por outro lado, há de se analisar a hipótese de ausência de interposição de recurso extraordinário pelo interessado (recurso voluntário) que, aliás, é uma das grandes preocupações de alguns doutrinadores quando se reflete acerca do controle de constitucionalidade estadual frente às normas de reprodução.
Tendo em vista a não interposição daquele, duas vertentes se abrem: a primeira, que não oferece quaisquer discussões, aparece com a improcedência da ação direta estadual, em que, consequentemente, declara-se a constitucionalidade da norma impugnada; já a segunda, ao revés, surge com a procedência da ação direta, cuja decisão reconhece a inconstitucionalidade da lei estadual ou municipal atacada.
Na primeira suposição, ou seja, quando a decisão do Tribunal de Justiça for pela improcedência da ação - o que vale dizer que a lei municipal ou estadual foi tida como constitucional -, conquanto tenha aquela também eficácia “erga omnes”, essa eficácia se restringe ao âmbito da Constituição Estadual, ou seja, a lei então impugnada não poderá mais ter sua constitucionalidade discutida em face da Constituição Estadual, o que não implicará que não possa ter sua inconstitucionalidade declarada, em face da Constituição Federal, inclusive com base nos mesmos princípios que serviram para a reprodução. Isso se explica, tendo em vista que o parâmetro de controle utilizado por cada Tribunal para arguição de inconstitucionalidade é diverso, conforme já elucidado em capítulo anterior (Cap. 2.2).
Em contrapartida, na segunda suposição, a ausência de interposição de recurso extraordinário pelo interessado implica o trânsito em julgado de uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de natureza desconstitutiva. Em outras palavras, acarreta a retirada da norma impugnada do ordenamento jurídico. Neste diapasão, o Supremo Tribunal Federal, haja vista não existir mais eventual norma viciada para servir de objeto em uma futura ação direta, estará impossibilitado de analisar a constitucionalidade ou não de tal norma, por óbvio, com base tão-somente no seu parâmetro de controle, que é a Constituição Federal. Com certeza, seria ilógico aferir-se a inconstitucionalidade de lei inexistente.
E é justamente nesse ponto que muitos estudiosos do assunto criticam a possibilidade dos Tribunais de Justiça julgar representação de inconstitucionalidade baseados em dispositivos estaduais que são mera reprodução de dispositivos da Constituição Federal. Fundamenta-se, primordialmente, a usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, que foi incumbido pela própria Carta Federal de ser seu exclusivo guardião. Como se percebe, estes críticos ao novo posicionamento adotado pela Suprema Corte após a reclamação 383/SP são adeptos ao posicionamento inicialmente adotado por este tribunal, nos termos da reclamação 370/MT.
Em suma, verifica-se que os adeptos à primeira corrente encontram-se preocupados em assegurar o princípio basilar da supremacia da Constituição Federal, bem assim o papel exclusivo do Supremo Tribunal Federal de guardião da Lei Fundamental. E, por outro lado, os adeptos ao segundo entendimento, também almejando não arranhar tais regras fundamentais, preocupam-se em garantir, ainda, a autonomia pertencente aos Estados Federados, que foi determinada pela própria Carta Fundamental.
7. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRENTE ÀS NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA
7.1 EFICÁCIA DAS NORMAS DE REPRODUÇÃO X SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE
Na presente altura da exposição do tema, em que já foi exibida, em um primeiro momento, breve explanação geral do controle de constitucionalidade estadual e, em seguida, apresentados os antagônicos posicionamentos reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da eficácia das normas de reprodução obrigatória, é quase que automático o surgimento da seguinte questão: qual dessas posições se coaduna melhor com o atual ordenamento jurídico? Ou seja, qual que realmente está em consonância ao sistema constitucional vigente, preservando o princípio da supremacia da Constituição Federal? Será aquela que considera esses dispositivos de reprodução como normas eminentemente federais e, portanto, tratadas como ociosas, ou aquela posição que defende a autonomia dos Estados-membros para julgarem uma ação direta inclusive com base nessas normas de reprodução, que são também estaduais?
