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Lei Maria da Penha: reflexos tardios da internacionalização dos direitos humanos no Direito Penal brasileiro

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6 LEI MARIA DA PENHA

A internacionalização dos direitos humanos, no que tange à violência doméstica, consubstanciou-se na promulgação, em 07 de agosto de 2006, da Lei 11.340, também chamada de Lei Maria da Penha.

Em seu preâmbulo, referida Lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher. Trata, portanto, de reafirmar a extensão dos direitos humanos às mulheres, com fundamento na Constituição e nos instrumentos internacionais anteriormente ratificados.

Ainda em seu preâmbulo, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, altera o Código Penal, altera o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal, dentre outras providências. Incumbe-se o Poder Legislativo de promover, no Direito Penal brasileiro, as modificações necessárias para garantir, no ordenamento jurídico, as ferramentas de enfrentamento da violência intrafamiliar.

Esclarece Hermann62 que:

A proteção da mulher, preconizada na Lei Maria da Penha, decorre de sua condição (ainda) hipossuficiente no contexto familiar, fruto da cultura patriarcal que facilita sua vitimação em situações de violência doméstica, tornando necessária a intervenção do Estado em seu favor, no sentido de proporcionar meios e mecanismos para o reequilíbrio das relações de poder imanentes ao âmbito doméstico e familiar. (HERMANN, 2008, p. 83 – 84).

A igualdade de direitos é, segundo a autora, uma imposição da razão, o que explica sua reiterada afirmação em leis nacionais e tratativas internacionais, reprisada na Lei Maria da Penha.63

Para melhor delinear os efeitos da Lei, necessária se faz a análise sob determinados aspectos e características, a seguir elencadas.

6.1 Características marcantes dos delitos e das penas

Para garantir à mulher o direito à vida sem violência, a Lei Maria da Penha estabelece uma série de medidas. “São medidas inéditas, que são positivas e mereciam, inclusive, extensão ao processo penal comum, cuja vítima não fosse somente a mulher”.64

Segundo Dias65, o conceito de relação doméstica foi ampliado pela Lei 11.340/06. Foram identificadas como domésticas as relações não só de âmbito familiar, mas também as de unidade familiar e íntimas de afeto, abrangendo as demais formas de família. Também não há distinção entre o sexo do agressor, bastando a agressão decorrer de vínculo familiar:

Ainda que a Lei Maria da Penha tenha vindo em benefício da mulher, o delito de lesão corporal qualificado pela violência doméstica aplica-se independentemente do sexo do ofendido, podendo ter como vítima um homem ou uma mulher. (DIAS, 2010, p.132)66

Quanto ao delito de lesão corporal cujo cometimento é decorrente de relação familiar, afirma a autora que houve alteração, com aumento da pena máxima e diminuição da pena mínima – detenção, de três meses a três anos – abrandando assim a apenação do crime de lesão corporal leve. Antes a pena era de seis meses a um ano. Causa estranheza a opção do legislador em reduzir a pena mínima pois a proposta da Lei é a de tratar, mais severamente, a violência no âmbito familiar.

Também foi atribuída uma majorante, quando a vítima for portadora de deficiência, aumentando a pena de um terço.

Foi criada mais uma possibilidade de prisão preventiva, que pode ser determinada em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, a ser decretada de ofício pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. A prisão preventiva visa assegurar a eficácia das medidas protetivas de urgência, quando estas se revelarem ineficazes para a tutela da vítima. Entretanto, afirma Nucci,67 para evitar afronta ao princípio da proporcionalidade, não se deve permitir que o réu fique preso preventivamente por mais tempo do que a pena que futuramente lhe venha a ser aplicada.

Entre as penas restritivas de direito está a de limitação de final de semana. O réu tem a obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado, cumprindo programas de recuperação e reeducação tais como a participação em cursos, palestras ou atividades educativas.

O agressor tem direito à suspensão condicional da pena - o sursis - mas, como se trata de condenação por violência doméstica, o réu é obrigado a freqüentar programas de recuperação e reeducação.

