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Lei Maria da Penha: reflexos tardios da internacionalização dos direitos humanos no Direito Penal brasileiro

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A Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, reflexo tardio da internacionalização dos direitos humanos, reconheceu a violência doméstica em suas diversas manifestações e criou mecanismos de proteção à vítima e punição severa ao agressor.

Resumo: O presente trabalho apresenta uma análise da Lei Maria da Penha como reflexo tardio da internacionalização dos Direitos Humanos. Objetiva discorrer sobre a trajetória da internacionalização e sua repercussão no Direito Penal brasileiro, observando o impacto no ordenamento jurídico interno. Apresenta a evolução dos Direitos Humanos nos tratados e convenções internacionais e a letargia do Estado em criar mecanismos de combate e repressão da violência doméstica e intrafamiliar. Através de metodologia de pesquisa, aborda a violência de gênero, reforçada no ordenamento pelo androcentrismo patriarcal. Destaca a responsabilização estatal pela omissão diante dos crimes cometidos na esfera de seu território, mediante a imposição de sanções internacionais. Enfoca as principais mudanças introduzidas pela Lei Maria da Penha no Direito Penal brasileiro para o enfrentamento da violência contra a mulher. Desenvolve, na conclusão, uma avaliação do quão importante foi a promulgação da Lei, ao ensejar proteção especial à dignidade humana da mulher, garantindo uma convivência igualitária.

Palavras-chave: Dignidade. Direitos Humanos. Violência doméstica e intrafamiliar. Direito Internacional. Lei Maria da Penha. Direito Penal brasileiro.


1 introdução

A violência e a discriminação contra a mulher provocaram a instrumentalização de medidas protetivas, provenientes de tratados e convenções do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

O Estado Brasileiro, signatário, apresentava elevados índices de casos de violência doméstica contra a mulher, em torno de 25% (vinte e cinco por cento). Todavia, apesar dos compromissos firmados, o ordenamento jurídico interno não se adequava às normas internacionais, deixando de garantir proteção à vítima, além de não punir adequadamente o ofensor.

O presente trabalho objetiva analisar por que o Direito Penal brasileiro não acompanhou a internacionalização dos Direitos Humanos, sobretudo após a Constituição da República de 1988, que os consagrou com primazia. Tal estudo se apresenta a partir da promulgação da Lei Maria da Penha, que promoveu a tardia internacionalização dos direitos da mulher, trazendo medidas que impactaram no ordenamento jurídico interno, submetendo os infratores à legislação específica e suas correspondentes penas.

Inicia-se o estudo com breve relato sobre Maria da Penha Maia Fernandes. Em seguida, prossegue-se análise da violência de gênero, através do poder e da subordinação e do patriarcado.

Num terceiro momento, destaca-se a questão do viés patriarcal no ordenamento jurídico brasileiro, desde os primórdios tempos até os dias atuais. Caracteriza-se como imperioso para a delimitação do objeto de estudo, propiciando uma visão sistêmica do Direito Penal Brasileiro.

Necessária se faz a abordagem da internacionalização dos direitos humanos, como caminho útil para entender a problematização. O estudo perpassa pelos tratados internacionais de proteção à mulher, pelos deveres assumidos pelos Estados membros e pelas sanções que o Direito Internacional dos Direitos Humanos impõe. Também destaca a importância da internacionalização na ordem interna brasileira, através do estudo da Constituição e da recepção dos tratados no Brasil.

Assim, através dos compromissos internacionais assumidos, dos valores constitucionais delimitados e da análise do Direito Penal brasileiro, chega-se ao enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar com a Lei Maria da Penha.

A Lei 11.340/2006 criou mecanismos para coibir a violência no âmbito doméstico. O rigor da lei despertou questionamentos entre doutrinadores que defendem o Direito Penal Mínimo, através de medidas descriminalizadoras. Outros doutrinadores aprovaram o afastamento, baseando-se na necessidade de se retirar a violência doméstica dos Juizados Especiais, haja vista a maneira inadequada com a qual lidavam com as mulheres vitimadas.

A parte final do trabalho analisa o impacto causado pela Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – no Direito Penal Brasileiro: seus reflexos e consequentes modificações. Apresenta também conclusões no esforço de contribuir para a adequada proteção às vítimas da violência, vez que esse quadro é inaceitável pela violação da dignidade humana que representa.