Atualmente, quase a totalidade das normas inseridas nas Cartas Estaduais é de absorção compulsória, tendo em vista o modelo analítico da Constituição adotado entre nós. Sendo assim, já se vislumbra que, com base na orientação esposada inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal, ficaria o direito constitucional estadual – substancial – reduzido, talvez, ao preâmbulo e às cláusulas derrogatórias, o que denota maior relevância para solucionar o presente impasse. De maneira ilustrativa, pode-se destacar o sistema constitucional tributário, uma vez que, além dos princípios gerais, aplicáveis à União, aos Estados e Municípios (artigos 145-149), das limitações ao poder de tributar (artigos 150-152), contempla o texto constitucional federal, em seções autônomas os impostos dos Estados e do Distrito Federal (Seção IV - artigo 155) e os impostos municipais (Seção V - artigo 156). Como se vê, é por demais estreito o espaço efetivamente vago deixado ao alvedrio do constituinte estadual.
A análise de cada um desses posicionamentos é de suma importância, porquanto a adoção de um ou de outro leva a consequências totalmente diversas. E, embora a questão, nos últimos anos, aparente encontrar-se pacificada dentro do próprio Supremo, ainda se denotam discussões doutrinárias quanto à verdadeira eficácia das normas de reprodução obrigatória, constantes das Constituições Estaduais.
Entretanto, socorrendo-se com o exame do sistema constitucional vigente, não é ardiloso concluir que as normas de reprodução obrigatória são verdadeiramente normas estaduais e devem servir de parâmetro de controle de constitucionalidade pelo próprio Tribunal de Justiça. O fato de ser obrigatória a sua observância não as tornam, por isso, ineficazes. Senão, veja-se.
O ministro Sepúlveda Pertence realçou, em seu voto articulado na Reclamação nº. 370-1/MT, não ser possível aos Tribunais de Justiça levar adiante tal espécie de controle sem graves prejuízos à autoridade da jurisdição constitucional do Supremo, haja vista que essas normas “estadualizadas”, constantes das Cartas Estaduais, são mera transplantação das normas federais – essas sim com total eficácia jurídica -, não passando aquelas de normas “ociosas”. Ressaltou que, aceitando tal hipótese como viável, poderia ocorrer de um acórdão de algum Tribunal de Justiça, proferido num desses processos, vir a transitar em julgado sem que a questão fosse levada ao STF, de tal modo que, à vista da eficácia erga omnes do controle concentrado, ficaria o Supremo vinculado à decisão local, numa surpreendente e inexplicável inversão da ordem hierárquica da Federação.
Em outras palavras, caso não se interpusesse recurso extraordinário para o enfrentamento da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal, acabaria sendo atribuída a um dos poderes do Estado-membro a função política de guardião da Constituição Federal. Naturalmente, o controle de constitucionalidade estadual, criado pelo constituinte federal, nunca poderia estar subtraído à palavra derradeira do Supremo Tribunal Federal, como penhor da indiscutível supremacia desta Corte no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
Superficialmente, os fundamentos apresentados pela opinião contrária à viabilidade do controle de constitucionalidade frente às normas de absorção compulsória pelos tribunais locais parecem ser bem sedutores, convincentes, todavia, induzem o intérprete a erro. Basta uma análise mais aprofundada da questão, levando-se em consideração o sistema constitucional como um todo, para aferir que tais normas inseridas compulsoriamente nas Cartas Estaduais não podem ser vislumbradas como “ociosas”. Na verdade, nenhuma norma dentro do ordenamento jurídico pode ser considerada como tal, na medida em que seria um absurdo se falar na criação de normas ociosas.
A inconsistência desta opção inicial adotada pelo Supremo Tribunal Federal é nítida. Por óbvio, caso essas normas de reprodução fossem realmente inócuas, não haveria necessidade da realização de tal transplantação, já que não seriam sequer jurídicas. São elas sim eficazes no ordenamento jurídico estadual, permitindo que aí atuem como normas eminentemente estaduais, nos limites da competência dos Estados de aplicá-las e fazê-las respeitar.
A própria Constituição Federal, em seu artigo 125, §2º, deu aos tribunais locais competência para julgar ações diretas genéricas de inconstitucionalidade tendo como parâmetro a Constituição Estadual e como normas impugnáveis as leis estaduais ou municipais, sem qualquer restrição − a não ser a que impede as Constituições Estaduais de instituírem um só órgão como legitimado para a ativação da fiscalização abstrata. Dessa forma, não seria lícito ao Supremo ver distinções onde o constituinte não o fez. Seria inaceitável que a aplicação de uma norma constitucional tivesse o condão de transformar outra, de igual nível, em letra morta. Portanto, compreender diversamente, implicaria reduzir a nada a literalidade do referido dispositivo constitucional.
