Resumo: A coisa julgada é o instituto jurídico alicerce da jurisdição. É o que confere a definitividade, principal característica da jurisdição. O fundamento sociológico do instituto consiste na necessidade de promoção paz social, estabilidade e segurança nas relações jurídicas. No entanto, algumas decisões injustas, imorais, inconstitucionais e contrárias à realidade dos fatos transitam em julgado. Por isso, atualmente indaga-se sobre uma possível relativização da coisa julgada para essas situações. Este trabalho monográfico objetiva a fazer um estudo acerca do instituto da coisa julgada, discorrendo, desde o seu conceito, passando por seus efeitos, até, finalmente, chegar às conseqüências da adoção da teoria da relativização da coisa julgada.
Palavras-Chave: coisa julgada, segurança jurídica, relativização.
1 INTRODUÇÃO
O escopo fundamental deste trabalho é discorrer acerca do tema da relativização da coisa julgada que vem despertando o interesse dos operadores do direito, ocupando espaços em debates jurídicos e gerando controvérsia entre doutrinadores pátrios, não apenas em nível acadêmico, mas, sobretudo, nas bancadas dos tribunais do país.
Qual o papel do operador do direito frente às decisões manifestamente injustas, desproporcionais ou lesivas aos direitos humanos? E quanto às decisões proferidas antes da evolução científica do teste do DNA na investigação de paternidade, as decisões seriam capazes de criar laços inexistentes ou desfazer os existentes mesmo com a existência de modernos testes imunológicos (HLA, DNA)?
A problemática surge a partir de dois pontos primordiais: segurança jurídica e justiça. Os que defendem a relativização atípica da coisa julgada primam por uma prestação jurisdicional de qualidade, pautada pelo valor do “justo”, na lógica de que o direito material deve prevalecer sobre institutos processuais. Por outro lado, a corrente contrária ao movimento parte do pressuposto que o fim do Direito é promover a paz social, encarando a coisa julgada como fundamental à segurança jurídica e, por isso, ponto fundamental do Estado Democrático de Direito.
Nas linhas que se seguem, procurar-se-á estudar a respeito da coisa julgada, seu conceito, fundamento, efeitos e instrumentos de revisão. Em seguida, serão expostos os argumentos em prol da relativização atípica, com seus principais argumentos, jurisprudência e remédios processuais adequados para concretização da relativização. Posteriormente, os argumentos contrários a esse movimento será igualmente abordado, também com jurisprudência correlata.
Por derradeiro, após todas essas ponderações, expor-se-á a visão sobre o tema, com sugestões de alternativas para conciliar as duas correntes, sem abalo na segurança jurídica ou no ideal de justiça.
Desta forma, com as digressões acerca do tema, espera-se contribuir para o aperfeiçoamento deste importante tema, oferecendo uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial que deu substância a este trabalho, sem a pretensão de esgotar o assunto.
2 A COISA JULGADA
Embora o foco central do presente estudo seja a análise da relativização da coisa julgada, necessário se faz tecer considerações iniciais sucintas, porém elucidativas, sobre todo o instituto da coisa julgada, em especial, sobre o seu conceito, origem, efeitos, limites, regime de produção e instrumentos de revisão.
2.1 Conceito, fundamento e acepções
A jurisdição é uma função atribuída a terceiro imparcial para, mediante um processo, tutelar (reconhecendo, efetivando e resguardando) situações jurídicas concretamente deduzidas de modo imperativo e criativo em decisão insuscetível de controle externo e apta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada material[1].
Assim, proferida a decisão e não sendo mais cabível qualquer recurso ou tendo ocorrido o exaurimento das vias recursais, a decisão transita em julgado, encerrando-se o debate e tornando-se imutável e indiscutível.
A definitividade é, pois, o traço marcante da jurisdição. A solução do conflito pelo meio jurisdicional é a única que deve ser respeitada por todos: partes, juiz do processo, Poder Judiciário e até mesmo por outros poderes, tornando-se por isso definitiva e imutável[2].
Nesse viés, materializa-se a coisa julgada como instituto que torna imutável a norma jurídica individualizada contida na parte dispositiva de uma decisão judicial[3].
Enrico Túlio Liebman[4] define a giudicato como:
o caso giudicata à La decisione contenuta nella sentenza del giudice, quando è divenuta immutabile in conseguenza della preclusione delle impugnazioni. La ragione pratica Che giustifica I’instituto è La necessita di pore fine alle liti, di assicurare La certezza dei diritti e La stabilità dei giudicati e di contribuire cosi Allá paciicazione socieale.
A coisa julgada encontra seu fundamento na necessidade de estabilidade e segurança nas relações jurídicas, pois “a insegurança é gravíssimo fator perverso que prejudica os negócios, o crédito, as relações familiares e, por isso, a felicidade pessoal das pessoas ou grupos”.[5]
A paz social e a previsibilidade são importantes para a convivência pacífica da sociedade. Mais importante do que garantir ao cidadão o acesso à justiça, é assegurar uma solução definitiva, imutável para sua quizila.[6]
Segundo Rodolfo de Camargo Mancuso[7], a coisa julgada possui três aspectos básicos: o sociológico, político e jurídico. O aspecto sociológico diz respeito à paz social e conseqüente alívio social gerado pela solução da controvérsia. O aspecto político resulta na capacidade da coisa julgada, como ação judicial, ser, ao mesmo tempo, um instrumento posto à disposição do cidadão para provocar a prestação do dever estatal de jurisdição e afirmação do poder político do Estado que substitui as vontades das partes e determina a solução do caso concreto. O aspecto jurídico diz respeito tanto aos sujeitos da lide como à relação jurídica processual. Pois, em relação aos sujeitos, ela assegura ao beneficiário o bem da vida determinado pela decisão imutável, no que pertine à relação jurídica, a coisa julgada previne novas decisões contraditórias sobre a lide.
Em razão de sua importância, a coisa julgada foi prevista constitucionalmente como uma garantia individual, dotada de força de cláusula pétrea (art. 5º, XXXVI e art. 60, §4º, IV da CR/88).
Vale ressaltar que o constituinte ao definir a garantia da coisa julgada minus dixit quam voluit, pois apenas frisou que a lei não prejudicará a coisa julgada[8], no entanto não é só o legislador que está proibido de dar nova regragem a uma situação concreta, os juízes não podem proferir nova ação, nem as partes dispõem de direito de ação ou defesa sobre a matéria já decidida[9].
Sendo, portanto, um mecanismo capaz de evitar a eternização dos conflitos e ao mesmo tempo capaz de gerar uma paz social e estabilidade nas relações jurídicas, a coisa julgada é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário [10].
Leciona Fredie Didier[11] que há diferentes acepções sobre o instituto da coisa julgada, quais sejam: coisa julgada como um efeito da decisão; coisa julgada como uma qualidade dos efeitos da decisão; coisa julgada como uma situação jurídica conteúdo da decisão.
Para a primeira corrente, a coisa julgada é o elemento declaratório da decisão. Essa corrente possui forte influencia alemã e, no Brasil, é capitaneada por Pontes Miranda, Ovídio Batista e Araken de Assis. Essa corrente é adotada pelo Código de Processo Civil de 1974, quando em seu artigo 467 dispõe: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
A segunda corrente adota o entendimento de Liebman que entende que a coisa julgada é uma qualidade da sentença que torna seus efeitos imutáveis, ou seja, é a propria imutabilidade que acoberta os efeitos da decisão.
Esse entendimento, contudo, é duramente criticado, uma vez que os efeitos da decisão são plenamente modificados, a depender da vontade das partes como, por exemplo, se a parte decide dar cumprimento a um contrato resolvido por processo judicial ou reconciliação com um novo casamento, no caso de divórcio anteriormente decretado.
A terceira corrente, entretanto, entende que é o conteúdo da decisão que se torna imutável em razão da coisa julgada e não uma qualidade da sentença que opera sobre os seus efeitos. Sendo assim, a imutabilidade não é dos efeitos, mas do dispositivo da sentença ou norma jurídica concreta.
