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Controle judicial de políticas públicas na área da infância e juventude

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3. CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Expõe-se que a participação social é um importante instrumento de fiscalização da atividade executiva. Entretanto, não é o único. Infere-se que, por influência da doutrina do neoconstitucionalismo, tem ocorrido uma ampliação do controle do Poder Judiciária para a efetivação das políticas públicas, chamada de “judicialização da política”.

O fundamento da judicialização da política reside, assim, no primado da supremacia da Constituição. Exige-se, pois, do administrador que adapte as opções públicas aos objetivos e princípios estabelecidos na Constituição, sendo controláveis as omissões e ações irregulares do poder público[21].

3.1 SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

A tradição positivista, fazendo nítida separação entre direito e moral, utiliza, consoante afirma Castanheira Neves, o seguinte método jurídico: “o legislador cria o direito positivo, o jurista com seu pensamente exclusivamente jurídico conhece-o na sua estrutura lógico-dogmática e aplica-o lógico-formalmente ou lógico-dedutivamente”.[22]

Essa concepção jurídico-formalista ainda ronda a doutrina e a jurisprudência brasileiras, contribuindo para a percepção de que não cabe o controle das políticas públicas pelo Judiciário.

Entretanto, a partir da Constituição de 1988, sob influência das idéias neoconstitucionalistas desenvolvidas após a Segunda Guerra Mundial, instauram-se três idéias fundamentais acerca da aplicação do direito: a supremacia da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova hermenêutica jurídica[23].

Sobre o primeiro ponto, tem-se que as constituições atuais possuem um forte caráter normativo, expressando um conteúdo material de valores e opções políticas que deve ser exercido pelo poderes. Segundo Konrad Hesse “a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”.[24] Significando essa “vontade de Constituição” nada mais do que a vontade de concretização da ordem constitucional.

Dessa maneira, o que se extrai da normativa constitucional não é uma “promessa vã, uma promessa inútil”. É uma resposta normativa à realidade que queremos mudar.[25]

No meio acadêmico, duas correntes – procedimentalista e substancialista - vêm debatendo acerca do papel das Constituições e, conseqüentemente, da maior ou menor possibilidade de controle judicial das políticas públicas.

          A concepção procedimentalista, encabeçada por Habermas, em suma, pressupõe que a Constituição não é uma ordem prévia de valores a serem desvendados pelos juristas, mas sim é um espaço que deve instrumentalizar os meios de participação dos cidadãos, a fim de estes elaborem o destino da comunidade.[26]

          A corrente substancialista, por sua vez, defendida no Brasil por Lênio Streck, compreende que a Constituição traz os valores e as políticas que irão reger a convivência da sociedade, destarte, resta ao Judiciário a função de assegurar a implementação dos dispositivos constitucionais.

Percebe-se, pois, que, pela via substancialista, há uma maior aceitação da atividade judiciária no controle de políticas públicas. Ao realizar o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, o Judiciário acaba por garantir a prevalência da Constituição.

Nesse sentido, a Constituição brasileira de 1988, coerente com as linhas do constitucionalismo contemporâneo, não é um simples instrumento de governo que define competências e organiza processos, mas sim um plano normativo global que pronuncia metas, fins e programas a serem concretizados pelo Estado e pela Sociedade.[27]

3.2 EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

Na seara dos direitos fundamentais, a questão da efetividade vem ganhando extrema importância. Ingo Sarlet aduz que há um enorme “desafio de outorgar à ordem constitucional e, de modo, especial, aos direitos fundamentais nela consagrados sua plena operatividade e eficácia, como condição para sua efetividade”.[28]

José Afonso da Silva ainda é um dos juristas brasileiros mais citados, quando o tema é eficácia. Pare ele, eficácia jurídica “diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica”[29] e a eficácia social da norma refere-se à sua efetividade no plano social. Dessa forma, analisar a efetividade de uma norma significaria medir a extensão em que seu objeto é alcançado, relacionando-se ao produto final.

Aferir, portanto, a efetividade das normas jurídicas, está intimamente relacionada com a aferição da realização do próprio Direito, isto é, a coincidência das prescrições das regras jurídicas com a efetiva subordinação dos fatos a elas. Quanto mais se observa essa efetivação no plano social, mais o Direito cumpre seu intuito.