2 MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES

Maria da Penha Maia Fernandes fez história e transformou a vida de muitas mulheres no Brasil. Seu nome transformou-se em nome de Lei, por justificativa das mais dolorosas: vítima da violência doméstica.1

Segundo Dias2, a farmacêutica cearense Maria da Penha enfrentou, por duas vezes, a tentativa de assassinato por parte de seu marido, o professor universitário e economista Marco Antônio Heredia Vivieiros.

Em 29 de maio de 1983, forjando um assalto e utilizando uma espingarda, Marco atirou nas costas da esposa, enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. Pouco mais de uma semana depois, assim que Maria da Penha regressou ao lar após ser submetida à vária cirurgias, tentou eletrocutá-la com uma descarga elétrica enquanto tomava banho. Segundo Lavorenti3, as agressões culminaram em traumas psicológicos e paraplegia irreversível.

Afirma Dias4 que as agressões ocorreram durante os anos de convivência matrimonial, no domicílio do casal, em Fortaleza, no estado do Ceará. Maria da Penha não reagia por temer represálias, contra ela ou contra as três filhas.

Somente após quase ter sido assassinada é que teve coragem para denunciar. As investigações começaram em junho de 1983, mas a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984. Em 1991, o réu foi condenado a oito anos de prisão, mas pode recorrer em liberdade. Em 1992, teve seu julgamento anulado. Em 1996, em novo julgamento, foi condenado a dez anos e seis meses de reclusão. Novamente recorreu em liberdade. Em 2002, decorridos dezenove anos e seis meses da data do crime, o réu foi preso. Cumpriu pena por apenas dois anos e foi libertado.

Ante a morosidade e a inércia do Judiciário, Maria da Penha procurou ajuda nos organismos internacionais para a defesa da mulher. Dias (2010)5 assevera que a repercussão foi tal que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino- Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

A Comissão Interamericana solicitou, por quatro vezes, informações ao governo brasileiro. Lavorenti6 aduz que, durante todo o trâmite apuratório, o Estado brasileiro se manteve silente. A Comissão também colocou-se à disposição para uma solução amistosa. Sequer recebeu resposta. O Brasil então foi condenado internacionalmente em 2001.

O Relatório n. 54 da Organização dos Estados Americanos – responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão frente a violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, dentre elas a de simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que se possa ser reduzido o tempo processual. Também impôs o pagamento de uma indenização no valor de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha.

Em 28 de julho de 2008, o governo do Estado do Ceará, pagou a indenização no valor de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) à Maria da Penha, em solenidade pública, com pedido de desculpas.

Em 07 de agosto de 2006, o Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.340/06, que o Brasil passou a conhecer como Lei Maria da Penha. Segundo Hermann7, tratou-se de justa homenagem à guerreira que, durante anos, lutou pela proteção às vítimas de violência doméstica e familiar. O Brasil passou a dar cumprimento às convenções e tratados internacionais dos quais é signatário, procedendo efetiva internacionalização dos direitos humanos no país, no que tange à violência de gênero, efetivando a igualdade constitucional.

O Poder Judiciário, que até então reforçava a desigualdade de gênero na sociedade, passa gradualmente a atuar em defesa dos direitos das mulheres.

O Direito Penal brasileiro finalmente começa a trilhar caminho em direção à primazia da dignidade humana e sua prevalência na esfera doméstica, condizente aos tratados internacionais que versam sobre a mulher.


3 Violência e discriminação contra a mulher

3.1 Violência sob a perspectiva do poder e do gênero

A violência doméstica e a discriminação contra a mulher trazem em si a marca histórica da desigualdade. Perpassam por uma assimetria entre os sexos, constituída através de relações de subordinação e dominação. Tais relações se consolidaram culturalmente, calcadas em pilares dentre os quais destacam-se o poder e o gênero.

Santos8 destaca que as relações de poder permeiam todas as esferas da convivência humana, sempre que uma relação social é regulada por uma troca desigual, na qual o poder absorve o papel de manter, através da subordinação, as condições favoráveis à dominação. E o exercício do poder estabelece uma relação de dominante e dominado.