Essa ultima corrente é a defendida por Fredie Didier[12] que bem ensina:
A coisa julgada é um efeito jurídico (um situação jurídica, portanto) que nasce a partir do advento de um fato jurídico composto consistente na prolação de uma decisão jurisdicional sobre o mérito (objeto litigioso), fundada em cognição exauriente, que se tornou inimpugnável no processo em que foi proferida. E este efeito jurídico (coisa julgada) é, exatamente, a imutabilidade do conteúdo do dispositivo da decisão, da norma jurídica individualizada ali contida. A decisão judicial, neste ponto, é apenas um dos fatos que compõe o suporte fático para a ocorrência da coisa julgada, que, portanto, não é um seu efeito.
2.2 Coisa julgada formal e coisa julgada material
A doutrina diferencia a coisa julgada quanto à projeção de seus efeitos. A coisa julgada formal é um fenômeno endoprocessual, na medida em que torna imutável a decisão judicial dentro do processo em que foi proferida, seja pelo transcurso in albis do prazo recursal, seja pelo esgotamento dos recursos cabíveis. Seria uma espécie de preclusão máxima dentro do processo[13].
A coisa julgada material, por sua vez, é um fenômeno endo e extraprocessual, pois consiste em uma imutabilidade que se opera dentro e fora do processo. Ou seja, a decisão continua imutável “além dos limites do processo em que foi proferida” [14], devendo seu conteúdo ser considerado em outros processos que sobrevierem.
É a coisa julgada formal pressuposto da coisa julgada material. No entanto, como elucida Daniel Amorim “se todas as sentenças produzem coisa julgada formal, o mesmo não pode ser afirmado a respeito da coisa julgada material”. [15]
Isso porque a coisa julgada material exige a presença de alguns pressupostos, além da preclusão máxima (coisa julgada formal), como decisão de mérito que tenha sido analisada em cognição exauriente.
2.3 Efeitos da coisa julgada
A doutrina distingue os efeitos da coisa julgada material em efeito negativo (ou impeditivo), efeito positivo e efeito preclusivo da coisa julgada.
O efeito negativo da coisa julgada material impede uma nova decisão sobre uma mesma causa que já foi decidida em outro processo. Ressalte-se que a aferição de ser ou não a mesma causa, parte da teoria da tríplice identidade, ou seja, não pode haver nova decisão em novo processo com as mesmas partes (inda que em pólos investidos), mesma causa de pedir (próxima ou remota) e mesmo pedido (imediato e mediato).
Entretanto, como bem ressalta Wambier,[16] deve-se considerar parte no sentido material, de maneira que a propositura de uma nova ação com a mesma parte contrária, mesmo pedido e causa de pedir, ainda que com outra parte ativa, na hipótese de legitimação extraordinária, continua a caracterizar a mesma causa e por isso, impede a prolação de uma nova decisão se a matéria já tiver sido decidida.
Esse efeito negativo impede um atentado à harmonia dos julgados e à economia processual que poderia ser ocasionado com o julgamento de uma questão já decidia pelo Judiciário.
O efeito positivo, por sua vez, consiste em uma vinculação ao que foi decidido anteriormente. Isto é, uma vez decidida a lide, ao retornar ao judiciário como questão incidental, não pode ser novamente discutida, já que está protegida pela coisa julgada, devendo, então, apenas servir como fundamento para a decisão da questão principal.
É o clássico exemplo doutrinário da ação de paternidade já transitada em julgado, em que, uma vez reconhecida a paternidade, deve ser levada em consideração pelo juiz na demanda de alimentos, em respeito à coisa julgada.
Ovídio Batista[17] traz uma importante distinção entre os aludidos efeitos, mencionando que o efeito negativo serve como exceptio rei iudicatae, ou seja, como defesa para impedir novo julgamento do que já fora decidido. Enquanto o efeito positivo serve como fundamento para a nova demanda.
A coisa julgada material possui ainda um efeito preclusivo, tornando irrelevante qualquer alegação que poderia ter sido formulada, mas não foi, para a solução da lide. Assim, a coisa julgada torna aquilo que poderia ter sido deduzido, como argüido e rejeitado.
É a conhecida regra do “deduzível e deduzivo” ou “julgamento implícito” previsto no artigo 474 do Código de Processo Civil: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.”
Uma corrente minoritária, inclusive, alega que a eficácia preclusiva abrange todas as possíveis causas de pedir que pudessem servir como embasamento do pedido. A corrente majoritária, contudo, entende que o efeito preclusivo apenas atinge os argumentos e provas que sirvam para embasar a causa petendi deduzida pelo autor.
Isso porque entender o contrário, de maneira que o efeito atingisse todas as causas de pedir, haveria grave violação ao direito fundamental de ação, ao devido processo legal e ao contraditório[18].
2.4 Regime Jurídico da Coisa Julgada
O regime jurídico da coisa julgada consiste no conjunto de normas que a estruturam e delineiam suas características fundamentais. Consiste na análise dos limites subjetivos e objetivos dos seus efeitos e, ainda, no exame do modo de produção da coisa julgada.
2.4.1 Limites objetivos
A coisa julgada material incide sobre o dispositivo da decisão, ou seja, sobre a norma jurídica concreta. A fundamentação não fica coberta pelo manto da imutabilidade.
Nesse sentido, o Código de Processo Civil é categórico, em seu artigo 469: “Não fazem coisa julgada: I- os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II- a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III- a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”.
Ressalte-se que os motivos, a verdade dos fatos e a decisão incidental da questão prejudicial nada mais são do que a própria fundamentação, conforme observou Barbosa Moreira.[19]
A questão prejudicial, como menciona o aludido dispositivo e o artigo seguinte (470), só faz coisa julgada quando colocada no processo como questão principal (principaliter tantum).
Esse limite é, entretanto, atenuado no controle concentrado de constitucionalidade, em razão da teoria da transcendência dos motivos determinantes, em que os motivos também figuram como imutáveis, conforme entendimento atual do Supremo Tribunal Federal.
2.4.2 Limites subjetivos
Os limites subjetivos da coisa julgada material diz respeito à quem se submete aos seus efeitos. Segundo o Código de Processo Civil, em seu artigo 472, “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”.
O legislador adotou, portanto, como regra geral na tutela individual que a coisa julgada é inter partes, ou seja, só vincula as partes que figuraram no processo.
Essa regra geral tem como fundo as garantias constitucionais da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, XXXV, LIV e LV CF).[20] De maneira que, ninguém poderá ser atingido pelos efeitos de uma decisão sem ter participado do processo.
É interessante ressaltar, entretanto, que os efeitos da decisão não se confundem com a coisa julgada material, já que todos os sujeitos (partes, terceiros interessados ou desinteressados) suportam os efeitos da decisão, os divorciados, por exemplo, ostentam essa condição não somente entre eles, mas perante qualquer terceiro.[21]
A regra da coisa julgada inter partes possui exceção quanto aos sucessores e substitutos processuais, pois estes, ainda que não tenham participado do processo, submetem-se aos efeitos da coisa julgada. Esta situação é denominada pela doutrina como coisa julgada ultra partes, pois atinge determinados terceiros que não participaram do processo.
No caso de alienação da coisa litigiosa, o legislador já determinou expressamente que a sentença proferida entre as partes originárias, irá estender seus efeitos ao adquirente ou ao cessionário. (art. 42, §3º do Código de Processo Civil), ainda que este não se transforme em parte.
Outro exemplo de coisa julgada ultra partes defendido por alguns doutrinadores ocorre com o litisconsorte facultativo ativo, pois ainda que ninguém seja obrigado a demandar contra outra pessoa, ficará vinculado aos efeitos da coisa julgada.[22]
No caso de dívida solidária, a coisa julgada será favorável aos outros credores que não participaram do processo, se a decisão for favorável, segundo o artigo 274 do CPC. Assim, qualquer credor, ainda que não tenha participado do processo, poderá executar a sentença. No caso da demanda ser julgada improcedente, só suportarão os efeitos os credores solidários que ingressaram com a demanda.