Há também a vedação expressa à substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, sobretudo de pagamento de prestação pecuniária. O texto legal apresenta a expressão “aplicação de pena de cesta básica”, mas o legislador quis afastar a possibilidade de fixação de prestação pecuniária, como será discutido no tópico seguinte. Proíbe-se também substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

Quanto à necessidade de representação por parte da vítima, recentemente o STF decidiu que a ação cabível é a ação penal pública incondicionada, não mais deixando a atuação estatal nas mãos da vítima. Lavorenti68 assevera que, no intento de livrar a mulher da pressão a que possa ser submetida ou como forma de propiciar o seguimento do processo independentemente de sua vontade, retira-se da mulher a disponibilidade do processo. Em nome da proteção, retira-se sua autonomia, para evitar possível retratação da vítima.

6.2 Inaplicabilidade dos Juizados Especiais

Antes da vigência da Lei 11.340/06, os casos de violência doméstica eram tratados como de menor potencial ofensivo, sendo julgados, a partir da Lei 9.099/95, pelos Juizados Especiais Criminais.

Buscava-se uma forma mais célere e simplificada de se obter a chancela do Poder Judiciário. Entretanto, a maneira como os Juizados lidavam com a questão da violência doméstica contra a mulher não configurava a efetiva proteção que a vítima necessitava.

(...) as mulheres que se socorreram do Poder Judiciário para a proteção de seus direitos humanos violados ou ameaçados não obtiveram a resposta estatal pautada pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, garantias que, estendidas às vítimas, visam minimizar ao máximo as violências institucionais produzidas pelo processo. (LAVIGNE, 2009, p. 183)69

O descaso contra a dignidade da vítima se traduzia na distribuição, pelo ofensor, de cestas básicas à entidades assistenciais. Banalizava-se a conduta violadora dos direitos humanos e reforçava a atitude do agressor, que frequentemente voltava à transgressão. Hermann70 assim se manifesta: “O conflito de fundo não era enfrentado nos Juizados Especiais Criminais, facilitando a repetição e perpetuação das práticas violentas” (HERMANN, 2008, p. 239).

O agressor podia se valer das medidas despenalizadoras, usufruindo da transação penal, deixando a vítima como mera expectadora dos direitos do ofensor.

Não havia rigor para punir a violência doméstica contra a mulher, deixando de lado a persecução criminal do agente violador, amparado pelo Poder Judiciário através da Lei 9.099/95. A conduta do Estado, ao largo de ser protetiva, realçava a desigualdade e a impunidade.

Dias71 assevera que a Lei 11.340/2006 afastou a violência doméstica da égide da Lei 9.099/95. Na Lei Maria da Penha, se a vítima é mulher ou se a violência consolidou-se no ambiente doméstico, não mais se considera crime de pouca lesividade, não sendo apreciado nos JECRIMs, independentemente da pena prevista.

A autora afirma que, afastada a competência dos Juizados Especiais, os números da violência começaram a surgir, assustadores! Como não havia identificação do número de denúncias ou demandas, a tendência era da justiça minimizar as dimensões da violência de gênero.

6.3 O papel do Ministério Público na aplicação da Lei

A Constituição da República de 1988 dispõe, em seu artigo 127, que o Ministério Público possui o papel de defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Então, é cabível sua atuação na defesa dos direitos fundamentais em todas as esferas, notadamente nas relações familiares, garante Dias.72

Na aplicação da Lei Maria da Penha, foram asseguradas ao Ministério Público atribuições institucionais, administrativas e funcionais.

As atribuições institucionais são correlatas com a integração aos demais órgãos, públicos ou privados, que atuam na proteção à mulher. No âmbito administrativo, dispõe de poder de polícia, podendo fiscalizar estabelecimentos de atendimento às vítimas, bem como o preenchimento de cadastros dos casos de violência doméstica.

Dias73 diz que, no âmbito judicial, a participação do Ministério Público é indispensável e deve intervir, obrigatoriamente, tanto nas ações cíveis quanto nas criminais, em face da violência sofrida e da vulnerabilidade da vítima.