Por outro lado, caso as normas de reprodução fossem realmente inócuas, ter-se-ia de reconhecer o aniquilamento da ação interventiva estadual nos municípios, consagrada no inciso IV do artigo 35 da Constituição Federal. Assim, quando o Tribunal de Justiça desse provimento à representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, seria inviável, à luz do entendimento segundo o qual as normas de reprodução obrigatória, ao serem incorporadas pelo Estado-membro à sua Constituição, não deixam de ser norma constitucional federal, pois não se pode excluir o fato de que a maioria dos "princípios indicados na Constituição Estadual" seriam, na verdade, os princípios também indicados na Constituição Federal como motivadores de intervenção da União nos Estados. Em outras palavras, criar-se-ia um paradoxo: o Estado-membro não poderia intervir no município, por exemplo, para assegurar os direitos humanos (CF, art. 34, VII, "b"), quando a entidade comunal editasse uma lei contrária a esses direitos, porquanto isso dependeria de uma ação direta interventiva, de competência do Tribunal de Justiça, na qual se argumentaria com a inconstitucionalidade da lei municipal em face da Carta Estadual, no ponto em que essa repetia, compulsoriamente, uma norma da Constituição Federal, de sorte que o controle de constitucionalidade, em última análise, seria da lei municipal em face da Constituição Federal, e o que era para ser uma intervenção do Estado no Município provavelmente sempre culminaria numa intervenção da União sobre o Estado, por omissão em rejeitar a violação dos direitos humanos pela entidade municipal.
A mais disso, pretender que a reprodução dessas normas federais no texto constitucional estadual implique sua descaracterização como parâmetro de controle estadual revela-se assaz perigoso para a própria segurança jurídica. Até porque haveria imensa dificuldade de se identificar, com precisão, uma norma ontologicamente estadual. Se as normas de reprodução obrigatória fossem mesmo normas federais meramente transplantadas, seria imprescindível, em toda representação de inconstitucionalidade estadual − inclusive a interventiva − que a Suprema Corte, previamente, falasse sobre a viabilidade do processamento da ação. Nas palavras do Ministro Moreira Alves, através da RCL 383-SP, “(...) de outra parte, ter-se-ia de admitir que qualquer ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição Estadual daria margem a um julgamento preliminar do Supremo Tribunal Federal, por via de reclamação, para verificar-se a natureza das normas da Constituição Estadual − se normas estritamente estaduais, ainda que de imitação, ou se normas de reprodução de preceitos constitucionais federais − passíveis de ser confrontadas com o ato normativo impugnado, a fim de se decidir se a ação cabível seria contra a Constituição Estadual, ou se verdadeiramente contra a Constituição Federal.” (RTJ 147/444).
Verifica-se, desta feita, a impossibilidade de juízo de delibação do Supremo sobre a competência dos tribunais locais em todas as representações de inconstitucionalidade perante eles ajuizadas.
Como contundente demonstração, ainda, de que as normas de reprodução possuem eficácia plena no âmbito estadual, há de se ater que a repetição de um conteúdo normativo não faz, tão-só por isso, com que a norma reproduzida estenda a sua eficácia além de seus limites naturais. Para provar a incongruência da tese de que a reprodução de algumas regras constitucionais federais, por ser obrigatória, afastaria a eficácia das normas locais, bastaria pensar no fato de que também é comum que leis federais reproduzam dispositivos da Constituição Federal, sendo que nem por isso se nega que caiba recurso especial por violação a leis que repetem dispositivos da CF. Ou seja, mesmo repetidas, as normas devem ser consideradas de eficácia plena no seu âmbito de atuação, até para permitir a utilização dos meios processuais de tutela desse âmbito (recurso especial, ação direta de inconstitucionalidade estadual).
Nestes termos, enfatiza-se que normas de conteúdo igual, ainda que emanadas de fontes diversas, por não serem incompatíveis, não devem se excluir reciprocamente. Na verdade, a norma repetida enseja a "dúplice garantia" jurisdicional: da União e dos Estados. Como é cediço, o direito federal só prevalece sobre o direito local, segundo a regra do art. 24, §4º, da Constituição Federal ("a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário"), interpretada a contrario sensu, quando for incompatível com ele, não quando tiver o mesmo conteúdo.