Na tutela coletiva, entretanto, a coisa julgada terá seus limites desenhados pelo direito material envolvido, se difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Nos direito difusos, os titulares são indeterminados ou indetermináveis, unidos apenas por circunstâncias de fato. Por existir essa indeterminabilidade dos sujeitos, a coisa julgada se opera erga omnes, ou seja, atinge toda a coletividade.
Essa coisa julgada erga omnes também está presente no processo objetivo de controle concentrado de constitucionalidade e também em ações como a de usucapião de imóvel.
Nos direitos coletivos, os sujeitos são indetermináveis, mas determinados por grupo, por isso, a coisa julgada atingirá igualmente todos os integrantes do grupo, classe ou categoria, ainda que não tenham participado do processo.
Em relação aos direitos individuais homogêneos, o Código de Defesa do Consumidor prevê que a coisa julgada opera-se erga omnes, no caso de procedência do pedido para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores (artigo 103, inciso III). A doutrina, contudo, frisa que a coisa julgada é ultra parte, pois só atinge os titulares do direito individual que integra esse grupo maior (direito individual homogêneo).
2.4.3 Modo de Produção da Coisa Julgada
A regra do sistema processual cível é a coisa julgada pro et contra , ou seja, a coisa julgada que se forma independente do resultado do processo, seja o pedido julgado procedente ou improcedente.
Nesse regime geral, registre-se que mesmo sendo o processo julgado improcedente por falta de provas, a decisão torna-se indiscutível pela coisa julgada.
Diferente ocorre com a coisa julgada secundum eventum litis, em que a decisão somente estará acobertada pelo manto da imutabilidade a depender do resultado da demanda. Esse é o caso da coisa julgada no processo penal, em que somente a sentença condenatória pode ser submetida a revisão sempre que houver algum argumento a favor do réu.[23] Diante de uma sentença absolutória, a doutrina entende que não é possível uma revisão criminal pro societate.
Outro modo de produção consiste na coisa julgada secundum eventum probationis em que a coisa julgada só se forma no caso de esgotamento das provas. A improcedência por falta de provas não faz coisa julgada. Esse regime é aplicado nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos e coletivos stricto sensu, na ação popular e no mandado de segurança.
2.5 Coisa julgada e relações jurídicas continuativas
A doutrina discute sobre a existência de coisa julgada nas decisões que tratam de relações jurídicas continuativas, como, por exemplo, ação revisional de alimentos, entre outras ações que envolvam família, relações tributárias e previdenciárias.
Parte da doutrina defende que em tais casos apenas opera a coisa julgada formal e não a material, na medida em que tais decisões podem ser alteradas com a simples propositura de ação revisional.
A maior parte da doutrina, contudo, defende a coisa julgada material em tais casos. Inclusive, o artigo 15 da Lei 5.478/1968 é objeto de severas críticas, ao dizer que a decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado.
A coisa julgada nas relações continuativas ficará adstrita à realidade fática do processo, de modo que se alterando os fatos (estado de fato ou de direito) do processo originário, uma nova decisão se impõe, que igualmente será indiscutível para essa nova realidade.
Fredie Didier[24] ensina que as decisões em relações jurídicas continuativas possuem em si a cláusula rebus sic stantibus, adaptando-se ao superveniente estado de fato ou direito.
Com essa conclusão, o posicionamento majoritário é no sentido de que a segunda sentença não substituirá e nem ofenderá a primeira, já que houve mudança no contexto fático e jurídico. Na verdade, a modificação da causa de pedir altera a tríplice identidade indispensável para a aplicação da função negativa da coisa julgada material[25]. Do mesmo modo, se o contexto não for alterado, haverá total imutabilidade da decisão.
2.6 Instrumentos de revisão da coisa julgada material
A garantia da coisa julgada no Brasil não é absoluta. Existem instrumentos de revisão da coisa julgada tais como: a) ação rescisória; b) querela nullitatis; c) correção de erros materiais; d) impugnação de sentença que se funda em lei, ato normativo ou em interpretação tida pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional; e) Revisão pela denúncia de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos.
2.6.1 Ação Rescisória
A ação rescisória é uma ação autônoma de impugnação de decisão de mérito transitada em julgada. É uma espécie legalmente prevista de relativização da coisa julgada, pois busca desconstituir a decisão sobre a qual se operou a coisa julgada material.
Utilizando-se as hipóteses elencadas em rol taxativo previsto no artigo 485 do Código de Processo Civil, que traz tantos motivos de invalidade (art. 485, II e IV, p. ex.) e motivos de injustiça (art. 485, VI e IX, p. ex.), a parte tem a sua derradeira chance à justiça em detrimento da segurança jurídica [26].
O manejo desse meio de impugnação conta com alguns limites como: a) a propositura dentro do prazo decadencial de 02 anos, a contar do trânsito em julgado da decisão. Ressalte-se que a Fazenda Pública não possui prazo diferenciado, salvo nos casos de transferências de terras públicas rurais, que o prazo é de 08 (oito) anos[27]; b) somente decisões judiciais de mérito; c) cabível somente nos casos de vícios rescisórios previstos taxativamente no artigo 485 do CPC[28].
Após o prazo previsto de dois anos, a decisão torna-se coisa soberanamente julgada.
Importante frisar que não se admite ação rescisória nas ações de controle de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito fundamental) e nem no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis.
2.6.2 Querela Nullitatis
A querela nullitatis é um meio processual que permite que uma decisão judicial possa ser invalidada após o prazo bienal da ação rescisória. Isso é possível se a decisão estiver inquinada com o denominado “vício transrescisório”, que ocorre quando sobrevier julgamento em desfavor do réu em processo que ocorreu à sua revelia ou por ter sido a citação defeituosa.
Previsto nos artigos 475-L e artigo 741, I, ambos do CPC, o vício transrescisório pode ser alegado a qualquer tempo, em razão da gravidade do vício na citação, que interfere na garantia ao contraditório e à ampla defesa corolários do devido processo legal.
2.6.3 Impugnação aos erros materiais
A impugnação aos erros materiais está prevista no artigo 463 do CPC que permite ao juiz alterar a sentença para corrigir inexatidões materiais ou corrigir erros de cálculos. Podendo o juiz atuar de ofício ou a requerimento da parte, a qualquer momento, mesmo após o trânsito em julgado da decisão.
2.6.4 Impugnação de sentença que se funda em lei, ato normativo ou em interpretação tida pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional
A revisão de decisões fundadas em ato normativo tido pelo STF como inconstitucional encontra-se prevista tanto no artigo 475-L, §1º como no artigo 741, parágrafo único do CPC.
A declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte afasta a imutabilidade da coisa julgada material, podendo a decisão ser alterada na execução ou fase de cumprimento de sentença, se for alegado por meio de embargos ou impugnação ou a decisão pode ser impugnada por meio de ação rescisória e ação declaratória autônoma com a mesma finalidade[29].
Conforme ensina Leonardo Carneiro da Cunha[30], para aplicação do dispositivo é necessário que a decisão do STF tenha sido anterior à formação do título judicial e que a lei cuja inconstitucionalidade tenha sido declarada pelo STF seja essencial para a procedência do pedido.
A razão de ser desse mecanismo é afastar a imutabilidade de decisões que contenham um defeito congênito, ou seja, o intuito é desconsiderar uma sentença prolatada em desconformidade com a orientação do STF.
A doutrina majoritária perfilha esse entendimento de que a declaração do STF deve ser anterior a prolação da decisão judicial, pois, entender de modo contrário, torna a coisa julgada instável e afeta à segurança jurídica, como bem elucida Luiz Guilherme Marinoni:
Admitir que um processo se desenvolva por anos e gere uma sentença preferida por um juiz que tem dever de controlar a constitucionalidade, para posteriormente dar ao executado o poder de alegar uma declaração de inconstitucionalidade posterior à formação da coisa julgada material, constitui gritante aberração, a violar, de uma vez só, o poder dos juízes e os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, para não falar ilogicidades de menor relevância (...) Portanto, as normas dos arts. 475-L, §1º e 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil permitem apenas uma interpretação: a de que o executado poderá alegar a pronuncia do Supremo Tribunal Federal quando a sentença exeqüenda houver aplicado lei que já havia sido declarada inconstitucional, ou tiver adotado interpretação que já havia sido declarada incompatível com a Constituição. Note-se, aliás, que este resultado pode ser obtido mesmo a partir de uma interpretação unicamente literal destas normas. [31]
O dispositivo legal, tal como redigido, enquadra-se perfeitamente à decisão do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade já que os efeitos da decisão são erga omnes. A dúvida, no entanto, reside na decisão do STF proferida em controle difuso.