O jurista Paulo Bonavides, analisando a questão da efetividade das normas constitucionais, entende que um dos maiores problemas do Direito Constitucional da nossa época está “em como juridicizar o Estado Social, como estabelecer e inaugurar novas técnicas e institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos"[30].

Em relação à eficácia jurídica, tem-se que, com a introdução do art. 5º, §1º, na Constituição Federal, todas as normas que veiculam direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata e devem ser observadas pelos aplicadores do Direito, sob pena de haver mandados de injunção e ações de inconstitucionalidade por omissão intentados.

Há de se ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro não faz diferenças entre o regime dos direitos sociais e dos direitos individuais, como acontece, por exemplo, na Constituição Portuguesa[31]. Portanto, o dispositivo acima referido tem igual alcance para os direitos prestacionais e para os direitos de defesa.[32]

Portanto, caso o executivo não cumpra as determinações constitucionais, cabe ao Judiciário, por meio principalmente das ações coletivas, interferir na vida política e administrativa para realização social dos Direitos Fundamentais.

O próprio Supremo Tribunal Federal julgou recentes ações no sentido de efetivação dos direitos fundamentais, principalmente dos direitos sociais. Veja-se parte da ementa da decisão que julgou improcedente recurso extraordinário interposto pelo Município de Santo André, mantendo o pleito do Ministério Público Estadual de São Paulo para a construção de creches e pré-escolas:

E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. (STF. Segunda Turma. RE-AgR 410715/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJ 03-02-2006).

3.3 ÓBICES PARA O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Embora haja precedentes jurisprudenciais sobre o tema, o assunto ainda é bastante controvertido. Diversos óbices são apresentados para impedir a cobrança pelo Poder Judiciário de políticas públicas que sejam capazes de concretizar os direitos fundamentais pelo Poder Executivo.

3.3.1 Separação dos Poderes

O primeiro óbice apontado assevera que a interferência do Poder Judiciário na execução de política públicas ofenderia o Princípio da Separação dos Poderes. Não prospera tal assertiva, haja vista a necessidade de readaptação do referido princípio ao contexto atual.

O princípio da separação dos poderes, como hoje se estrutura, foi sistematizado pelo filósofo Montesquieu no séc. XVII, embora este tenha se inspirado no inglês John Locke. O objetivo do filósofo francês, em meio à difusão iluminista, foi organizar o poder em órgãos distintos, como funções diferentes, a fim de limitá-lo e preservar a liberdade dos indivíduos. Dessa forma, para evitar as arbitrariedades cometidas no Estado Absolutista, foi instituída essa divisão rígida: o Legislativo cria as Leis (maior relevância), o Executivo as põe em prática e o Judiciário as aplica.[33]

O modelo clássico apresentado por Montesquieu serviu à época do Estado Liberal; no atual Estado Constitucional, quando se reivindica efetivação das normas constitucionais, a ingerência do Poder Judiciário deve ocorrer nos casos em que os demais poderes não atuem ou atuem de forma insuficiente no cumprimento de suas funções típicas. Note-se que não se trata de uma intervenção desmedida, mas sim coerente com a própria Constituição, a qual, além de vincular seus Poderes aos seus preceitos, requer a harmonia e colaboração entre eles.

Um pensamento renovado acerca do Princípio da Separação dos Poderes deve deixar de pressupor, como aduz Nuno Piçarra, “uma classificação material das funções estaduais, aspirando a uma validade científica universal e intemporal”, tendo em vista que a busca pela efetivação dos direito fundamentais exige “a solidariedade activa de todos os órgãos de produção e aplicação do Direito, vinculados que estão aos mesmos objectivos (...)”[34].

 Por isso, mostra-se necessária uma ampliação do juízo de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público para alcançar as políticas públicas.

3.3.2 Reserva do Possível

A alegação da “reserva do possível”, teoria advinda da Alemanha, determina que a efetivação dos direitos sociais está condicionada à suficiência dos recursos econômicos.[35] Dessa forma, entes estatais usam e abusam dos argumentos da “falta de dinheiro”.

Essas argüições também devem ser refutadas. Os instrumentos jurídicos alienígenas, que fazem sucesso no seu ordenamento jurídico pátrio, como é o caso da reserva do possível, não podem ingressar no ordenamento jurídico brasileiro, sem que haja uma devida avaliação, adaptação e moldura às peculiaridades nacionais[36]. Caso assim não seja possível, devem ser descartados, pois se não forem pelos legisladores, juristas ou administradores, serão pela sociedade.