Afirma Deleuze9, à luz de Foucault, que o poder não teria uma essência e um atributo que qualificariam os dominantes, diferenciando-os dos dominados, aqueles que sofrem as conseqüências de seu exercício. Segundo o autor, há uma relação, que se estabelece do seguinte modo:

Foucault mostra que o poder não tem essência, ele é operatório. Não é atributo, mas relação: a relação de poder é um conjunto das relações de força, que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades. O poder investe os dominados, passa por eles e através deles, apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os afeta. (DELEUZE, 2005, P.37)

O poder nas relações domésticas é introjetado psicologicamente, originando, de forma paulatina e progressiva, a subordinação. Sugere uma desigualdade hierárquica na qual o dominante oprime e explora o dominado, transformando-o em refém de toda forma de violência.

Nesta concepção, Chauí10 observa que a violência contra mulheres surge de uma ideologia que define a condição feminina como inferior à condição masculina: a violência de gênero, que é construída socialmente.

Scott11 associa a noção de construção social com a noção de poder, para definir gênero:

O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas preposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1994, p.13).

Assim, na perspectiva da autora, gênero se constitui por relações sociais que se baseiam nas diferenças entre os sexos, que são constituídas nas relações de poder.

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Mattos12 afirma que:

Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que a construção dos perfis de comportamento feminino e masculino define-se um em função do outro, uma vez que se constituíram social, cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determinados. Não se deve esquecer, ainda, que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos, e são, portanto, uma forma primária de relações significantes de poder (MATTOS, 2000, p.16-17).

Lavorentti13 ressalta que gênero é, em síntese, “a construção sociocultural do feminino e do masculino, com a atribuição de papéis diferenciados 14, repercutindo na esfera da vida publica e privada de ambos os sexos” (LAVORENTTI, 2009, p.34).

Lavorentti15 assevera a necessidade de enfocar a discriminação e a violência em razão do gênero, haja vista que vários tratados internacionais adotaram a perspectiva de gênero em suas manifestações e nas normas programáticas de políticas em todas as esferas.

3.2 Violência sob a ótica do patriarcado

O patriarcado consolidou-se a partir do ano 2000 a. C., em oposição à vigente sociedade matriarcal. Segundo Hermann16, houve a cisão entre homens e mulheres, na qual o homem assumiu o domínio público e a mulher passou a ocupar o recluso espaço da casa. Plantou-se assim a semente da violência nas relações de gênero.

A autora afirma que vários fatores culturais consolidaram o dogma da superioridade masculina ao longo da história. Essa dominação, fundamento do patriarcado, edificou uma estrutura política hierarquizada de discriminação, que envolve a sociedade em múltiplos aspectos, que podem ser observados nos escritos da época.

O Código de Hamurabi, escrito no século XVII a. C., dizia: “quando uma mulher tiver conduta desordenada e deixar de cumprir suas obrigações do lar, o marido pode submetê-la à escravidão”.

O filósofo Aristóteles, que viveu no século IV a. C., afirmava que “a natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é portanto um homem inferior”

O Alcorão, livro maior da fé muçulmana, escrito no século VI d. C., apregoa que “os homens são superiores às mulheres porque Alá outorgou-lhes a primazia sobre elas. Portanto, dai aos varões o dobro do que dai às mulheres”. Diz ainda: “os maridos que sofrerem desobediência de suas mulheres podem castigá-las, deixá-las sós em seus leitos e até bater nelas”. Tais proposições perduram até nos dias de hoje: cabe à mulher muçulmana a obediência cega ao marido.

Hermann17 destaca que em algumas culturas a mulher é tida como estúpida ou como bruxa perigosa. Henrique VII, rei da Inglaterra, diz que “as crianças, os idiotas, os lunáticos e as mulheres não podem e não tem capacidade para efetuar negócios”. Tal pensamento exprime a inferioridade da mulher na época.

Santos18 assegura que a exploração capitalista vitima e exclui a mulher de forma intensa. A cultura patriarcal privilegia o homem, provedor econômico, em desfavor da mulher. Estabelece-se a desigualdade de gênero no mercado de trabalho mundial, no qual a mulher luta para se inserir em igualdade de condições.

Almeida19 esclarece:

As desigualdades de gênero fundam-se e fecundam-se a partir da matriz hegemônica do gênero. Isto é, de concepções dominantes de feminilidade e masculinidade, que vão se configurando a partir de disputas simbólicas e materiais, processadas, dentre outros espaços, nas instituições cuja funcionalidade no processo de reprodução social é inconteste – marcadamente, a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação – e materializadas, ainda, nas relações de trabalho, no quadro político- partidário, nas relações sindicais e na divisão sexual do trabalho operada nas diversas esferas da vida social, inclusive nas distintas organizações da sociedade civil. (ALMEIDA, 2007, p. 27)

Afirma a autora que nestes espaços é que vão se produzindo e naturalizando hierarquias, mecanismos de subordinação e reforço ao patriarcado, tornando desigual o acesso às fontes de poder e aos bens materiais e simbólicos.