Alguns doutrinadores defendem a aplicação para o controle difuso se houver resolução do Senado Federal suspendendo a vigência da lei (art. 52, X da CF/88), mas essa não é a corrente majoritária.
Ressalte-se que a aplicação dessa nova orientação só vale para as decisões julgadas a partir da publicação da lei 11.232, que ocorreu em 23 de dezembro de 2005.
2.6.5 Revisão da coisa julgada por violação à Convenção Americana de Direitos Humanos
A denúncia por violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, a ser julgada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos é um dos meios típicos de revisão da coisa julgada previsto no ordenamento jurídico pátrio.
Não se trata de um remédio interno, com a ação rescisória ou querela nullitatis, mas sim de um remédio externo, pois a apreciação será feita por um tribunal internacional[32] .
O artigo 44 da aludida Convenção, da qual o Brasil é signatário, determina que qualquer indivíduo, grupo de indivíduos ou organização não governamental (ONG) pode apresentar denúncia perante a Comissão por violação a direitos humanos. A denúncia pode inclusive acarretar responsabilização do Estado acusado se este tiver reconhecido previamente a jurisdição da Corte.
O Brasil é signatário da Convenção e já reconheceu a jurisdição da Corte pelo Decreto Legislativo n. 89, de 03 de dezembro de 1998 e art. 1º do Decreto Presidencial nº 4.463 de 08 de novembro de 2002.
Sendo assim, segundo ensina Eduardo Talamini[33], a Corte Interamericana possui legitimidade para apreciar qualquer ato ou omissão estatal cometido por qualquer dos poderes brasileiros, podendo, inclusive, rever decisões judiciais transitadas em julgados que houverem ofendido garantias fundamentais.
A problemática que gira em torno desse julgamento pela Corte Interamericana refere-se ao fato que a parte beneficiada com a decisão acobertada pela coisa julgada não participará do processo perante o Tribunal Interamericano e o comando anterior poderá ser desconstituído sem a sua participação.
Nessa situação, questiona-se a legitimidade da decisão no processo internacional, uma vez que não possibilita o contraditório entre as partes e a decisão poderá ser prolatada à revelia do sujeito prejudicado.[34]
Para a efetivação dessa sentença, Eduardo Talamini[35] sugere três diferentes soluções, a depender do comando da decisão. Se a sentença internacional for condenatória em reparação pecuniária, caberá a execução perante o Judiciário pátrio, pois a decisão se enquadra como título executivo judicial.
Se a decisão tiver outro teor, inclusive com tutela específica, será necessário ingressar com uma ação de conhecimento ou ação mandamental ou executiva lato sensu, integrando o sujeito que foi beneficiado com o pronunciamento anterior.
Se o processo interno já estava em execução e foi interrompido com a sentença internacional, o beneficiado (exeqüente) deverá, nesta oportunidade, exercer o seu direito de contraditório.
Na verdade, todo esse arranjo poderia ser simplificado se fosse oportunizado o contraditório ao sujeito anteriormente beneficiado, por meio de participação como assistente no julgamento realizado pela Corte Interamericana, conforme sugere Fredie Didier [36], por analogia aos Regulamentos da Comissão (art. 71,4) e da Corte (art. 22).
3 A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Existe um movimento que vem ganhando força que propõe a relativização da coisa julgada por meios atípicos. Essa corrente defende que a decisão judicial não pode se tornar imutável quando injusta ou inconstitucional. Sendo assim, os defensores propõem que a decisão, em tais casos, não produz coisa julgada material e pode ser revista a qualquer tempo, uma vez que a permanência dessa decisão seria uma espécie de subversão da ordem.
Nessas circunstâncias, indaga-se qual o papel do operador do direito frente às decisões manifestamente injustas, desproporcionais ou lesivas aos direitos humanos? Poderia o julgador afastar o impedimento da coisa julgada pelo ideal de justiça?
E quanto às decisões proferidas antes da evolução científica do teste do DNA na investigação de paternidade? Haveria coisa julgada? As decisões seriam capazes de criar laços inexistentes ou desfazer os existentes mesmo com a existência de modernos testes imunológicos (HLA, DNA)? O princípio da coisa julgada pode prevalecer sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental de acesso à informação genética?
Seria justo que essa pessoa tida como pai em decisão transitada em julgado arque com todos os deveres de genitor perante uma pessoa que não é seu filho? É justo que os herdeiros legítimos partilhem os bens com aquele que não é filho?
Nos capítulos subseqüentes, analisar-se-á a problemática, colocando em destaque os principais pontos das duas correntes, os que defendem uma relativização típica e os que defendem uma relativização atípica.
3.1 Relativização atípica da coisa julgada
3.1.1 Principais argumentos defensivos
A tese da relativização da coisa julgada foi acesa primeiramente pelo então ministro José Augusto Delgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[37] e tem como principais defensores Humberto Theodoro Junior, Juliana Cordeiro e Cândido Rangel Dinamarco.
Cândido Rangel Dinamarco afirma que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização da incerteza[38], enfatizando que o rigor com que vem sendo encarado o instituto da coisa julgada chega ao ponto de transformar a realidade. Cita, nesse sentido, a frase de Pontes de Miranda “levou-se muito longe a noção de res judicata, chegando-se ao absurdo de querê-la capaz de criar uma outra realidade, fazer albo nigrum e mudar falsum in verum”[39]
Nessa senda, a doutrina começou a defender a tese da “relativização da coisa julgada”, ensinando que o julgador pode rever a coisa julgada em qualquer situação em que ela for manifestamente injusta, inconstitucional (ainda que sem declaração do STF em controle concentrado) ou mesmo desproporcional.
O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado em seu livro “Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais”, traz um rol exemplificativo de decisões inconstitucionais que podem transitar em julgado, quais sejam: decisões que ofendam a soberania estatal; violem os princípios guardadores da dignidade humana; obriguem alguém a fazer ou a deixar de fazer algo de forma contrária à lei; impeçam a liberdade de atuação dos cultos religiosos; expedidas sem a devida citação do demandado com as garantias asseguradas pela lei processual.[40]
Defende o Ministro, fundamentalmente que a coisa julgada deve ser analisada juntamente com os princípios da moralidade pública e da segurança jurídica e, em voto proferido como relator na Primeira Turma do STJ[41], frisou que a coisa julgada não é absoluta, não podendo sobrepor-se aos princípios da moralidade publica e da razoabilidade.
O caso em comento tratava de uma desapropriação indireta em que a Fazenda do Estado de São Paulo, por restar vencida, fez um acordo com os adversários para parcelamento do débito. No entanto, posteriormente, constatou-se erro no julgamento da ação expropriatória, uma vez que a área supostamente apossada pelo Estado, na verdade, lhe pertencia. O Estado então entrou com uma ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito e chegando o caso à Corte de Justiça, a tese do Ministro de afastar a coisa julgada prevaleceu por três votos contra dois.
A idéia defendida gira em torno de que a coisa julgada deve existir sem afrontar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, não podendo prevalecer sentenças absurdas somente por terem transitado em julgado. Como seria o caso da sentença impondo condenações absurdas, como aquela que mandasse a mulher carregar o marido nas costas todos os dias, da casa ao trabalho ou que impusesse alguém uma pena consistente em açoites por chicote em praça publica.[42]
O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 93.412, julgado em 04 de maior de 1982, também já decidiu que a nova avaliação do imóvel, na execução, não ofende a garantia da coisa julgada, uma vez que ao lado dessa garantia existe o princípio da justa indenização, ainda mais quando existe uma procrastinação do pagamento por culpa do expropriante.