Essas observações todas, repita-se, servem para mostrar a inadmissibilidade das consequências da tese que se examina, que não é exato pretender-se que as normas constitucionais estaduais que reproduzem as normas centrais da Constituição Federal sejam inócuas e, por isso, não possam ser consideradas normas jurídicas. Essas normas são normas jurídicas, e têm eficácia no seu âmbito de atuação, até para permitir a utilização dos meios processuais de tutela desse âmbito. Elas não são normas secundárias que correm necessariamente à sorte das normas primárias, como sucede, por exemplo, com o regulamento, que caduca quando a lei regulamentada é revogada. Em se tratando de norma ordinária de reprodução ou de norma constitucional estadual da mesma natureza, por terem eficácia no seu âmbito de atuação, se a norma constitucional federal reproduzida for revogada, elas persistem como normas jurídicas que nunca deixaram de ser. Os princípios reproduzidos, que, enquanto vigentes, se impunham obrigatoriamente por força apenas da Constituição Federal, quando revogados, permanecem, no âmbito de aplicação das leis ordinárias federais ou constitucionais estaduais, graças à eficácia delas resultante.
Portanto, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 383 veio restabelecer a melhor doutrina, assentando que, posta a questão da constitucionalidade da lei estadual ou municipal em face da Constituição do Estado, tem-se uma questão constitucional estadual.
Contudo, realmente, há de se admitir que, numa análise sucinta, não é isenta de dificuldades a adoção desse entendimento até aqui defendido, segundo o qual a autonomia dos Estados-membros em matéria de exercício da jurisdição constitucional abstrata não pode ser restringida, ainda quando esteja em jogo norma paradigma local de conteúdo idêntico a texto da Constituição Federal.
À vista da ausência de regras de colisão entre as jurisdições constitucionais federal e estadual, o principal risco dessa nova postura, diga-se, liberal, do Supremo Tribunal, é que os Tribunais de Justiça venham a julgar válida uma lei local (estadual ou municipal) em face da Constituição Estadual, no ponto em que esta reproduz, cogentemente, regra da Constituição Federal, e, por obra de inércia dos legitimados, não haja recurso algum no processo e, por consequência, o assunto não chegue ao Supremo Tribunal Federal, ficando este, mercê da eficácia erga omnes do controle abstrato, privado, ainda que parcialmente, de sua especial condição de guardião máximo da Constituição Federal.
A objeção é séria, realçada inclusive pelo Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto na Reclamação 370-1, conforme exposto, como também no julgamento do RE 92.169-SP (RTJ 103/1085), em que o próprio Ministro Moreira Alves rejeitou a possibilidade de que a jurisdição constitucional ficasse ao arbítrio da parte, que poderia recorrer ou não no processo de controle objetivo de constitucionalidade que se quis instituir no Estado de São Paulo, sem previsão na Constituição Federal.
Esta objeção, porém, não escapou à análise deste ministro na referida RCL 383-SP, nem pareceu a ele ser motivo suficiente para o acanhamento da jurisdição constitucional dos Estados-membros proposto na RCL 370-1-MT. Isso porque, a se acolher o entendimento − limitador da autonomia estadual − de que o controle de constitucionalidade abstrato nos Estados-membros ficaria restrito aos casos em que o paradigma invocado não fosse norma de reprodução obrigatória, nada garantiria que os tribunais locais não iriam avançar, contra o entendimento do Supremo, sobre matérias que lhes seriam vedadas, e, mesmo nesses casos, seria bem possível que não fosse apresentada reclamação à Corte Suprema, e, por consequência, que o acórdão local, com eficácia erga omnes, transitasse em julgado, paralisando a jurisdição constitucional do Supremo, de modo que aquilo que se quis evitar com o pesado ônus do retraimento quase absoluto da jurisdição constitucional estadual, ainda assim não estaria garantido. "Assim, − escreveu o Ministro Moreira Alves − se o único inconveniente de uma tese é também inconveniente da outra, que, além dele apresenta vários outros, pelas consequências inadmissíveis que provoca, parece insustentável restringir a autonomia constitucional dos Estados que a Constituição não restringe, e, com base no inconveniente comum, sustentar que correta é a orientação que, além dele − que é o único da outra −, apresenta diversos outros" (RTJ 147/451).