4 INFLUÊNCIA DO PATRIARCADO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Sob o viés do patriarcado, consolidou-se o androcentrismo no direito penal brasileiro. “O androcentrismo penal moldou um discurso punitivo sob o enfoque da experiência masculina e ditou políticas criminais que consolidaram a superioridade do gênero masculino”(LAVORENTI, 2009, p.157).20

Assevera Lavorenti21 que a violência contra a mulher não era considerada como algo grave, factível de punição. “Preferiu-se o não reconhecimento da violência e da discriminação como fatores criminógenos suscetíveis de gerar comportamentos delitivos que vulneram a mulher em sua condição humana.” (LAVORENTI, 2009, p. 157).

Para contextualizar o patriarcado no Direito Penal brasileiro, necessário se faz remeter à época do descobrimento e colonização. Lavorenti22 afirma que o Direito Penal que vigorava no Brasil, do descobrimento à independência, baseava-se fundamentalmente no Livro V das Ordenações Filipinas, no qual o regramento sexual era a tônica, destacando o pecado da sodomia e alimárias. Para o autor, o crime de sodomia com violência lembra o de atentado violento ao pudor e o das alimárias, à infração do incesto. Nesta época já havia a preocupação em tutelar penalmente a virgindade e a honestidade da mulher.

Assim, o Livro V criminalizava a conduta do homem que dormia com mulher que freqüentava o paço – que morava ou trabalhava junto à casa da família real – ou que dormia com mulher virgem ou viúva honesta, ou escrava de guarda. Afirma o autor que, nesses casos, o ofendido era o morador da casa em que se encontrava a mulher (e não esta). O ofendido deveria então autorizar o casamento da mulher com o ofensor, como reparação de conduta.

Já a mulher que cometia adultério era punida com a pena de morte e, se fosse surpreendida pelo marido, era lícito a ele matar tanto a mulher quanto o adúltero.

Com a Constituição de 1824, surgiu a necessidade de criação de um Código Criminal fundado na justiça e na equidade. Assim, sob a exaltação dos penalistas da época, em 16 de dezembro de 1830, foi criado o Código Criminal do Império. Tal Código trazia um capítulo que tratava “Dos Crimes contra a Segurança da Honra”, no qual, juntamente com a calúnia e a injúria, foram previstos os crimes de estupro e rapto.

O crime de estupro só se configuraria se a mulher fosse virgem e menor de dezessete anos, sendo que o casamento tinha o condão de reparar a honra, segundo Lavorenti23:

Assim, o casamento subseqüente ao delito reconstruía o atributo de honestidade da mulher e restaurava sua honra – implicando o reverso que, diante da inexistência do casamento, tivéssemos o binômio criminoso/desonrada, reforçando o estereótipo em desfavor da mulher e desconsiderando a equidade como fundamento do novel Código, seja lá qual fosse a interpretação que se quisesse dar a essa aspiração constitucional.(LAVORENTI, 2009, p. 183).

Em 11 de outubro de 1890, adveio o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, que recebeu inúmeras críticas e sofreu muitas alterações. E, por meio de um decreto, em 1932, surgiu a Consolidação das Leis Penais.

O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil separou os crimes sexuais dos crimes de calúnia e injúria, em capítulos exclusivos, porém manteve o foco na tutela da honra, enfocando, com particular atenção, a virgindade ou a honestidade da mulher, tanto para a configuração do crime quanto para a dosimetria da pena. O androcentrismo penal era evidenciado na relevância da motivação da agressão praticada pelo homem: a motivação da ordem social e da honestidade da família, afirma o autor. Tal enfoque permaneceu mantido na Consolidação das Leis Penais.

Em 07 de dezembro de 1940, durante o Estado Novo, por meio do decreto-lei 2.848, veio o atual Código Penal, que sofreu reforma em 11 de julho de 1984, por meio da Lei 7.209.