Do mesmo modo, é pacifico o entendimento de que, ainda que tenha a decisão transitado em julgado sem a indicação da correção monetária, esta é devida em virtude de lei superveniente e inflação, porque não implica alteração substancial da indenização, mas mero ajuste nominal.[43]
Eduardo Couture, considerado o príncipe dos processualistas latino-americanos, preocupava-se com as repercussões que a fraude processual pode acarretar com a superveniência da coisa julgada. Ele denominava de coisa julgada delinqüente situações fraudulentas, como o caso examinado em que um fazendeiro rico, tendo gerado um filho com sua empregada e querendo esquivar-se da pensão alimentícia, contratou um advogado de sua confiança para a mãe ingressar com ação de investigação de paternidade. Assim, em contestação, o pai negou os fatos e o patrono, em conluio com o fazendeiro, negligenciou o ônus de provar o alegado[44].
Outro autor que apóia a relativização é o procurador de justiça aposentado Hugo Nigro Mazzilli que defende primordialmente o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, como princípio supremo, “não se podendo admitir, verdadeiramente, a coisa julgada ou direito adquirido de violar o meio ambiente e de destruir as condições do proprio habitat do ser humano”.
Nessa linha, na hipótese de em uma ação civil pública transitar em julgado no sentido de que a empresa não agride o meio ambiente, por serem toleráveis os níveis dos gases emitidos pela fábrica e, posteriormente ao trânsito em julgado, ficar constatado que a perícia foi fraudulenta, não deve prevalecer o instituto processual em face do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo, então, a coisa julgada ser mitigada.
Citando as lições de Mauro Cappeletti, Mazzilli disserta que existe um confronto entre o tradicional processo civil individualista e os modernos pilares da tutela jurisdicional coletiva e que, com as ondas renovatórias, caem como um castelo de cartas as velhas estruturas referentes a certos institutos básicos, entre os quais a legitimidade ad causam, a substituição processual, a representação e os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada, tendo em vista a “imponente incongruência diante de fenômenos jurídicos coletivos como aqueles que se verificam na realidade social e econômica moderna”. [45]
Assim, a coisa julgada não pode prevalecer quando abusiva em processos coletivos, uma vez que atinge um maior número de pessoas e até mesmo um número indeterminado de pessoas, como ocorre com os direitos difusos.
No direito norte-americano, a autoridade da coisa julgada não é tão rígida quanto no nosso ordenamento jurídico de origem romano-germânica. Os tribunais e autores americanos, segundo ensina Dinamarco, possuem uma postura racional da idéia da relativização da coisa julgada, pois o instituto também deve ser compatibilizado com valores igualmente importantes, permitindo excepcionar a res judicata em situações especificas em que se repute presente uma razão especial.
Observa-se, nessa toada, que os fundamentos para a mitigação da coisa julgada citados pelos autores, no Brasil, são basicamente os seguintes: a) princípio da razoabilidade e da proporcionalidade como condicionantes; b) moralidade administrativa como valor constitucionalmente proclamado; c) o imperativo constitucional do justo valor das indenizações em desapropriação imobiliária, que é infringido tanto quando o ente público paga mais, quanto quando paga abaixo do valor de mercado; d) zelo pela cidadania e direitos fundamentais, aí incluído o direito fundamental de informação genética (DNA); e) fraude e erro grosseiro; f) garantia constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado e g) garantia constitucional do acesso à ordem jurídica justa.
A doutrina parte da lógica da instrumentalidade do processo, advertindo que o processo é um meio para concretização de um direito material e não um fim em si mesmo. E mesmo sendo a coisa julgada um garantia coberta pelo manto da cláusula pétrea não é um valor absoluto e deve ter uma convivência harmoniosa com outras garantias e princípios igualmente previstos na ordem constitucional, sobretudo quando se tratar de direitos fundamentais e do valor constitucional supremo atribuído à dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, Flávia Sapucahy Coppio afirma[46]:
A coisa julgada não é um princípio capaz de suprimir todos os outros, não pode ser considerado mais importante que o da razoabilidade, e não pode ser supervalorizado em nome da segurança jurídica, que, embora importante, não é superior à justiça das decisões. Vícios nocivos à ordem pública, de tal forma, que possibilitam a revogação da decisão, mesmo passados todos os prazos preclusivos.
Como enfatiza Cândido Rangel Dinamarco, é certo que existe um casuísmo nos casos elencados para mitigar os rigores da coisa julgada, mas o que há de comum é a prevalência da substância sobre o processual, ou seja, o culto ao valor do justo em detrimento das regras processuais sobre a coisa julgada.[47]
Além dessa idéia da instrumentalidade do processo, a mitigação da coisa julgada é inerente à metodologia do processo civil de resultados, em que os conceitos e princípios são meios capazes de produzir bons resultados e não centro fulcral das atenções[48]. Afinal, “os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches de ordem processual”[49].
Na verdade, Dinamarco é contra a rigidez do procedimento, pois o processo não é um fim em si mesmo, devendo, pois, existir a flexibilização de vários institutos processuais, não só da coisa julgada, mas também do procedimento como um todo para que “não seja subvertida a ordem das coisas, nem feitas injustiças em nome de um injustificável culto à forma”. [50]
Dinamarco pondera ainda que os opositores da teoria relativizadora alegam a sua incompatibilidade com a segurança jurídica. Mas, para o autor, esse argumento só seria decisivo se a segurança jurídica fosse um valor superior a vida e a felicidade das pessoas:
não sendo legítimo alimentar a paz de espírito e estabilidade nos negócios do vencedor com o sacrifício de outros valores também protegidos constitucionalmente, quando o valor sacrificado seja de mais elevada relevância social, política, econômica, ética ou humana que a própria segurança jurídica.[51]
Paulo Henrique dos Santos Lucon enfatiza ainda que essa relativização da coisa julgada funciona como uma própria limitação ao poder jurisdicional:
afastar a coisa julgada fraudulenta, símbolo da denegação de justiça é aplicar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. Esses dois princípios são decorrência do devido processo legal substancial, que permite a todo o tempo o controle dos atos estatais arbitrários[52]
3.1.2 Efeitos das sentenças inconstitucionais
Outro ponto importante no estudo da relativização da coisa julgada é que, mesmo concordando com a mitigação da coisa julgada, a doutrina diverge quanto aos efeitos das sentenças inconstitucionais. Para Humberto Theodoro Junior, os vícios de conteúdo de inconstitucionalidade podem ser atacados a qualquer tempo e sem a necessidade de um procedimento específico. Defendendo, pois, a absoluta vulnerabilidade da coisa julgada inconstitucional.
Cândido Rangel Dinamarco, por sua vez, é contra essa visão, entendendo que a coisa julgada prevalece ainda quando a sentença coberta por ela padeça do vicio da inconstitucionalidade. A sentença, em tais casos, não é inexistente, mas sim existente, embora desprovida de seus efeitos substancias e por isso, não fica imunizada com a coisa julgada, nas palavras do autor:
Uma sentença contendo o enunciado de efeitos juridicamente impossíveis é, em verdade, uma sentença desprovida de efeitos substanciais, porque os efeitos impossíveis não se produzem nunca e, conseqüentemente, não existem na realidade do direito e na experiência da vida dos litigantes. Por mais que o juiz ou a mais elevada Corte do país determine o recesso de uma unidade federativa, isso não acontecerá e esse efeito não se produzirá, porque as forças da nação e do Estado estão autorizadas a impedi-lo, até pela força se necessário. Por mais que uma sentença condenasse alguém a despojar-se em vida de partes de seu corpo, essa sentença não comportaria execução alguma e legítima seria a resistência que o condenado viesse a opor a ela. E, não havendo efeitos a serem imunizados pela coisa julgada material, essa autoridade cai no vazio e não tem como efetivar-se. [...] Para clareza, repito: sentença portadora de efeitos juridicamente impossíveis não se reputa jamais coberta pela res judicata, porque não tem efeitos suscetíveis de ficarem imunizados por essa autoridade. Pode-se até discutir, em casos concretos, se os efeitos se produzem ou não, se são ou não compatíveis com a ordem constitucional etc., mas não se pode afirmar que, sem ter efeitos substanciais, uma sentença possa obter a coisa julgada material.