Respeitando o entendimento do eminente ministro, a verdade é que não existe nem esse inconveniente comum. Mesmo na hipótese de não-interposição de recurso algum pela parte, que seria este chamado grave inconveniente da posição mais liberal, o Supremo não fica privado de sua competência. Realmente, quando o tribunal local declara a norma estadual ou municipal incompatível com a Constituição do Estado, se não houver recurso, a questão fica definitivamente preclusa e a decisão do Tribunal de Justiça será soberana. Mas o motivo é bem outro, diferente da paralisação da jurisdição constitucional do STF: é que as normas locais, por sua posição duplamente subordinada dentro do sistema normativo, para serem válidas, precisam estar em sintonia tanto com o ordenamento estadual quanto com o federal. A ausência de qualquer um desses fundamentos torna insubsistente essas normas. Assim, parece claro que se um desses fundamentos foi declarado inexistente e a decisão transitou em julgado, a discussão sobre se o outro fundamento persiste ou não é irrelevante, na medida em que, do ponto de vista prático, não trará consequência alguma, sabido como o outro pressuposto de validade − também indispensável − declaradamente já não existe.
Ainda hoje, conquanto pareça estar pacificada essa acepção acerca da eficácia estadual das normas de reprodução, há quem sustente ser o posicionamento inicial do STF o mais coerente, acreditando que a jurisdição estadual, ao realizar o controle frente a essas normas, viola a supremacia da Constituição Federal, e o papel do Supremo de seu guardião exclusivo. Dentre tais defensores encontram-se José Tarcízio de Almeida Melo e Clèmerson Clève. [10]
É de relevante importância ressaltar o nome deste último respeitado doutrinador em tal fase do estudo, na medida em que ele apresenta uma solução, em tese, e de lege ferenda, a ser adotada em nosso sistema para dirimir o referido impasse. Para ele, seria de grande valia a adoção de um “reexame necessário”, dirigido ao Supremo Tribunal Federal, de todas as decisões proferidas pelos Tribunais Estaduais nestas hipóteses de normas de reprodução obrigatória como parâmetro de controle. Destaca, inicialmente, que aquele impasse provém da vinculação do STF à discricionariedade da parte em interpor o recurso extraordinário e, mais que isso, à observância, por esta, de todos os pressupostos constitucionais necessários para o conhecimento de tal recurso, como por exemplo, tempestividade, prequestionamento etc. Por outro lado, acredita que, com o implemento de um reexame necessário, manifestar-se-ia com maior conveniência uma das características principais do controle concentrado de constitucionalidade, que é a não disponibilidade do processo pela parte. Em outras palavras, a ação direta almeja à defesa da ordem jurídica, não perseguindo interesse próprio, nem tampouco buscando a defesa de uma posição jurídica individual.
Ocorre que, na mesma linha de reflexão até então adotada, convém concluir que a adoção desse reexame necessário não se coadunaria com o sistema constitucional vigente, já que supriria totalmente a autonomia dos Estados Federados, levando à falência o próprio controle de constitucionalidade estadual criado pelo constituinte federal originário. Com isso, ao invés de se estar preservando o princípio da supremacia da Constituição Federal, estar-se-á, de forma contrária, violando-o flagrantemente, pois se acabará com o controle estadual que a própria Constituição cria em seu artigo 125, §2º.
Além disso, entender imprescindível o reexame necessário faria, via de consequência, que fosse aplicado também no caso das leis federais que reproduzem normas da Constituição Federal, o que, por óbvio, é totalmente incabível.
Por outro lado, a interposição de recurso extraordinário pela parte não esvazia o controle de constitucionalidade estadual, mantendo, outrossim, a exclusividade do Supremo Tribunal Federal para julgar se a decisão fere a Constituição da República. Melhor dizendo, não há uma aniquilação da jurisdição estadual, porém ela também não terá a última palavra se interposto o recurso extraordinário, uma vez que, conforme já assinalado, não se pode falar de uma separação total das jurisdições estaduais e federal.
Em suma, a adoção do posicionamento sugerido por Clèmerson Clève claramente redundaria no aniquilamento prático do controle concentrado perante os Tribunais de Justiça, uma vez que a quantidade de normas de reprodução obrigatória é tamanha que, rigorosamente, seria difícil encontrar uma situação em que, direta ou indiretamente, o tribunal local não se visse na contingência de interpretar uma norma da Carta Estadual que, substancialmente, fosse também federal. Por derradeiro, considerar as normas de reprodução como ociosas, seria o mesmo que entender que o controle estadual como um todo é ocioso.
E neste diapasão sim é que se pode argumentar pela flagrante violação do princípio da supremacia da Constituição Federal, já que desobedecido um comando seu, que espelha mais uma forma de autonomia dos Estados-membros, ao contrário da suposta usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras, o aniquilamento da jurisdição estadual, consagrada no artigo 125, §2º, da Constituição Federal, significa a verdadeira ofensa ao princípio da supremacia da Constituição. Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal modificou a tempo seu entendimento.