Segundo Hungria24, os crimes sexuais ganharam capítulo à parte dos crimes contra a honra (“Dos crimes Contra os Costumes”). O adultério foi deslocado para o título “Dos Crimes Contra a Família”. “A fidelidade conjugal era tida como pressuposto da segurança e estabilidade da organização familiar e se sobrepunha, em importância, à ofensa à moralidade social sob o ponto de vista sexual”.

Afirma Lavorenti25, à luz do Código, que, para tipificação do crime de estupro, não havia a exigência de que a mulher fosse virgem ou honesta. Já para a tipificação do crime de sedução, era necessário que a ofendida fosse virgem. Para a configuração dos crimes de posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude e rapto, era imprescindível que a mulher fosse honesta. No caso de posse sexual mediante fraude, se a vítima fosse virgem e menor de 18 anos, haveria majoração na pena.

Verifica-se a importância dada à “mulher honesta”. A honestidade masculina era presumida e inata. O homem era tido como viril e másculo, enquanto que a mulher era tida como desonesta. Ou seja, as agressões sofridas pela mulher eram merecidas, diante de sua desonestidade, reforçando-se assim os padrões de moralidade sexual impostos pelo androcentrismo patriarcal, conforme assevera Lavorenti26.

Nesse viés, os advogados passaram a explorar a tese da legítima defesa da honra, que ganhou corpo na década de 80, principalmente no julgamento do caso de assassinato de Ângela Diniz por Doca Street. Tal tese se tornou o grande ícone de das decisões judiciais, como excludente de ilicitude e antijuricidade, reforçando a discriminação contra a mulher, mesmo após a promulgação da Constituição da República de 1988. Tome-se como exemplo o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 23 de fevereiro de 1995:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

Apelação Criminal n. 137.157-3/1, 23.02.1995.

Resumo: acusado que, surpreendendo a mulher em situação de adultério, mata-a juntamente com seu acompanhante. A tese da legítima defesa da honra foi aceita por expressiva maioria do Tribunal do Júri e confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao apelo do Ministério Público, mantendo a decisão do Júri popular.

Motivação da decisão: Antonio, já antes ferido na sua honra, objeto de caçoada, chamado, agora sem rodeios, de chifrudo por pessoas daquela localidade... mal sabia o que o esperava.

Entrou em casa e viu sua esposa e J.J. dormindo a sono solto, seminus,em sua própria cama e na presença de seu filho, cujo berço estava no mesmo quarto...

Saísse ele daquela casa sem fazer o que fez e sua honra estaria indelevelmente comprometida.

Não se pode esquecer que o réu foi educado em outra época, nas décadas de 20 e 30, quando a moral e os costumes ainda eram outros e mais rígidos talvez que os de agora, mas que por certo estavam incrustados em seu caráter de maneira a moldar sua personalidade com reflexos futuros perenes.

Tudo isso, à evidência, deve ter sido aos jurados ou pelo menos por eles analisado, sem contar, ademais, que os juízes de fato, retirados que são do seio da sociedade, representam, no Tribunal do Júri a moral média desta...

Sabe-se, é claro, que a questão relativa à legítima defesa da honra não é nova. Nem por isso, contudo, perde a atualidade.

O assunto também não é pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência. (...)

O adultério, em geral, em todos os tempos, em todas as leis as mais primitivas e modernas, sempre foi considerado um delito, uma ação imoral e anti-social. (...)

As ofensas à honra, comumente, se exteriorizam de mil maneiras,numa infinidade de atos, palavras, símbolos, formas morais ou materiais, porém, nenhuma a atinge tão intensamente como a relação adulterina, como as ações libidinosas ou conjunção carnal com outrem que não o cônjuge. Traduz, em realidade, em nossa opinião, uma dupla agressão dos adúlteros, moral e física, ao cônjuge inocente, sendo a primeira mais grave, perturbadora, profunda e injusta que a materialidade que se descobre na cena do flagrante.

É incontestável, ademais, que um cônjuge tem em referência ao outro,na constância do casamento, o absoluto direito à fidelidade, de exigir-lhe tal, direito que vai a implicar numa honra como um bem jurídico a ser respeitado e a dever ser mantido.(...)

A ofensa do adultério não ocorre somente em relação ao indivíduo mas, também, às normas de conduta do grupo social; a reação pessoal é algo que possui e é movido por uma visível carga social. Reage o indivíduo em função de sua dignidade e em função do sentimento comum de valorização da coletividade. Reage porque a honra só pode ser entendida e existir sob um duplo caráter e sob o dever para consigo mesmo e para com a sociedade. Na luta por seu direito, outra não pode ser a sua atitude ou conduta como pessoa e como membro de um grupo numa dada coletividade organizada.