Afinal, se verdadeiramente inexistente, essa senteça poderia ser desconsiderada por qualquer do povo, não só pelo juiz, e independentemente de ação, e, portanto, sem necessidade de citação da parte adversa com gravíssima ofensa ao princípio do contraditório, como bem observou o desembargador aposentado do Rio Grande do Sul José Maria Rosa Tesheiner. [53]
E ainda, se adotada a primeira corrente de inexistência de coisa julgada, seus defensores, por questão de coerência, elucida Barbosa Moreira, terão que rejeitar o cabimento de ação rescisória contra essa decisão, pois o art. 485, caput do CPC limita a medida aos casos de sentença de mérito transitada em julgado.[54]
3.1.3 Remédios processuais adequados
Pontes de Miranda[55] leciona que para solucionar a situação da coisa julgada inconstitucional, o autor poderá: a) propor uma nova demanda igual a primeira desconsiderando a coisa julgada; b) resistir à execução, com os embargos, impugnação e ainda exceção de pré-executividade; c) alegação incidenter tantum em outro processo.
O que se percebe, contudo, é que os tribunais não têm sido rigorosos quanto ao remédio processual escolhido, admitindo-se qualquer dos meios já propostos por Pontes de Miranda. No aludido caso de ação de desapropriação indireta em que a propriedade pertencia ao Estado de São Paulo, o Supremo Tribunal Federal aceitou uma mera ação declaratória de nulidade de ato jurídico. E no caso da investigação de paternidade julgada pelo plenário do STF, o requerente simplesmente ingressou com uma nova ação de paternidade.
Dinamarco propõe então um redimensionamento da ação rescisória. Ele enfatiza que o rol do artigo 485 é numerus clausulus e, além disso, os tribunais esmeram-se em afunilar a interpretação dos incisos, em razão da premissa do valor da segurança jurídica. O autor sugere, portanto, que o rol seja interpretado de maneira mais flexível exemplificando que o próprio inciso V do aludido dispositivo possa permitir a ação pelo fundamento da violação à literal garantia da igualdade substancial, constante no artigo 5º, caput e inciso I da CR/88.
A interpretação do vocábulo “lei” do mencionado inciso, deve ser ampla, abrangendo normas de direitos material e processual, constitucionais e infraconstitucionais, nacionais e estrangeiras, princípios explícitos ou implícitos.
3.1.4 Jurisprudência correlata
Alguns juristas e tribunais já estão aderindo ao movimento de relativização (atípica) da coisa julgada.
O Ministro José Delgado, principal defensor do tema, proferiu lúcida decisão sobre a necessidade de relativizar a coisa julgada que afronte à moralidade e garantia de preço justo:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. SENTENÇA COM TRÂNSITO EM JULGADO. FASE EXECUTÓRIA. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. ACOLHIMENTO. ERRO DA SENTENÇA QUANDO DA DETERMINAÇÃO DO MARCO INICIAL DA CORREÇÃO MONETÁRIA.COISA JULGADA. PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E DA JUSTA INDENIZAÇÃO.
1. Desmerece êxito recurso especial desafiado contra acórdão que repeliu alegativa de ofensa à COISA JULGADA, apoiando decisão monocrática acolhedora de exceção de pré-executividade proposta com o fito de corrigir erro cometido pela sentença quanto à determinação do marco inicial da correção monetária a incidir sobre o valor devido.
2. Não obstante, em decisão anterior já transitada em julgado, se haja definido o termo inicial da correção monetária, não se pode acolher a invocação de supremacia da COISA JULGADA principalmente tendo-se em vista o evidente erro cometido pela sentença que determina que a correção seja computada desde a instalação das redes em 1972, havendo o laudo pericial sido elaborado com base em valores de agosto de 1980.
3. O bis in idem perpetrado pela aplicação retroativa da correção monetária aumentou em seis vezes o valor devido, o que não se compadece com o conceito da justa indenização preconizada no texto constitucional, impondo-se inelutável a sua retificação sob pena de enriquecimento ilícito do expropriado pois se é certo que os expropriados devem receber o pagamento justo, é certo, também, que este deve se pautar segundo os padrões da normalidade e da moralidade. Não se deve esquecer que a correção monetária visa a atualização da moeda e apenas isso. Não se pretende por meio dela a penalização do devedor.
4. Não deve se permitir, em detrimento do erário público, a chancela de incidência de correção monetária dobrada em desacordo com a moral e com o direito. Repito, ambas as partes merecem ampla proteção, o que se afigura palpável no resguardo do princípio da justa indenização. Abriga-se, nesse atuar, maior proximidade com a garantia constitucional da justa indenização, seja pela proteção ao direito de propriedade, seja pela preservação do patrimônio público.
5. Inocorrência de violação aos preceitos legais concernentes ao instituto da res judicata. Conceituação dos seus efeitos em face dos princípios da moralidade pública e da segurança jurídica.
6. Recurso especial desprovido[56]
O Superior Tribunal de Justiça admitiu uma segunda ação de investigação de paternidade, mesmo com a decisão improcedente transitada em julgado, conforme se depreende do acórdão colacionado abaixo:
PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO.
I - Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caraterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.
II — Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.
III - A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade".
IV - Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum. [57]
O plenário do Supremo Tribunal Federal, nessa baliza, permitiu nova tramitação de ação de investigação de paternidade, tendo em vista a evolução dos meios de prova para aferição da paternidade (advento do exame de DNA), com o fundamento na prevalência do direito à personalidade sobre a coisa julgada, no Recurso Extraordinário 363889/DF julgado em 02 de junho de 2011.
Quanto às ações expropriatórias, o STJ já permitiu a mitigação da coisa julgada através de mera petição atravessada nos autos da execução:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DÚVIDAS SOBRE A TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. PRINCÍPIO DA JUSTA INDENIZAÇÃO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.
1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última parcela do precatório (art. 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão.
2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.
3. "A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabelecidos na norma jurídica, adequadamente interpretada. " (WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. 'O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização', São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág. 25) (...)
5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos.
6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou não presentes no caso dos autos.
7. Recurso especial desprovido.[58]
Em outro julgado, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a relativização por meio de ação declaratória de nulidade:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DAS QUESTÕES RELATIVAS À TITULARIDADE DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO. QUERELA NULLITATIS . CONDIÇÕES DA AÇÃO. INTERESSE DE AGIR. ADEQUAÇÃO.
[...]4. Ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito, em que a Fazenda do Estado de São Paulo, invocando o instituto da querela nullitatis , requer seja declarada a nulidade de decisão proferida em ação de indenização por desapropriação indireta, já transitada em julgado, escorando a sua pretensão no argumento de que a área indenizada já lhe pertencia, de modo que a sentença não poderia criar direitos reais inexistentes para os autores daquela ação.
5. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado. A nulidade da sentença, em tais hipóteses, deve ser buscada por intermédio da actio nullitatis.[...] 8. Não resta dúvida, portanto, que o ajuizamento da presente ação declaratória de nulidade de ato jurídico é um dos meios adequados à eventual desconstituição da coisa julgada.[59]
Os tribunais de justiça pátrios já vêm relativizando a coisa julgada quando se tratar de ação de estado, conforme se observa nos acórdãos abaixo:
AÇÃO RESCISÓRIA - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - COISA JULGADA - EXAME DE DNA - PROVA DA VERDADE REAL - RELATIVIZAÇÃO. O estado de filiação consiste em direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, especialmente abordado pelo art. 27 da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), estando ainda ligado aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, previstos respectivamente no art. 1º, inc. III, e no art. 226 da Constituição da República, erigindo o reconhecimento da filiação a direito fundamental. Em face do progresso tecnológico, que disponibilizou técnicas de aferição e certeza da paternidade biológica, surgiu a necessidade de relativização da coisa julgada, em sede de investigação de paternidade, em prestígio da busca da verdade real, em razão da inviabilidade dos exames biológicos ao tempo da ação ordinária, assegurando às partes a substituição da verdade ficta pela verdade real. Nesse sentido, tem-se admitido o laudo de DNA, apresentado após o trânsito em julgado da sentença prolatada em sede de investigação de paternidade, como documento novo, hábil a embasar ação rescisória, nos termos do art. 485 do CPC.[60]
Apelação. união estável. sentença de improcedência, por falta de provas. coisa julgada. relativização. ERRO PROCEDIMENTAL. revelia.