Poderá ajuizar ação civil pública incondicionada para que o agente violador seja responsabilizado pelo crime cometido, independentemente de representação da vítima.

Poderá também ajuizar ação civil pública com o objetivo de obrigar o Estado a implantar casas-abrigo para as vítimas ou centros de recuperação para os agressores.

Percebe-se como a atuação do Ministério Público é fundamental na aplicação da Lei Maria da Penha. A dignidade da mulher passa a ser de interesse público e o Ministério Público garante a defesa de tal direito constitucionalmente protegido.


7 REFLEXOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

O Direito Penal brasileiro não assegurou á mulher a garantia de seus direitos fundamentais. Reforçou, tanto na aplicação da lei quanto na execução da sanção, a forma preconceituosa ditada pelo androcentrismo patriarcal.

Segundo Lavorenti74, diante do tratamento dispensado à mulher, o Direito Penal brasileiro tornou-se o próprio problema, demandando necessariamente alterações compatíveis com os padrões modernos aspirados pelas convenções internacionais.

Assim, as alterações legislativas impostas pela Lei Maria da Penha trouxeram avanços significativos para modificar práticas jurídicas que respaldassem a violência contra a mulher.

O autor afirma que o Direito Penal brasileiro começa a caminhar, ainda que com passos trôpegos, de forma pontual sob a ótica de gênero, contribuindo para a rediscussão da dogmática jurídica e para a superação do modelo patriarcal até então existente.

7.1 Alterações no ordenamento jurídico

A Lei 11.340/2006 procurou atender às recomendações internacionais, promovendo a internacionalização dos direitos da mulher no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, necessárias foram as alterações penais e civis, promovendo mudanças nas normas materiais e processuais.

As modalidades de violência previstas na Lei 11.340/2006 devem ocorrer necessariamente no âmbito doméstico e familiar, pautadas em relação íntima de afeto, lastreadas pela questão de gênero. Tais modalidades incidem em circunstância agravante do artigo 61, inciso II, alínea f, do Código Penal, acrescentada pela Lei 11.340/2006.

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A Lei contempla também, segundo Lavorenti75, em seu artigo 7º, de forma exemplificativa (numerus apertus), as formas de violência. Contudo, não estipula novas infrações penais, com as respectivas sanções. Assim, deve-se procurar no Código Penal ou em legislação específica a tipificação da conduta.

Quando a Lei 11.340/2006 pretendeu introduzir modificações no Código Penal ou no rito procedimental, o fez expressamente, aduz o autor. É o caso dos artigos 42, 43, 44 e 45 da referida Lei.

Dias76 afirma que as alterações no Código Penal foram de pequena monta. O legislador limitou-se a acrescentar uma agravante, quando o agressor se prevalece de relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade. Houve o aumento da pena máxima e a diminuição da pena mínima para o delito de lesão corporal. Também se estabeleceu uma majorante quando a vítima da violência doméstica for portadora de algum tipo de deficiência.

Houve vedação expressa de concessão de benefícios, afastando a possibilidade de transação, de composição de danos e suspensão condicional do processo. Segundo a autora, a integridade da mulher não tem valor econômico e não pode ser trocada por distribuição de cestas básicas.

Podem ser aplicadas, em substituição às penas privativas de liberdade, penas restritivas de direitos, desde que estas não possuam cunho econômico. Podem ser aplicadas: perda de bens ou valores, interdição temporária de direitos ou prestação de serviços à comunidade, por exemplo.

Quanto ao direito ao sursis, que é concedido tão somente pela quantidade de pena aplicada, não superior a dois anos, durante o primeiro ano, o réu fica sujeito à limitação de final de semana. Deve obrigatoriamente freqüentar programas de reeducação, conforme prevê a Lei de Execução Penal. O estabelecimento apropriado para o cumprimento da limitação de final de semana deverá encaminhar mensalmente ao juiz de execução relatório, ausências ou eventuais faltas disciplinares do apenado, segundo o artigo 153 da Lei de Execução Penal. O descumprimento da determinação judicial pode ensejar que a pena aplicada seja convertida em privativa de liberdade, de acordo com o artigo 44, § 4º da Lei 11.340/2006.