Para lograr o objetivo constitucional de reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos (art. 3º, CF), o Estado deve disponibilizar gastos públicos consideráveis e previsões orçamentárias para a efetivação dos direitos fundamentais. Assim não fazendo,   deve-se forçar o Estado a cumprir a lei orçamentária ou a contemplar no orçamento dotações específicas e necessárias para tal finalidade, de forma que sejam realizados os direitos sociais. Ademais, é preciso acabar com a idéia de que o orçamento é um instrumento autorizativo, e expandir a compreensão que o orçamento é lei, portanto, deve ser respeitada[37].

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Frise-se que o Ministro Celso de Mello, em decisão na ADPF nº 45-DJ 04/05/2004, afirmou que:

A cláusula da ‘reserva do possível’, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

Robert Alexy[38] afirma que no confronto entre dois princípios de direitos fundamentais, a solução se dará por meio da ponderação, que faz parte do princípio da proporcionalidade. Deve-se seguir, então, três passos para alcançar a racionalidade: o primeiro analisa o grau de não-cumprimento ou prejuízo de um princípio, o segundo verifica o cumprimento do princípio em sentido contrário, por fim, compara-se se o cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o não-cumprimento ou prejuízo do outro.

Desenvolvendo essas regras metodológicas, tem-se que se de um lado há a necessidade de elaboração de políticas públicas para afastar crianças e adolescentes da prostituição infantil (Princípio da Proteção Absoluta) e se de outro lado as verbas disponíveis estão destinadas exclusivamente ao pagamento de dívida pública externa, entende-se que uma decisão racional, com pretensão de correção, haveria de considerar maior intensidade à proteção daquelas crianças, em face de uma responsabilidade contratual. Dessa forma, o argumento da reserva do possível não pode subsistir em prejuízo da dignidade da pessoa humana.

3.3.3 Discricionariedade Administrativa

Utiliza-se ainda, para evitar a efetivação de políticas públicas, o argumento da discricionariedade administrativa, ou seja, caberia ao Poder Executivo deliberar onde investiria os recursos disponíveis, não cabendo, pois, ao Judiciário interferir no mérito da escolha. 

Pela tradicional doutrina de Hely Lopes Meireles, os atos administrativos podem ser classificados quanto o grau de liberdade dos administradores em: vinculado ou discricionário. O primeiro determina que o administrador deve ficar adstrito ao enunciado da lei, o qual estabelece um único comportamento possível a ser seguido em situações concretas; já o  segundo garante ao administrador uma liberdade de escolha, podendo realizar um juízo de conveniência e oportunidade, conhecido como mérito administrativo[39]. Conforme esse pensamento, o Poder Judiciário poderia rever o ato discricionário sob o aspecto da legalidade, mas não poderia examinar o mérito do ato administrativo.

No entanto, essa distinção, embora bem aceita nos tribunais brasileiros, há de ser questionada. Segundo Andreas Krell[40], não há uma diferenciação qualitativa entre o ato vinculado e o ato discricionário, o que há é uma oscilação da intensidade vinculatória ou discricionária, de acordo com o grau da densidade mandamental das expressões contidas nos dispositivos jurídicos.

Com as idéias neoconstitucionalistas, os princípios ganham importância, direcionando a interpretação do ordenamento jurídico e limitando os atos estatais[41]. Dessa maneira, em regra, realmente o Poder Judiciário não pode intervir na conveniência e oportunidade de outro Poder; contudo, havendo violação de dispositivo constitucional, pode e deve intervir.

Dessa maneira, decisões políticas contrárias aos preceitos constitucionais ou atitudes omissas perante as determinações fundamentais da Constituição devem ser combatidas, haja vista que, nesses casos, a margem de discricionariedade diminui, dando lugar a uma obrigatoriedade de prestação.  

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Sobre a autora
Sofia Vilela de Moraes e Silva

graduação em Administração com habilitação em comércio exterior pela Faculdade de Alagoas , graduação em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas . Atualmente é doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e bolsista da CAPES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Sofia Vilela Moraes. Controle judicial de políticas públicas na área da infância e juventude. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3301, 15 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22200. Acesso em: 26 abr. 2024.

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