Caso em que a sentença de improcedência na primeira ação declaratória de união estável foi prolatada quando a parte autora, ainda que intimada para declinar provas, silenciou, e deixou de promover atos e diligências que lhe incumbiam, por mais de 30 dias.
Contexto processual que mostrava o início da caracterização do abandono da causa. E em tal contexto, era inadequada a prolatação de sentença de mérito.
O correto era providenciar na intimação pessoal da parte autora, para depois, caso persistisse o silêncio, prolatar sentença de extinção, mas sem apreciação de mérito.
A prolatação da primeira sentença de improcedência foi por igual inadequada, uma vez que a existência da alegada união estável, por mais de 30 anos, é desde sempre um fato certo e incontroverso entre todos os envolvidos, que são maiores e capazes.
Inclusive, a parte ré na primeira demanda, conquanto devidamente citada, sequer apresentou contestação ou resposta ao pedido lá deduzido.
De forma que, pela revelia da parte ré, sequer era necessário intimar a parte autora para declinar provas que pretendia produzir. E mesmo que a parte autora tenha deixado de produzir provas, o silêncio e a concordância da parte ré já bastava para ensejar um julgamento de procedência da primeira demanda.
De resto, tanto quanto a ação de investigação de paternidade, a ação declaratória de união estável versa sobre direito de personalidade, trata do “status” da pessoa, e afeta de forma direta a dignidade da pessoa humana.
Por isso, em ação declaratória de união estável julgada improcedente, por falta de provas, pode ser invocada a relativização da coisa julgada, tal qual se invoca em ação de investigação de paternidade julgada improcedente, por falta de prova. APELO PROVIDO. EM MONOCRÁTICA.[61]
3.2 Relativização típica da coisa julgada
3.2.1 Principais argumentos
A idéia de denominar o movimento de mitigação da coisa julgada como “relativização atípica” foi percebida primeiramente por Barbosa Moreira[62], pois o autor constatou que já existiam instrumentos de revisão da coisa julgada previstos no ordenamento, como os mencionados anteriormente (ação rescisória, querela nullitatis, impugnação com base na existência de erro material, impugnação de sentença inconstitucional- art. 475-L, §1º e art. 741, parágrafo único do CPC- e denúncia a Corte Americana de Direitos Humanos por violação à Convenção Americana de Direitos Humanos), não sendo, portanto, a coisa julgada uma garantia absoluta.
Nesse sentido, Barbosa Moreira, juntamente com Fredie Didier Junior, Nelson Nery Junior, Ovídio Baptista, Marinoni, entre outros autores, criticam esse movimento de relativização da coisa julgada de maneira atípica, sem previsão legal e com possibilidade de revisão a qualquer tempo.
O que se pondera basicamente é o risco que essa vulnerabilidade pode acarretar à segurança jurídica e à estabilidade das relações jurídicas, que formam o escopo sociológico do instituto da coisa julgada.
Para esses autores, a tese da relativização atípica da coisa julgada prega na verdade a própria abolição da coisa julgada, como é possível perceber com a passagem abaixo de Fredie Didier[63] reproduzindo o ensinamento de Ovídio Baptista:
De mais a mais, indaga, o seria uma “grave” ou “séria” injustiça que autorize a quebra da coisa julgada, como disposto por HUMBERTO THEODORO JUNIOR e por JOSÉ DELGADO? E o que seria uma sentença “absurdamente lesiva” ao Estado, que justifique o desrespeito à coisa julgada, tal como dito por Dinamarco? E uma sentença abusiva que por ser não-sentença, permitiria o afastamento da coisa julgada, na forma como propõe CÂNDIDO DINAMARCO, seguindo o quanto dito por THEODORO JUNIOR? Admitindo-se esses amplíssimos critérios de relativização da coisa julgada sugeridos pelos ditos processualistas, diz o autor, nada restaria da coisa julgada.
Negar a coisa julgada que transgrida princípios é questioná-la com base em premissa impalpável e difícil de ser visualizada, afinal princípios são normas abertas, “cuja aplicação obedece a uma escala de otimização, estranha à incidência das regras legal”.
Kiyoshi Harada afirma que o ideal de justiça é um valor relevante, mas justamente por ser um ideal, deve ser perseguido eternamente, não podendo essa busca, por isso, ser tão incessante a ponto de desestabilizar a segurança jurídica e desmoronar a ordem social, in verbis:
O ideal de justiça certamente é um valor de grande importância a ser buscado por vias legislativa e judicial. Porém, a segurança das relações jurídicas deve ser levada em conta, sob pena de desmoronamento da ordem jurídico-social gerando em caos na sociedade. Essa desordem do ordenamento jurídico, certamente, acabaria por afetar o ideal de justiça.
A realidade social é dinâmica. Mudam-se os valores, e alteram-se o conceito de justiça. Não é possível desconsiderar a coisa julgada a pretexto de que determinada decisão transitada em julgado não mais reflete a noção de justiça.[64]
O ideal de justiça é, portanto, algo subjetivo, que varia segundo critérios pessoais e conforme as ideologias predominantes em cada momento histórico[65]. Comprometer a segurança jurídica com base nessa idéia de “justiça”, sem definir o que é o “justo”, é fragilizar o próprio instituto da jurisdição que tem como alicerce a coisa julgada, definitividade do que foi decidido.
Como observou Luiz Guilherme Marinoni, quem garantiria a justiça na nova decisão, pois:
admitir que o Estado-juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica aceitar que o Estado-juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de “relativizar” a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça.[66]
Essa relativização não traz a certeza que a nova decisão corrigirá a suposta justiça ou absurdo da decisão anterior e ainda poderá trazer várias conseqüências maléficas:
Relativizar a garantia fundamental da coisa julgada material para além dos casos já disciplinados pelo legislador (situações previstas para a ação rescisória e a querela nullitats) não traz a certeza de que a nova decisão corrigirá a suposta injustiça ou absurdo da decisão anterior, pelo contrário, trará um mal ainda maior, que é a incerteza do futuro e do passado daquela relação jurídica.
Não se pode deixar de citar algumas conseqüências maléficas que possivelmente adviriam da relativização da coisa julgada material: insegurança jurídica causadora de intranqüilidade social e angústia dos “protagonistas processuais”; o aumento da demanda processual seria um efeito de curto prazo, causando uma elevação da demora da prestação jurisdicional; aumento da procrastinação ao cumprimento de decisões judiciais; aceitação da relativização para uns e para outros não, etc. [67]
O instituto da coisa julgada não pode, destarte, ser aniquilado, pois é um atributo indispensável para o Estado Democrático de Direito e a efetividade fundamental de acesso ao Poder Judiciário.[68] Afinal, com indagada Marinoni, de que adiantaria o acesso à justiça se o cidadão não tivesse seu conflito solucionado definitivamente.