Foi criada mais uma modalidade de prisão preventiva, com o acréscimo do inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, visando garantir as medidas protetivas de urgência.

Lavorenti77 assinala que os procedimentos do processo criminal foram mantidos haja vista que a Lei 11.340/2006 não prevê rito próprio. A determinação do rito dependerá de outros fatores: a infração ser punida com detenção ou reclusão, o crime contar com procedimento especial ou de o agente gozar de prerrogativa de função.

O autor afirma que foram introduzidas várias novidades no ordenamento jurídico-penal, de caráter emergencial:

As medidas adotadas correspondem aos deveres do Estado, previstos na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de contemplar medidas jurídicas que afastem o agressor da possibilidade de perseguir, fustigar, intimidar, ameaçar ou expor a perigo, de qualquer sorte, a incolumidade da mulher ou de seu patrimônio, bem como o estabelecimento de4 regras jurídicas que incluam, entre outras medidas de proteção, um julgamento oportuno e o acesso efetivo a tais procedimentos e à satisfação de danos. (LAVORENTI, 2009, p.261).78

A Lei assegura ainda à mulher em situação de risco, além de medidas protetivas de urgência, prioridade na remoção e garantia de emprego.

7.2 Rigor da Lei X Direito Penal Mínimo

O rigor da Lei Maria da Penha é plenamente justificável ante à discriminação e o descaso perante a violência doméstica e intrafamiliar, mantidos durante séculos no ordenamento jurídico.

Inicia-se uma fase de transformação do Direito Penal brasileiro, abandonando progressivamente a proteção ao patriarcado. A Lei Maria da Penha desperta a possibilidade de um novo horizonte para coibir condutas lesivas e aumentar a autoestima das mulheres. A desigualdade de gênero começa a perder espaço com os novos institutos e mecanismos inseridos na Lei.

Contudo, defensores do Direito Penal Mínimo tecem severas críticas à Lei 11.340/2006. Afirmam que seus dispositivos geram a ampliação de mecanismos de controle estatal em prejuízo das garantias individuais, com arrefecimento dos pressupostos processuais que abonam o contraditório e a ampla defesa, segundo Lavorenti.79 Porém, afirma o autor, não se aceita mistificar as exigências do momento histórico e reduzir a termos menores a intervenção penal.

Não se pode ignorar, com base na mínima intervenção estatal defendida pelo movimento do Direito Penal Mínimo, que os valores tutelados pela Lei Maria da Penha encontram-se no texto constitucional. “Estão em congruência com a gravidade das conseqüências da intervenção penal e em harmonia com as aspirações pluralíssimas do Estado Democrático de Direito.” (LAVORENTI, 2009, p. 275).80

O autor observa que há a devida proporcionalidade entre a dignidade do bem jurídico a ser protegido, a necessidade de sua tutela e a danosidade de sua ofensa.

Deve-se ressaltar que o Direito Penal Brasileiro representou um enorme entrave à consecução dos direitos da mulher e um completo desrespeito aos compromissos internacionais assumidos.

As mudanças trazidas pela Lei, segundo Lavorenti81, não são fruto de uma carga emocional desencadeada por uma cobertura midiática do caso Maria da Penha Maia Fernandes. São conseqüência de um amadurecimento crítico sobre a questão do gênero, sobre a diversidade de tratamento imposta pelo patriarcado, amparados em reconhecimento internacional e constitucional.

A Lei 11.340/ 2006 aponta para o caminho da igualdade, da não discriminação, da valorização dos direitos humanos da mulher, coibindo condutas violentas e a manutenção da vigência patriarcal. Através dela, consolidam-se os valores expressos na Constituição, valores estes incontestáveis para toda a sociedade.

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Sobre a autora
Andrea Cristina Matos Siqueira

Advogada em Belo Horizonte (MG). Especialista em Direito Constitucional. Mestre em Direito Público Internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Andrea Cristina Matos. Lei Maria da Penha: reflexos tardios da internacionalização dos direitos humanos no Direito Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3329, 12 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22391. Acesso em: 28 mar. 2024.

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