No que tange ao crime de estupro, a doutrina não entendia que o marido pudesse ser o autor de tal crime pois as relações sexuais constituíam obrigação recíproca entre os cônjuges e, se o marido possuísse a mulher mediante força física ou violência, estava acobertado por outra excludente de ilicitude, consistente no exercício regular de um direito, segundo o autor. Era tida como lícita a violência empregada pelo marido para vencer a resistência da mulher à prática sexual.

Por força da Lei 7.209/84, a Parte Geral do Código Penal mereceu nova redação em 11 de julho de 1984, acrescentando a necessidade de análise e interpretação do comportamento da vítima como critério basilar de fixação da pena. Na Exposição de Motivos, destaca-se “o comportamento da vítima, erigido, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, como o pouco recato da vítima nos crimes conta os costumes”.

Ardaillon e Debert27 observam:

(...) chama a atenção para o fato de que, no discurso legal, vítima e réu são transformados em personagens de um drama teatral no qual o papel principal cabe estranhamente, não ao crime em si, mas às características e atributos da vida sexual, profissional e social dos personagens. (ARDAILLON; DEBERT, 1987, p. 58).

Assevera Lavorenti28 que, durante a persecução, vasculhava-se a vida da mulher em busca de indícios que pudessem incriminá-la: “demonstrá-la como sedutora e responsável pela prática do crime sexual”.

Foram mantidas como causas extintivas de punibilidade o casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes, e o casamento da ofendida com o terceiro, dando ao homem a oportunidade de reparação moral em detrimento da dignidade da mulher.

O Código de Processo Penal, datado de 03 de outubro de 1941, também focado no androcentrismo, reforçava o patriarcado vigente. Destaca-se o fato de a mulher casada não poder exercer o direito de queixa sem a expressa autorização do marido, estabelecendo assim a incapacidade relativa da mulher casada. Tal dispositivo perdurou até 1997, quando foi revogado pela Lei 9.250, segundo o autor.

Também a Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Cíveis e Criminais, que surgiram como forma de simplificação e celeridade, banalizou os casos de violência contra a mulher, tratando-os como infrações de menor potencial ofensivo. Consagrou-se o descaso do Poder Judiciário, que permitia ao ofensor reparar sua grave conduta com a simples distribuição de cestas básicas a entidades assistenciais. Nesse viés, Barsted e Hermann29 apontam:

O discurso jurídico, como vimos, tem se orientado segundo padrões morais pré-estabelecidos para homens e mulheres, refletindo o tratamento histórico penal diferenciado pelo gênero, sobretudo quando envolvidos em crimes domésticos. (...) o Poder Judiciário ratifica os papéis e hierarquias sociais que dizem respeito à estrutura política das relações entre os sexos, não demonstrando, na prática de suas decisões, a neutralidade que afirma caracterizar sua atuação. (BARSTED; HERMANN, 1995, p.109).

Somente com a Lei 11.106 de 28 de março de 2005 baniu-se o estereótipo da mulher honesta e o crime de adultério do ordenamento jurídico brasileiro, enfraquecendo a tese da legítima defesa da honra.

Percebe-se, portanto, que séculos de patriarcado não foram banidos do Direito Penal brasileiro, mesmo com a igualdade entre os sexos estabelecida na Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, caput e inciso I.

Tal igualdade constitucional, como afirma Mendes, Coelho e Branco30, remete ao princípio da isonomia, que significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade.

Às mulheres, vítimas históricas da desigualdade social, é plenamente cabível o tratamento diferenciado por parte do Estado, através de legislação específica que as proteja contra a violência doméstica e contra a extrema vulnerabilidade.

Justifica-se assim o rigor da Lei 11.340/06, que confere à norma constitucional a devida efetividade penal em face dos princípios da igualdade e isonomia.

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Sobre a autora
Andrea Cristina Matos Siqueira

Advogada em Belo Horizonte (MG). Especialista em Direito Constitucional. Mestre em Direito Público Internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Andrea Cristina Matos. Lei Maria da Penha: reflexos tardios da internacionalização dos direitos humanos no Direito Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3329, 12 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22391. Acesso em: 28 mar. 2024.

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