Em matéria de trânsito, a Constituição Federal adotou um modelo de responsabilidade comum, mas diferenciada, entre os entes federados. À União, por exemplo, compete estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação (art. 21, XXI, CF), bem como legislar sobre a política nacional de transportes (art. 22, IX, CF) e sobre trânsito e trasportes de um modo geral (art 22, XI, CF).
Além dessas atribuições, compete a todos os entes, de forma concorrente, a implementação de uma política educacional para a segurança no trânsito (art. 23, XII, CF). Assim, cabe aos Estados legislar sobre questões de interesse regional e aos Municípios sobre a coordenação do trânsito em nível local (art. 30, I, CF).
Baseado neste arcabouço normativo constitucional, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) instituiu o Sistema Nacional de Trânsito (SNT), que foi definido no art. 5º deste diploma da seguinte forma:
Art. 5º O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.
Prosseguindo, o Código de Trânsito Brasileiro tentou coordenar os diversos órgãos que compõem o SNT, estabelecendo as atribuições de cada um em sua respectiva esfera de atuação. Neste sentido, ao tratar do órgão executivo de trânsito no âmbito municipal, o CTB previu uma série de competências, dentre as quais destacam-se algumas de maior relevância:
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;
(...)
V - estabelecer, em conjunto com os órgãos de polícia ostensiva de trânsito, as diretrizes para o policiamento ostensivo de trânsito;
VI - executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;
Analisando estas competências em conjunto com o inciso I, do art. 30, da Constituição Federal, entende-se que o Município, por meio de seu órgão executivo de trânsito, é o ente responsável por fazer cumprir as normas de trânsito, fiscalizando, autuando e sancionando, no âmbito local, aqueles que descumprirem as determinações do CTB.
E estas competências são exercidas concretamente pelo agente de trânsito, o qual foi conceituado no Anexo I, do CTB, como a “pessoa, civil ou policial militar, credenciada pela autoridade de trânsito para o exercício das atividades de fiscalização, operação, policiamento ostensivo de trânsito ou patrulhamento”.
Ou seja, desde que o agente público (militar ou civil) seja credenciado pela “autoridade de trânsito” de âmbito municipal, poderá ele atuar como executor das competências municipais no trânsito.
A expressão autoridade de trânsito, por sua vez, também foi definida legalmente pelo Anexo I do CTB como o “dirigente máximo de órgão ou entidade executiva integrante do Sistema Nacional de Trânsito ou pessoa por ele expressamente credenciada”.
Ainda nessa linha, cumpre esclarecer que o art. 8º, do CTB, foi claro ao prever o seguinte:
Art. 8º. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão os respectivos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários, estabelecendo os limites circunscricionais de suas atuações.
Ou seja, o art. 8º, do CTB, conferiu certa margem de discricionariedade aos Estados, Distrito Federal e Municípios, quando conferiu a eles a faculdade de organizar os órgãos executivos de trânsito e executivos rodoviários para estabelecer os limites de suas atuações. Assim, a competência para determinar qual órgão será considerado, naquela localidade, como a Autoridade de Trânsito cabe unicamente a cada Município.
O único limite a esta discricionariedade é o exercício do poder de polícia por pessoa jurídica de direito privado. É dizer, empresa pública ou sociedade de economia mista de determinado Município não pode aplicar multas por infração de trânsito, embora ainda detenha o poder fiscalizatório e a função de organização e orientação do trânsito.
Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, já decidiu o seguinte:
No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).
As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.
No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção).
Somente o atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.
No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação[1].
Portanto, excluindo essa exceção consagrada pela jurisprudência, poderia o Município – na teoria – definir quaisquer órgãos ou entidades de direito público compenentes de sua organização administrativa para atuar como Autoridade de Trânsito.
Muito se questiona, contudo, se as Guardas Municipais poderiam atuar como essa Autoridade de Trânsito. Relembre-se que essas Guardas possuem matriz constitucional no art. 144, §8º, CF, o qual estabelece que “os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.
Analisando esse dispositivo, verifica-se, em uma primeira leitura, que ele não permite que as Guardas Municipais atuem diretamente na fiscalização do trânsito.
No entanto, a previsão genérica e sintética das competências da Guarda Municipal no §8º, do art. 144, da Constituição Federal, é norma de eficácia limitada e, por esta razão, depende de lei, proveniente do Legislativo Municipal, para produzir efeitos na prática. Além do mais, a expressão “conforme dispuser a lei” confere ao legislador derivado a possibilidade de especificar as atribuições locais das Guardas.
Por essa razão, contrariando a interpretação meramente literal do art. 144, §8º, CF, entendo que seria plenamente possível a aplicação do art. 8º do CTB quando da elaboração da Lei que regulamentar as atribuições da Guarda Municipal.
Explico melhor: quando um Município decidir editar a Lei que definirá as atribuições de sua Guarda, poderá organizá-la de modo a defini-la como a Autoridade de Trânsito, conferindo-lhe os poderes de entidade executiva de trânsito[2].
Isso porque, conforme já entendeu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a Guarda Municipal atua diretamente nas ruas e avenidas do Município, que, por natureza, são considerados bens públicos:
Observa-se que o referido artigo, ao admitir a constituição de Guarda Municipal para a proteção de bens, serviços e instalações municipais, não pretendeu restringir o âmbito de sua atuação apenas à esfera patrimonial, mas também à imaterial, que, no contexto em que foi inserida (segurança pública), engloba a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Ainda, ao dispor sobre proteção a bens, a norma constitucional, tal como apontado pelo ilustre Des. Caetano Levi Lopes, não estabeleceu limitação quanto à natureza dos bens, estando, portanto, nessa esfera de proteção atribuída à Guarda Municipal, incluídos os bens de uso comum do povo, que, nos termos do art. 99, do Código Civil, seriam as ruas, praças, avenidas e congêneres[3].