3.2.2 Jurisprudência correlata
A jurisprudência tradicional não admite a relativização da coisa julgada mesmo em ações de estado, como investigação de paternidade em razão do primado da segurança jurídica e promoção da paz social:
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. EXAME PELO DNA POSTERIOR AO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. COISA JULGADA. 1. Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se instalaria. A regra do art. 468 do Código de processo civil é libertadora. Ela assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o ultimo julgado, que se torna inatingível, insuscetível de modificação. E a sabedoria do Código é revelada pelas amplas possibilidades recursais e, até mesmo, pela abertura da via rescisória naqueles casos precisos que estão elencados no art. 485. 2. Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado esta coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada. 3. Recurso Especial conhecido e provido.[69]
A segunda seção do STJ, nos autos do Recurso Especial nº 706.987,[70] julgado em maio de 2008, não permitiu nova ação de investigação de paternidade, uma vez que já formada coisa julgada em ação preteria (julgada em 1969), entendendo por maioria que a improcedência não se assentou em falta de provas, mas no exame de provas periciais existentes na época. Sustentou ainda o Min. Aldir Passarinho Junior que “ignorar o preceito da segurança jurídica da coisa julgada significa que a cada nova técnica ou descoberta científica seria necessário rever tudo que já foi apreciado, julgado e decidido.”
Justamente por todos esses argumentos que se apóiam basicamente na instabilidade que a relativização atípica acarretaria no ordenamento, os tribunais pátrios permanecem receosos na adesão ao movimento:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA. DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. EXCEPCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO. I) A flexibilização da coisa julgada, além dos casos previstos em lei, somente é possível quando o valor segurança causar indignação tamanha, que a torne insuportável ao senso comum de justiça, porque não há falar-se em segurança sem um mínimo de justiça. II) Tendo a decisão transitada em julgado sido proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário, a ulterior modificação de entendimento da própria Suprema Corte sobre a matéria não é suficiente para justificar a relativização da coisa julgada material, por não estar presente a hipótese acima mencionada. (grifou-se)[71]
3.3 Segurança jurídica versus Justiça
Percebe-se que a problemática que gira em torno do assunto parte de dois pontos primordiais: segurança jurídica e justiça. Os que defendem a relativização atípica da coisa julgada primam por uma prestação jurisdicional de qualidade, pautada pelo valor do “justo”, na lógica de que o direito material deve prevalecer sobre institutos processuais. Por outro lado, a corrente contrária ao movimento parte do pressuposto que o fim do Direito é promover a paz social, encarando a segurança jurídica e, em conseqüência, a coisa julgada, ponto fundamental do Estado Democrático de Direito.
A tese da relativização da coisa julgada é sedutora, sobretudo pela ótica do acesso à ordem jurídica justa e defesa de princípios de sobrepeso como dignidade da pessoa humana, moralidade, proporcionalidade, etc.
Entretanto, em que pesem tais argumentos, hoje se sabe que o mito no sentido de que o processo civil busca a verdade (ainda que formal) não é mais aceito. A verdade é encarada pela doutrina como algo meramente utópico e ideal, jamais alcançada[72]. Sendo essa inatingibilidade da verdade, inclusive, uma realidade comum a todas as áreas do conhecimento humano.
Hegel já afirmou que não existem verdades eternas como uma razão desvinculada de um tempo. A razão é algo dinâmico e a verdade é apenas parte desse processo dinâmico, influenciado constantemente pela cultura. Não se pode separar uma filosofia ou um pensamento de seu contexto histórico[73].
Do mesmo modo, ainda que se espere uma decisão justa, existe igualmente uma subjetividade na definição do que pode ser entendido como “justo”. A justiça é algo subjetivo, atrelado ao contexto histórico e a valores de cada comunidade.
A justiça, assim como a verdade, é um conceito jurídico indeterminado construído a partir de todas as determinantes que envolvem o caso. Logo, não existindo uma verdade absoluta, o magistrado se esmera em garantir uma prestação judicial de qualidade com verossimilhança em relação ao que ocorreu no mundo dos fatos.
Não obstante esse esmero, ainda que ele porventura “erre” na decisão, tendo em vista a própria falibilidade humana, o sistema previu a possibilidade de revisão da decisão, por meio do duplo grau de jurisdição para controlar a correção ou incorreção, a justiça ou injustiça.
E, ainda que a decisão injusta ou inconstitucional tenha transitado em julgado, existem atualmente vários meios de revisão da coisa julgada previstos no nosso ordenamento jurídico como a ação rescisória (art. 485, CPC), querela nullitatis, correção de erros materiais (art. 463) e revisão de sentença que se funda em lei, ato normativo ou interpretação tida pelo STF como inconstitucional (art. 475-L, §1º e art. 741, p. único.).
A ação rescisória, embora limitada ao rol taxativo do art. 485 do CPC, abrange uma vasta quantidade de casos, inclusive, com o entendimento de uma interpretação ampliativa do inciso V do aludido artigo[74], o que facilita ainda mais esse controle da decisão judicial.
Quanto à polêmica questão das ações de estado, como ocorre com a ação de investigação de paternidade, a discussão se torna mais acirrada diante da indagação da possibilidade de uma decisão judicial criar laços inexistentes ou mesmo extinguir os existentes.
Cristiano chaves é defensor da tese que, nas ações de investigação de paternidade, a coisa julgada material somente se produzirá se houver exaurimento de todos os meios de prova admitidos em juízo.
Essa saída, no entanto, necessita de autorização legislativa, pois, em regra, a coisa julgada opera-se pro et contra.
Melhor solução, todavia, seria uma simples alteração legislativa no Código de Processo civil ou na Lei 8.560/1992 que regula a ação de investigação de paternidade[75].
Nessa linha, o projeto de Lei nº 116 de 2001 de autoria do Senador Valmir Amaral propõe uma alteração no artigo 8º da Lei de investigação de paternidade para determinar que: “parágrafo único- a ação de investigação de paternidade, realizada sem a prova do pareamento cromossômico (DNA) não faz coisa julgada”.
Como se percebe o ordenamento já conta com um bom aparato para atacar decisões injustas/inconstitucionais, não necessitando de uma mitigação ainda maior da coisa julgada, sob pena de existir um abalo na segurança jurídica e uma sensação ainda maior de descredibilidade do poder das decisões do judiciário (Enforcing Power).
Existe um imperativo de decisões fortes e imutáveis. Essa necessidade deriva da própria essência da origem do Direito e da própria necessidade de formação do Estado. John Locke já afirmava ser o “contrato social” imprescindível para a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil, dotada de legislação e de jurisdição, com o objetivo de promover a paz social.
Thomas Hobbes, propondo outro meio, mas com uma mesma finalidade, acreditava que os homens firmavam entre si um “pacto de submissão”, por meio do qual transferem a um terceiro (Leviatã) a força/poder, em troca da liberdade e segurança por meio de um Estado Leviatã.[76]
A necessidade de coisa julgada, decisão com força definitiva sempre esteve presente no contexto histórico. Sempre existiu aquele que dava a última palavra. “Ora o Rei, ora o sacerdote, cabia alguém dar a última palavra sobre o litígio. Atualmente, há órgãos específicos com essa função.”[77]
Além disso, como Fredie Didier aponta, não se pode teorizar com base em absurdos que aconteceram de modo casuístico e pontual. Pois essas decisões absurdas, embora possam ocorrer, precisam passar despercebidas pelos operadores do direito, já que existe o duplo grau e ainda os aludidos meios de revisão.
Se a coisa julgada tiver que ser relativizada ainda mais, que pelo menos exista previsão legal no ordenamento, tal como propõe os projetos de lei que foram elaborados no intuito de resolver o problema da coisa julgada injusta/inconstitucional, por exemplo, o projeto de lei 203/07 de autoria do deputado Sandes Júnior (PP-GO) pretende acabar com o prazo de dois anos para a propositura da ação rescisória, quando o objetivo for ajustar uma decisão judicial aos direitos fundamentais (embora essa previsão genérica possa dar margem a revisão de muitos e muitos casos) e o projeto de lei 7111/10, apresentado em 03 de abril de 2010 pelo deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), que permite que a coisa julgada seja revogada no caso de comprovado caso de injustiça extrema, grave fraude processual ou erro grosseiro.
Acredito que tais inovações legais, ainda darão margem para subjetividade, pois não se pode definir com precisão, por exemplo, o que é “injustiça extrema” ou “grave fraude processual”. No entanto, essa previsão legal é a melhor saída, uma vez que caberá ao julgador realizar pontualmente uma ponderação entre os princípios de segurança jurídica e justiça para definir qual irá prevalecer naquele caso concreto.