Sendo assim, cabe enfim verificar se quando as Guardas Municipais atuarem no trânsito poderão ser destinatárias dos recursos arrecadados com as multas aplicadas.
Inicialmente, constata-se que o art. 320, CTB, estabeleceu o direcionamento para a aplicação das receitas advindas das multas de trânsito arrecadas:
Art. 320. A receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito.
Parágrafo único. O percentual de cinco por cento do valor das multas de trânsito arrecadadas será depositado, mensalmente, na conta de fundo de âmbito nacional destinado à segurança e educação de trânsito.
Esclarecendo o que seria cada um dos conceitos previstos no caput do art. 8º, CTB, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) editou a Resolução 191, de 16 de fevereiro de 2006, que prevê no art. 2º inciso III, o seguinte:
Art. 2º Explicitar as formas de aplicação da receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito, prevista no caput do art. 320 do Código de Trânsito Brasileiro:
(...)
III – O policiamento e a fiscalização são os atos de prevenção e repressão que visem a controlar o cumprimento da legislação de trânsito, por meio do poder de polícia administrativa.
Ora, não há dúvidas de que as Guardas Municipais, quando atuantes no trânsito, controlam e fazem cumprir a legislação, tendo em vista que tais atos visam à proteção de bens municipais (ruas, avenidas etc).
Adentrando ainda mais no tema, verifica-se o art. 7º, da Portaria 407, do DENATRAN, estabeleceu uma relação de despesas que se enquadram no conceito de policiamento e fiscalização de trânsito.
O extenso rol numerus clausus do art. 7º, composto de 22 incisos[4], prevê que podem ser destinatárias dos recursos financeiros arrecadados a aquisição, locação, manutenção e aferição de etilômetro, bem como a compra de material e equipamento para policiamento.
Cabe ressaltar que, em momento algum, o art. 7º da Portaria 407 do DENATRAN previu que a receita arrecada poderá ser utilizada para pagamento de despesas remuneratórias com pessoal.
Portanto, conclui-se que as Guardas Municipais, quando definidas em lei como Autoridade de Trânsito, poderão ser destinatárias dos recursos arrecadados com multas de trânsito, nos termos do art. 7º da Portaria 407 do DENATRAN.
Notas
[1] REsp 817.534/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 10/12/2009.
[2] Não se discutirá neste artigo a possibilidade de as Guardas Municipais atuarem de forma repressiva no trânsito, mediante a aplicação de multas. Ressalte-se apenas que o Supremo Tribunal Federal, Min. Marco Aurélio, nos autos do Recurso Extraordinário 637.539, entendeu que “possui repercussão geral a controvérsia acerca da possibilidade de aplicação de multa de trânsito por guarda municipal, tendo em vista o disposto no artigo 144, § 8º, da Constituição da República, cujo rol especifica as funções às quais se destinam tais servidores públicos”.
[3] ADI 1.0000.08.479114-4/000, Rel. Des. Roney Oliveira, DJe 12/03/2010.
[4] Art. 7º São considerados elementos de despesas com policiamento e fiscalização: I - farda e acessórios de fardamento para agentes de trânsito; II - capacitação de autoridades e de agentes de trânsito; III - material e equipamento para policiamento; IV - serviço de apreensão de animais soltos; V - alimentação e tratamento de animais apreendidos e aqueles destinados à atividade de cinotecnia; VI - aquisição e ou locação de imóvel para guarda de veículos e animais apreendidos; VII - equipamento ou instrumento medidor de velocidade fixo, estático ou portátil; VIII - equipamento ou instrumento fixo registrador de avanço de sinal vermelho e de parada sobre a faixa de pedestre; IX - aquisição, locação, manutenção e aferição de etilômetro; X - aquisição, locação, manutenção e aferição de equipamento medidor de transmitância luminosa e de poluição sonora e atmosférica; XI - operação, manutenção e transferência de infraestrutura instalada; XII - aquisição e ou locação de veículos e viaturas – motos, triciclos, quadriciclos, caminhões, reboques, microônibus, minivans, aeronaves – com instalações e ou equipamentos de policiamento e fiscalização; XIII - manutenção e abastecimento da frota operacional; XIV - armazenamento de imagens para controle de infração de trânsito, relativos às notificações de autuação e de penalidade; XV - emissão de notificações de autuação, de penalidade, de hasta pública, de inclusão em dívida ativa e do resultado da defesa da autuação e ou de recursos de infrações de trânsito; XVI - manutenção, conservação e funcionamento da Junta Administrativa de Recursos de Infração – Jari, do Conselho Estadual de Trânsito – Cetran e do Conselho de Trânsito do Distrito Federal – Contrandife; XVII - manutenção, conservação e funcionamento de centros descentralizados de controle operacional de trânsito, postos de fiscalização e policiamento e monitoramento eletrônico viário; XVIII - instalação, operação, manutenção e aferição de balanças; XIX - aquisição, locação, manutenção e configuração de talão eletrônico; XX - tarifas bancárias – arrecadação e cobrança, débito em conta, cartões de débito e crédito, referentes à notificação de penalidade; XXI - diárias e locomoção dos agentes de trânsito em operações de policiamento e fiscalização; XXII - realização de ações conjuntas de fiscalização e policiamento.